Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Cristandade

 

 

 

 

 

Legionário, Nº 732, 18 de agosto de 1946

  Bookmark and Share

Apontamos, em nosso último número, a triste indiferença de que dão provas as nações católicas no que diz respeito à situação internacional do Papado. Divididas entre si, minadas pelo cupim do liberalismo religioso, absorvidas sobretudo pelas preocupações econômicas e pelas reivindicações políticas, nem lhes acode, em via de regra, a lembrança de que todo o seu prestígio histórico e cultural, todos os seus recursos econômicos e militares, não estão ao serviço exclusivo dos interesses próprios, mas se destinam por disposição da Divina Providência à defesa de um ideal mais alto.

Sabemos todos que Pio IX condenou a separação da Igreja e do Estado. O princípio sobre o qual se fundou a condenação é que, assim como cada católico, individualmente considerado, tem obrigação de professar publicamente sua Fé, assim também as coletividades católicas são obrigadas, como tais, a se proclamarem católicas, e a prestar culto a Deus.

Com a mesma lógica com que do dever pessoal de professar a Fé se deduz um dever paralelo para os povos católicos, considerados enquanto coletividade, com a mesma lógica, do dever pessoal de apostolado, que tem cada fiel, se deduz a obrigação, para todas as nações católicas, enquanto nações católicas, de divulgar a Fé.

Hoje, mais do que nunca, se tem insistido na noção de que todo o católico é obrigado a fazer apostolado. Ora, se 40 milhões de católicos brasileiros, pessoalmente tomados um a um, são obrigados a fazer apostolado, é bem evidente que a coletividade formada por estes 40 milhões de homens tem o mesmo dever.

Não é só cada católico, é cada país católico que é obrigado a trabalhar pela dilatação da Fé.

No tempo em que havia entre os povos católicos a consciência viva de que formavam em todos os planos uma verdadeira família, esta noção era comezinha. Foi em virtude dela, que os reis medievais fizeram as Cruzadas. Foi em virtude dela, que os reis dos Tempos Modernos estimularam as Missões. O Estado tem uma esfera própria que não se confunde, de modo nenhum, com a da Igreja. Mas é indiscutível que Igreja e Estado podem e devem prestar-se reciprocamente auxílio e colaboração. Prestou-a sempre a Igreja ao Estado. Mas o Estado... em via de regra, o que faz ele hoje para a dilatação da Fé?

* * *

Falamos há pouco em Cristandade. Se tomássemos hoje, a esmo, qualquer católico mesmo bem instruído, poderia ele dizer-nos o que é isto?

Os povos cristãos formam uma verdadeira família, no sentido mais genuíno da palavra. A família resulta, antes de tudo, de uma certa comunidade de vida entre seus membros, recebida da mesma fonte, do mesmo tronco genealógico. A Cristandade tem também uma comunidade de vida, a vida da graça, a vida sobrenatural que faz de cada fiel um filho adotivo de Deus. A comunidade de vida cria obrigações, na família e na Cristandade. Na Família a defesa dos ancestrais, de que todos receberam a vida natural, a defesa dos parentes, em cujas veias corre o mesmo sangue. Na Cristandade, a defesa de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Seu Corpo Místico. Na família, todos devem trabalhar para o ideal comum. Na Cristandade todos devem cooperar para a dilatação do Reino de Cristo. O conceito de Cristandade é uma projeção, no terreno natural, da grande realidade sobrenatural que é o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Se este conceito estivesse bem vivaz na mente dos católicos contemporâneos, eles perguntariam naturalmente aos seus dirigentes temporais o que fazem no momento, pela dilatação do Reino de Cristo no mundo, que serviço prestam à Igreja com este objetivo, que providências estão tomando para destruir os obstáculos que no mundo inteiro se levantam contra este supremo desideratum.

Muito naturalmente, as nações católicas constituiriam na ONU como na Conferência de Paris um grande bloco unido: unido pela união recíproca de seus membros, e pela comum união destes ao Vigário de Cristo sobre a terra. Este bloco constituiria um grande foco de luz e de paz, no mundo inteiro, da luz de Cristo e da paz de Cristo, de que o mundo tanto precisa. É possível que, como no tempo das cruzadas, uma ou outra vez fosse necessário empunhar o gládio, para levar a guerra de Cristo onde as ovelhas de Cristo estivessem sendo perseguidas ou a liberdade dos pregoeiros do Evangelho estivesse sendo negada. Nisto, ainda haveria um serviço para a paz. Porque as guerras de Cristo são guerras que extinguem a desordem, que eliminam a discórdia, que suprimem a injustiça: são guerras que geram paz. Muito diferentes, nisto, das guerras e até da paz do mundo, que, como estamos vendo... só sabe fazer pazes que geram guerras.

* * *

Mas, dir-nos-á alguém, este artigo baralha estranhamente certas noções fundamentais. No dia em que o Estado se intrometesse nos problemas de apostolado, teríamos inevitavelmente uma diminuição para a plena soberania da Igreja. Não compete à Igreja o direito de pregar o Reino de Deus? O que vem a fazer na nobre tarefa do Sacerdote, o beleguim, o carrasco, o cobrador de impostos ou o sargento? A intervenção destes agentes do Estado só terá por efeito uma inevitável tentativa de absorção das funções do Clero pelo Estado. É a repetição das lutas pombalinas, que lateja dentro das ofertas de cooperação estatal!

Evidentemente o homem pode abusar de tudo, inclusive de sua nobre tarefa de auxiliar a Igreja de Deus. Mas entre este abuso por excesso, e a completa omissão em que estamos hoje, há uma linha média que a doutrina da Igreja nos traça e na qual nos quer a Providência de Deus. Não é lícito então, ao homem, procurar situar-se nesta linha média? Com a graça de Deus, não terá ele forças para se situar estavelmente, equilibradamente, firmemente, no terreno onde o chama a voz do dever?

Penso que, em via de regra, a abstenção do Estado é um mal menor do que qualquer prejuízo que possa ocorrer da hipertrofia da ação dele para a vida da Igreja. Mas... recuso-me a escolher em tese entre um abuso e outro. Devemos pôr mais alto nossos corações, e pleitear decididamente o cumprimento do dever. Isto é, a ação equilibrada do Estado que coopera com a Igreja em uma tarefa na qual a ação do Estado é meramente instrumental, e a Igreja é absolutamente soberana.

* * *

Se na Conferência de Paris houvesse delegações de muitos povos que pensassem assim, a única paz verdadeira, que é a paz de Cristo, estaria assegurada pelo único meio possível, que é o Reino de Cristo.

Com isto, antes de tudo, daríamos a Deus toda a glória que Ele merece. E, além do mais, estaríamos trabalhando para poupar ao mundo o dilúvio de lágrimas, suor e sangue, para o qual, manifestamente, vamos aos poucos caminhando novamente.

Mas o cumprimento de todos os grandes deveres exige normalmente uma preparação próxima e outra remota. Não estamos, nem próxima, nem remotamente aptos a cumprir este dever.

Saibamos, pelo menos, bater no peito, e pedir perdão. Quando gememos pensando que o mundo se está perdendo, lembramo-nos, com compunção, de que ele só poderia ter sido salvo por nós?

Nota: Os negritos são deste site.


ROI campagne pubblicitarie