Plinio Corrêa de Oliveira

 

A deflação

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 21 de julho de 1946, N. 728

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Penso que não há, em todo o Antigo Testamento, princípio mais intimamente ligado às concepções do LEGIONÁRIO sobre a civilização em geral, e particularmente sobre a civilização cristã, do que o do salmista: "enquanto o Senhor não edificar a cidade em vão trabalharão os que a edificam". Escreveu Pio XI que a única civilização verdadeira digna deste nome é a civilização cristã. Para nós, que nascemos na glória e santidade dos últimos fulgores dessa civilização, tal verdade é fundamental. À medida que a tragédia deste imenso crepúsculo espiritual se vai desenrolando a nossos olhos desolados, lentamente se vai esboroando a civilização. Não para dar lugar a uma outra ordem de coisas, menos boa quiçá, mas enfim a uma ordem qualquer. A sociedade de aço e cimento que se vai formando por toda a parte não é uma ordem nova. É a metodização e a sistematização da suma desordem. A ordem é a disposição das coisas segundo sua natureza e seu fim. Todas as coisas se vão dispondo gradualmente contra sua natureza e seu fim. Haverá quiçá neste metálico inferno uma organização rígida e feroz, como rígida e feroz é a férrea hierarquia que existe entre os anjos da perdição. Durará esta era de aço até que as forças íntimas de desagregação se tornem tão veementes, que nem sequer tolerem mais a organização do mal.Será então o estouro final. Outro desfecho não haverá para nós, se continuarmos nesta marcha. Porque, para nós batizados, os meios termos não são possíveis. Ou voltamos à civilização cristã, ou acabaremos por não ter civilização alguma. Entre a plenitude solar da civilização cristã e o vácuo absoluto, a destruição total, há etapas passageiras: não há, porém, terrenos onde se possa construir qualquer coisa de durável.

Claro está que não somos fatalistas. Se, para o suicida, da ponte ao rio ainda há a possibilidade de uma contrição, certamente existe para a humanidade, no resto de caminho que vai de seu estado atual para sua aniquilação, possibilidade de arrependimento, de emenda e de ressurreição. A Providência nos espreita em todas as curvas, desta última e mais profunda espiral. Trata-se, para nós, de ouvir com diligência a sua voz salvadora.

Esta voz se faz ouvir, para nós, na multíplice e terrível lição dos fatos. Tudo, hoje em dia, nos fala de desagregação. O castigo divino está fumegando em torno de nós. Estamos no instante providencial em que, aproveitando este pouco de fôlego que a paz nos dá, podemos instruir-nos com o passado, e considerar a advertência deste futuro de que nos aproximamos com terror.

"Se hoje ouvirdes sua voz, não endureçais vossos corações". É este o conselho da Escritura. Abramos, pois, de par em par os nossos corações, à dura lição dos fatos. Examinar com frieza, com realismo, com objetividade inexorável o mundo atualsondar uma a uma as suas chagasabismar o espírito na contemplação de seus desastres e suas dores, é um dever. Porque Deus nos fala pela voz de todas estas provações. Ser totalmente otimista diante delas, é fechar os ouvidos a voz de Deus.

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Penso que a crise econômica por que passa o Brasil é muito instrutiva a este respeito. Fala-se muito contra a inflação, e certamente com razão. Mas, dita a coisa com toda a franqueza, nosso maior mal não é a inflação monetária. É a deflação dos caracteres. Se houvesse mais honestidade, a situação financeira seria muito melhor. É o que todos percebem e poucos tem ânimo de dizer.

Não se pode sustentar, nem de longe, que a alta alarmante dos preços se deve exclusivamente à grande quantidade de dinheiro circulante. Todos nós sabemos como se chegou a este extremo de carestia. Faltando com a guerra alguns gêneros que importávamos da Europa, subiram eles naturalmente de preços. Os exportadores que possuíam ainda alguns stocks antigos, aproveitaram a ocasião e cobraram muito mais do que a própria raridade da mercadoria justificava. O artigo era necessário: o infeliz consumidor não teve remédio, e acabou pagando.

Este primeiro sangue vertido na arena da honestidade excitou em todos os campos da vida econômica novos touros. Começaram a "faltar", sem qualquer razão plausível, certas mercadorias. Por meio de uma organização perfeita, eram elas compradas do fornecedor, armazenadas, e por vezes, segundo parece, até destruídas antes de chegarem ao público. Pouco depois, os preços subiam vertiginosamente. E a mercadoria invadia o mercado, mantendo-se entretanto nos seus novos preços, já injustificados uma vez que a carência do artigo cessara.

Evidentemente, esta manobra deu lucros. Outros tentaram imitá-la, mas de modo diverso. Subiam os preços gradualmente, alegando que a matéria prima de que se abasteciam ia encarecendo. O que pode saber o pobre consumidor, da alta de não sei de que misteriosos produtos importados de misteriosas regiões deste planeta? Aos que reclamavam, a escusa era esta: que quer, meu caro? A Suécia não envia material. Sou obrigado comprar em Toronto e em Sevilha. Os produtores de lá estão cobrando cada vez mais. Aqui subo também. Ouvindo falar em coisas tão alucinantes quanto Toronto, Suécia, Sevilha, o consumidor se calava, mudo perplexo... e pagava.

Tudo isto provocou um encarecimento geral. O pretexto era sempre o mesmo: se a vida subiu, não subirei meu produto? Claro que sim. Subindo os produtos de todos, subia a vida. A inflação seguia gostosamente o ritmo desta marcha. E chegamos onde chegamos.

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Afinal o Brasil está hoje dividido em duas categorias.

Há os nababos, os felizardos que entraram na caudal dos negócios e das negociatas: compram, vendem, revendem, ganham diferenças astronômicas levantando os preços tanto quanto lhes agrada. Enchem-se e depois gastam. Os hotéis, as estações balneárias, os cinemas, os teatros, estão cheios destes ilustres desconhecidos, ostentando jóias vistosas, casacas mal ajambradas, penteados extravagantes, usando nomes dos mais variados confins do globo, e pavoneando por toda a parte sua pequena educação e seus grandes lucros. Um cheiro de desonestidade e de deseducação impregnou tudo. É a atmosfera social e psicológica dos "lucros extraordinários", uma atmosfera híbrida de cortiço e guichet.

De outro lado, estão os parias, os que não conseguiram meter a mão nos negócios, e vivem de ordenado ou rendas. Nada sobe para eles, a não ser as despesas. Seus ganhos são fixos, e enquanto os patrões encaixam cifras astronômicas, vegetam eles numa parcimônia vizinha da miséria. Quanto aos funcionários públicos, empregados do mais avaro e displicente empregador que é o Estado, nem é bom falar. É esta a parte tosquiada pela nação. É o rebanho espoliado.

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Mas, dirá o leitor, não haverá remédio para isto? Por exemplo, se se fizesse uma comissão fiscalizadora, não teria isto algum arranjo?

Digamos que se faça uma... coordenação. Não há meio de evitar o termo. O que sucederá? Para que perguntar o que sucederá? Não basta lembrar o que se sucedeu? A coordenação comerá à mesa dos magnatas, e tudo terá sido dito.

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O LEGIONÁRIO jamais teve qualquer espécie de demagogia ou de democratice chula. Se estamos falando contra esta situação, não é por espírito baixamente igualitárioÉ que nada há de mais demagógico do que o sistema econômico para o qual caminhamos. O Brasil está ficando o paraíso da "cafafinagem". E o inferno de tudo quanto representa trabalho, tradição, honestidade.

Por que isto? Porque a deflação dos caracteres é mais terrível do que a inflação monetária.

E o mal só é um: a moralização do Brasil (que, diga-se de passagem, não está pior do que o resto do mundo).

Chavão, dir-se-á. Não para nós católicos que sabemos que de nossos esforços, nossas orações, nossa mortificação poderá vir a restauração moral de nosso país.

Não é uma lamentação estéril esta que aqui fica. É um incitamento à reação.