Plinio Corrêa de Oliveira

 

Um Bispo providencial

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 20 de novembro de 1938, N. 323

 

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Dom Duarte Leopoldo e Silva (4/4/1867-13/11/1938)

Se, por meio de uma frase, devesse sintetizar todas as impressões que me deixou Dom Duarte Leopoldo e Silva, diria simplesmente que, como Bispo e como brasileiro, ele foi, por excelência, um homem de seu tempo.

A afirmação pode causar estranheza. Entretanto, é rigorosamente verdadeira. Em geral, considera-se “homem de seu tempo” aquele que por encarnar os vícios e as degradações mais características deste nosso triste fim de civilização é um produto autêntico do meio em que vive. Na realidade, porém, o “homem do tempo” é o homem que as vicissitudes da época exigem, é aquele que exatamente por estar no polo oposto aos defeitos de seus contemporâneos, tem todas as qualidades para exercer uma missão salvadora. O verdadeiro “homem do tempo” é o homem providencial que Deus enviou não para se perder com o mundo, mas para salvá-lo. E Dom Duarte Leopoldo e Silva foi, na acepção plena da palavra, um desses homens providenciais.

* * *

Para se ter uma ideia do que de providencial tinha a extraordinária figura de Bispo, que acabamos de perder, bastará que se recorde o ambiente dentro do qual iniciou sua gestão episcopal.

O Brasil estava em plena adolescência psicológica e econômica e se embriagava avidamente com todos os deleites que sua situação lhe oferecia.

Com a facilidade de comunicações que o progresso engendrara, o contato com o Velho Mundo introduzia entre nós lufadas vigorosas de luxo e de progresso. Rapidamente, a vida social se transformava. Era a luz elétrica, o telefone, o bonde, o telégrafo, a multiplicação das ferrovias, e o cinema, que modificavam aceleradamente o padrão da vida doméstica, os costumes patriarcais, e todo o teor das relações sociais. A cada novo progresso, uma onda de entusiasmo percorria e fazia vibrar a massa da população. Nenhum herói, por exemplo, foi ovacionado por nossa gente como os primeiros bondes elétricos que, sob os aplausos da multidão, começaram a funcionar festivamente na capital paulista, em um dia de soleníssima e concorridíssima inauguração (em 1900, n.d.c.). O Brasil sentia que estava nascendo para uma civilização nova. E ele delirava de entusiasmo por essa civilização.

 

Para tanto, não faltavam motivos. A civilização nova se apresentava, aos espíritos incautos, ataviada com todos os encantos capazes de empolgar as massas.

De um lado, um progresso material vertiginoso concorria imensamente para tornar a vida mais cômoda e mais suave.

De outro lado - e esta circunstância é capital - uma imensa revolução espiritual se consumava, tutelada pelo prestígio de todas as novas conquistas da física, da química e da mecânica. A demolição final da velha estrutura política anterior à Revolução dava lugar ao aparecimento de um mundo igualitário (...), cujos pró-homens fascinavam as massas com a proclamação incessante de seus novos direitos e as anestesiavam pelo olvido sistemático e criminoso de seus imperecíveis deveres.

As idéias de Comte, de Renan, de Proudhon, de Saint Simon, de Kant e de Marx nos chegavam da Europa envoltas com as deslumbrantes invenções do progresso material. Para muita gente, renegar a Revolução Francesa era renegar ao mesmo tempo a eletricidade e o progresso.

Esta associação de idéias, tida como evidentemente estúpida hoje em dia, obcecava, então, quase todos os espíritos. E muita gente havia, para a qual preferir a Kant ou Comte à Igreja com os dogmas da infalibilidade papal e da Imaculada Conceição, era quase tão ridículo quanto rejeitar o uso do automóvel ou da luz elétrica, preferindo-lhes a velha vela de sebo ou uma montaria lerda e manca.

Diante de tudo isto, ou melhor exatamente em virtude de tudo isto, para o elemento mais representativo da vida intelectual e social da época, e principalmente para os figurões altifalantes da república positivista de 1891, um Arcebispo outra coisa não era senão o chefe impotente de um ridículo exército de beatas ovelhas e de homens imbecilizados, cujas minguadíssimas hostes, dentro em pouco, desapareceriam sob o sol do progresso, como derretem sob o sol do meio dia os bonecos de neve armados pelas mãos das crianças.

E foi à testa de um tão fraco e tão triste exército que a Providência colocou, em São Paulo, a figura descomunal de um autêntico Condé ou um verdadeiro Caxias das lutas santas da Igreja de Deus.

* * *

Ipse firmitas et auctoritas meam - é Ele (Cristo) minha firmeza e minha autoridade”. Foi com este lema ardente e galhardo como um canto de guerra, inscrito em seu brasão de armas, que se apresentou à sua nova diocese o Bispo Dom Duarte.

O seu todo se harmonizava perfeitamente com o lema. Esguio, alto, de um porte majestoso, com as faces hieraticamente imóveis e lívidas, lábios finos e enérgicos, gestos comedidos e de uma impecável dignidade, o jovem Prelado parecia uma figura descida diretamente de algum nicho de catedral gótica, para governar a pujante e moderníssima diocese.

Colocado ante as investidas de um liberalismo frenético, Pio IX procurou, a princípio, fazer as concessões que a doutrina da Igreja lhe permitisse. Longamente, com uma paciência autenticamente evangélica, cedeu ele tudo quanto pode ceder. Finalmente, chegou à convicção de que se não é com vinagre que se atraem abelhas, não é com açúcar que se domam leões. E diante das imprecações furiosas do ceticismo, Pio IX enfrentou a incredulidade do século com a definição trovejante dos dogmas da infalibilidade papal e da Imaculada Conceição. E o que a doçura de Cristo refulgente no seu vigário não conseguira, conseguiu-o finalmente o açoite de Cristo, que seu Vigário resolvera empunhar. Estrebuchante, a impiedade começava a declinar na Europa, pelo golpe mortal que o Papa lhe inferira.

Dom Duarte compreendeu a lição que o grande Pontífice deu ao mundo. E a característica essencial de seu pontificado foi a lógica inflexível e a energia inquebrantável com que nunca, em tempo algum, sob nenhum pretexto, deu o mínimo quartel aos princípios que a Fé romana reprova.

Em pleno zênite de liberalismo, ele foi sobretudo um grande disciplinador. Armado só de poderes espirituais, soube fulminar condenações certeiras com uma habilidade verdadeiramente cirúrgica, em todos os numerosos abcessos que eriçavam de irregularidades e abusos nossa vida religiosa. Previdentíssima, sua autoridade não se exercia apenas em sentido repressivo, mas ainda preventivo.

Na disciplina eclesiástica, soube dar à Arquidiocese uma tal organização que seus seminaristas e seus sacerdotes foram dotados de uma legislação que os punha ao abrigo da menor infiltração de liberalismo, colocando-os constantemente entre a alternativa da indisciplina explícita, ou da conduta modelar.

Na vida social, soube, com uma intuição diplomática admirável, situar seu prestígio de Arcebispo na altura devida à sublimidade de seu cargo, tratando com os poderosos da arquidiocese com a mesma linha - mutatis mutandis, é claro, porque o bom senso foi sempre uma de suas grandes virtudes - com que o Papa trata com os poderosos do mundo inteiro. Tratando com os elementos políticos, soube fazê-lo com a sobranceria de um Arcebispo e o respeito de um cidadão modelar. Tratando com os elementos populares, soube aliar à majestade de um Pastor a doçura de um Pai.

O que, sobretudo, era admirável no Arcebispo, era seu imperturbável equilíbrio. No início de sua vida episcopal em São Paulo, sua conduta retilínea e intransigentemente disciplinadora lhe valeu inúmeras adversidades. Mas ele continuou sempre imperturbável, sem se deixar intimidar pelas ameaças, nem arrastar por um mesquinho espírito de vingança. Quando os governos o ignoravam oficialmente, ele timbrava em manter toda a pompa própria à sua excelsa autoridade. Quando os governos o reverenciavam, ele continuava o mesmo, nem acrescido pelas honras de hoje nem diminuído pelos ultrajes de ontem, porque sua grandeza não vinha dos homens, mas de Deus.

Quando o Estado lhe era adverso, foi um denodadíssimo reivindicador dos direitos da Igreja. Quando, em 1934, a situação lhe permitiu uma interferência imensa na vida do Estado, foi um denodadíssimo campeão da não intervenção do Clero na política.

Ninguém, mais do que ele, foi implacável para com a impiedade insolente e revoltada. Mas desafio a quem me mostre, de sua parte, um só gesto de inclemência para com as almas humilhadas por uma sincera contrição.

Ninguém mais do que ele foi cioso de sua autoridade. Mas desafio a quem me mostre uma única oportunidade em que se tenha prevalecido de seu cargo para obter manifestações de apreço a sua pessoa ou benefícios para seu patrimônio particular.

Dom Duarte esmagou, em São Paulo, a impiedade e o liberalismo, pela energia admirável com que os enfrentou, e pelo equilíbrio ainda mais admirável com que soube usar sua admirável energia.

* * *

Disse São Bernardo com acerto que a glória humana é como a sombra de nosso próprio corpo. Quando corremos atrás dela, ela nos foge. Quando fugimos dela, ela nos persegue.

Dom Duarte nunca procurou a glória dos homens. Pelo contrário, parecia ter um prazer especial em esmagar qualquer desejo individual de popularidade, para cumprir inteiramente seu dever.

Por isto mesmo, a popularidade, no fim de sua vida episcopal, seguiu ao seu encalço.

E enquanto tantos e tantos cabotinos, que sacrificaram honras, talentos, fortuna e a própria salvação eterna para obter popularidade jazem hoje no esquecimento, os despojos mortais de Dom Duarte tiveram a maior consagração popular que jamais se tenha visto em terra paulista.

No meio de tantas honras humanas, seu corpo frio estava impassível [como] fora sua grande e santa alma aos aplausos ou às censuras dos homens. O que lhe interessara fora tão somente a conquista da perfeição e o amor completo de Deus.

Por isto mesmo, recebeu a glória eterna das Mãos d'Aquele que, com doçura infinita, disse um dia “ego ero merces vestra magna nimis - serei eu mesmo vossa recompensa imensamente grande”.

Cristo foi a única recompensa que ele almejou. E ele a tem, agora, no seio da bem-aventurança eterna, por todos os séculos dos séculos, sem fim.


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