Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Constituição e Direito Natural

 

 

 

 

 

Legionário, n.° 779, 13 de julho de 1947

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Entramos por fim na plenitude do regime constitucional. Mais amigos de princípios e raciocínios do que de flores de retórica e arroubos de eloquência, associamo-nos, a nosso modo, ao júbilo geral enumerando as vantagens que a nova ordem de coisas nos pode trazer. Para o fazer convenientemente, é preciso, contudo, que lembremos antes algumas noções gerais de política e de Direito.

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O grande público, hoje em dia, já não sabe mais o que é direito natural. Vivemos afogados nas leis, decretos, portarias, circulares administrativas, regulamentos, etc. O Estado legisla com uma abundância torrencial. E todo o poder de legislar nos parece emanado única e exclusivamente dessa fonte tão prodigiosamente caudalosa.

Nada de mais errado. Há por certo uma lei que dá ao homem o direito à sua vida, à sua integridade física, a toda a liberdade de fazer o que for lícito ou louvável à sua honra, à sua reputação, à estabilidade de sua família. Mas esta lei não vem do Estado. Não tenho o direito de viver só porque a lei me assegura tal direito. E tanto isto é verdade que, se amanhã uma lei me condenasse à morte inocentemente, eu me defenderia contra ela de todos os modos. O mesmo poderia dizer de todos os outros direitos humanos. Estes direitos vêm ao homem do próprio fato de serem homens. A lei feita pelo Estado simplesmente se limita a proclamar este direito, não o cria nem o institui. A este conjunto de direitos que cada criatura humana tem pelo próprio fato de ser humana, se chama Direito Natural. A noção, por certo, está exposta de modo apenas embrionário e aproximativo, mas serve de ponto inicial para reflexões políticas da maior importância.

Por que se chama a estes direitos de "naturais"? Porque vem da natureza das coisas. Mas quem é o autor da natureza? Deus. Logo, estes direitos vem de Deus, se exprimem pela própria natureza e constituem a ordem fundamental pela qual Deus quer reger o mundo.

A própria razão natural demonstra a existência destes direitos. Mas Deus lhes deu um fundamento ainda mais sólido do que a razão humana: Ele os revelou no Decálogo. E Jesus Cristo constituiu a Igreja como mestra e defensora da lei natural e revelada, no mundo inteiro.

O Decálogo é o fundamento da civilização cristã. A opinião católica não pode deixar de atribuir a maior importância a tudo que diz respeito ao reconhecimento, por parte do Estado, dos princípios do Decálogo, das normas do Direito Natural.

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Não se pode negar que na tumultuosa e imensa legislação com que a ditadura inundou o Brasil, o Direito Natural sofreu graves lesões. É contra o Direito Natural que a lei seja retroativa (ao menos este princípio se pode admitir para a maioria das leis). É contra o Direito Natural que se façam leis só para decidir casos pendentes do pronunciamento dos tribunais. É contra o Direito Natural que leis públicas sejam revogadas por circulares confidenciais do exclusivo conhecimento das repartições interessadas, ou até por telefonemas comunicados pelos pequenos sátrapas administrativos do Rio de Janeiro. É contra o Direito Natural que se fundem "Mepescas" de todos os estilos, coarctando a liberdade do comércio não no interesse público, mas no interesse de alguns protegidos. É contra o Direito Natural que se imole sem nenhuma compensação ou indenização uma classe inteira como a dos fazendeiros, confiscando-lhes (como seria agradável poder empregar termo mais adequado) café e vendendo este café para as despesas inconfessáveis do Estado. É contra o Direito Natural congelar artificialmente as rendas dos prédios urbanos, enquanto os profiteurs de guerre auferem lucros astronômicos. É contra o Direito Natural manter os funcionários da Prefeitura de São Paulo com salários de miséria como fez um prefeito da ditadura, para que sobre dinheiro para grandes obras públicas muitas vezes suntuárias. É contra o Direito Natural assegurar a promoção às funcionárias desonradas, de preferência àquelas que conservam íntegra a sua honra, e isto por um decreto público e taxativo. É contra o Direito Natural proibir que um cidadão qualquer se demita do cargo público quando bem entenda. Estes e mil outros pontos da legislação estadonovista são contra o Direito Natural, e merecem ser retificados.

Nossos liberais, inconsequentes, frívolos, como em geral o são todos os liberais, nem insistiram suficientemente sobre estes desvarios, nem empenharam os esforços necessários para os corrigir. Fazem política, e nada mais. De fato, porém, se mal houve na ditadura, o mal foi este. Vivemos alguns anos debaixo de um regime que violou habitualmente o Direito Natural.

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Por que foi isto possível? Porque todos os meios de defesa estavam coarctados. Como poderia um funcionário municipal protestar contra as economias despóticas do onipotente prefeito? Como poderia um funcionário estadual protestar contra a promoção vergonhosa da mãe solteira? Que meio tiveram os fazendeiros para sustar o confisco oprobioso do café e sua venda clandestina no mercado? Não havia direitos, e todo o protesto trazia consigo o perigo de sanções gravíssimas. As leis eram elaboradas na câmara escura dos gabinetes presidenciais ou das interventorias, e explodiam como petardos, sobre as pobres vítimas inermes e atônitas.

Se houvesse leis definidas, se houvesse direito ao protesto em caso de lesão, se houvesse enfim liberdade para o bem, não teríamos chegado a tal extremo.

Mas esta liberdade não existiu. Nem sequer as vozes mais altas e autorizadas podiam pronunciar-se claramente. Prova disto é que a censura proibiu a publicação da famosa Pastoral Coletiva do Episcopado Paulista, em que a Igreja protestava contra a jogatina e outros abusos do regime.

Claro está que a instauração de um regime em que as leis se façam publicamente, e com a participação dos interessados; de um regime em que os interesses legítimos se podem exprimir livremente; de um regime em que portarias, telefonemas e circulares administrativas não têm força suficiente para destruir direitos consagrados em lei, se presta poderosamente à defesa do Direito Natural.

Mas, de outro lado, este regime tem os seus riscos. A demagogia pode facilmente dominar as câmaras legislativas, impelindo-as a atitudes imprudentes. A tendência esquerdista pode arrancar aos representantes do povo leis tão contrárias ao Direito Natural quanto as dos regimes ditatoriais. Em suma, também os regimes representativos são capazes de tirania, e o mundo tem conhecido muita tirania "constitucional".

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Assim, pois, a data de 9 de julho, que assinalou para nós o fim de uma era de constantes violações do Direito Natural, abre esperanças de uma outra fase, em que o Direito Natural possa ser mais bem defendido. Isto é tão importante, tão auspicioso, tão sólido que explica o júbilo geral por ocasião da constitucionalização do Estado.

Mas para que esta data seja realmente um início de fase nova é preciso que se afaste o perigo da ditadura demagógica e que todos os que têm direitos naturais a defender lutem ativamente em favor deles.

Se as liberdades públicas forem usadas larga e arrojadamente em favor do Direito Natural, se forem negadas terminante e categoricamente aos inimigos do Direito Natural, a Constituição terá trazido ao Brasil um imenso benefício.

Nota: Os negritos são deste site.


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