Plinio Corrêa de Oliveira

 

Falsificação

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 21 de abril de 1940, N. 397

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São de tal maneira poderosos e eficazes os métodos de propaganda empregados pelos Estados totalitários que até hoje ainda não foi possível tornar absolutamente patente em todos os setores da opinião pública a causa profunda do dissídio que separa da Igreja os países chamados da “direita”.

Em geral, pensa-se que se o III Reich é mal visto pela Santa Sé, deve-o exclusivamente ao cerceamento sistemático da liberdade da Igreja, ao fechamento da fina flor das associações católicas, à supressão dos jornais católicos e a interdição de numerosos conventos, e quiçá  de Ordens Religiosas inteiras.

Evidentemente tudo isto é grave. Mas a luta entre a Igreja e o nazismo se prende a causas que transcendem de muito a importância destes criminosos atos de perseguição. Se a oposição entre o catolicismo e o hitlerismo consistisse apenas em uma legislação anti-religiosa promulgada por este, estaria sempre aberta a porta para uma esperança de reconciliação. Porque no momento em que as circunstâncias fizessem amainar esta política, teriam desaparecido todos os motivos de conflito.

A História da Igreja, tão rica em ensinamento experimentais do maior valor, mostra que não seria este o primeiro caso de uma crise debelada pela Santa Sé, por uma resistência suave e intrépida, que acaba sempre por desgastar as energias do perseguidor. “L'Eglise est une enclume qui a usé bien de marteaux” [A Igreja é uma bigorna que desgastou muitos martelos], disse um escritor francês. E ninguém pode negar que ele tem plena razão.

Infelizmente, porém o programa anti-religioso do nazismo está longe de ser um aspecto acidental e extrínseco da política do III Reich, um produto de preconceitos anti-clericais hauridos no ambiente pestilencial deste século, que ruiriam sob o esforço de persuasão mais diligente dos católicos ou ao contato regular e frequente com o dignitário eclesiástico que as funções do governo impõem aos estadistas.

A realidade é que a política anti-religiosa do III Reich é um carácter essencial deste, um traço fundamental do seu conteúdo ideológico ou, melhor ainda, o sentido profundo e a própria razão de ser do nazismo.

Julgam muito superficialmente a realidade os que supõem que as falanges nazistas galgaram as escalas do poder com aquele imediatismo ambicioso e personalista que caracterizava a maior parte dos partidos políticos da democracia liberal. São ingênuos e prestam assim um assinalado desserviço à Religião, os católicos que se comprazem em mostrar em Hitler e seus sósias espirituais do mundo inteiro, meros ambiciosos que disfarçam, atrás das exterioridades charlatanescas de suas grandes cerimônias cívico-políticas, a mesma cupidez imediatista de algum chefe eleitoral que, depois de grandes lutas, chegou a assumir a direção de seu vilarejo.

Desde os primeiros momentos, o partido hitlerista se definiu claramente como algo de muito mais complexo e muito mais temível do que um simples partido. O hitlerismo é antes de tudo uma filosofia, entendida esta palavra no sentido mais amplo que comporta, isto é, uma doutrina comportando uma concepção própria sobre a origem e o fim do homem, sobre a essência da causa a que o homem deve seu ser, sobre os deveres do homem para com esta causa, e implicitamente contendo uma autêntica religião de caráter estritamente filosófico e que exclui qualquer revelação.

Esta filosofia, como todas as filosofias, não se podia confinar logicamente ao puro domínio da especulação. As correntes filosóficas geram necessariamente uma concepção especial sobre o que seja o homem em si, e, portanto, sobre todo o teor das relações dos homens entre si, e destes com o Estado. Implicitamente, deveria decorrer de todos estes princípios uma concepção especial do que seja o Estado. E daí todo um programa de organização política e social que, longe de ser inferido, como fazem habitualmente os partidos políticos, da observação da realidade objetiva, era deduzido com rigor matemático dos primeiros princípios filosóficos assentados pela seita nazista para serem aplicados, de um jeito ou de outro, à realidade.

Por isto, desde o primeiro momento, o partido nazista revelou ser algo de muito maior do que um simples grupo de politiqueiros mantendo escolas, desenvolvendo a cultura física, criando uma literatura, um gosto (?) artístico, um padrão de vida inteiramente novo no seio de suas próprias fileiras, o nazismo mostrou que pretendia elaborar uma nova civilização, e que a conquista do poder não era para ele um fim, senão um meio vital para a realização do grande fim que deveria ser a estruturação de uma sociedade diversa da atual.

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Muito leitor do “Legionário”, ao percorrer estas linhas, estará sorrindo maliciosamente ao supor que caímos em involuntária contradição. Então, o “Legionário” que sempre pregou a inanidade de dois dos traços mais salientes e mais visíveis na ideologia nazista, a saber seu cunho anticomunista e a sua nota tão fortemente nacionalista, este mesmo “Legionário” vem hoje falar em ideologia hitlerista! Pois não foi ele que, durante anos a fio, sustentou que o hitlerismo não tem ideologia?

Não. O que o “Legionário” sempre sustentou é que a verdadeira ideologia hitlerista não era anticomunista nem nacionalista, e que o hitlerismo era, na realidade, a expressão disfarçada de um conteúdo ideológico tipicamente comunista. Por isto, nossa folha não perdeu uma única oportunidade para assinalar a colaboração teuto-russa que foi íntima e eficaz mesmo quando a propaganda de um e outro Estado iludia as massas com uma polêmica recíproca destinada a desnortear os espíritos e permitir, na ordem concreta dos fatos, uma mais proveitosa colaboração e um mais intenso entrelaçamento de interesses. O “Legionário” nunca sustentou que o nazismo não tivesse ideologia. O que ele sustentou é que a ideologia nazista é esotérica, isto é, se apresenta uma para os efeitos de propaganda e outra para o consumo interno de seus membros mais qualificados. E esta ideologia de uso interno, o “Legionário” sempre a denunciou como comunista.

Neste sentido, o livro de Rauschnigg, ex-secretario de Hitler, é frisante. Conta ele que, certa vez, falava-se em uma roda de íntimos, se não me engano todos eles “gros bonnets” [figuras de destaque, n.d.c.] do partido nazista, na ideologia do “Mein Kampf”. A certa altura alguém emitiu uma opinião diversa daquela que o Führer desenvolvera em sua obra. Outro interlocutor apontou-o solícito celeremente a “heresia”. Hitler, porém, que estava presente, interveio, e disse que não ligava a menor importância a alguns dos aspectos políticos e sociais de sua obra. Depois o Führer teve uma afirmação de cujo texto não me recordo, mas que deixava perceber que o nazismo tinha de mais fundamental era libertar a humanidade do jugo da Revelação, e colocá-la em um regime todo ele baseado em um puro materialismo filosófico, naturalismo este que implicaria, praticamente, na implantação de um panteísmo oposto à crença em um Deus pessoal.

Por menor que seja o crédito que se queira dar ao livro de Rauschnigg, é curioso verificar como as suas conclusões, só muito recentemente publicadas na imprensa brasileira, condizem claramente com as impressões do “Legionário”.

Em última análise, pois, o que se pode dizer é que o nazismo é ele próprio uma religião oposta in totum ao Catolicismo, e que, portanto, não luta com este por razões acidentais e extrínsecas mas em obediência a sua própria razão de ser. Seria impossível, ao meu ver, imaginar um conflito mais insanável do que este. E se Hitler bem como os demais chefes nazistas se convertessem, dir-me-á alguém, não seria possível a conciliação entre a ideologia nazista e o Catolicismo? Não. Porque nesse dia o nazismo teria deixado de existir. Entre o protestantismo e o Catolicismo, por exemplo, não há conciliação possível. O que é possível é apenas a reconciliação dos protestantes com a Igreja. O que supõe a abjuração do protestantismo, e não uma conciliação deste com o Catolicismo.

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Se na ordem filosófica e religiosa o desvio é profundo, ele o deve  ser também, de modo inevitável, na ordem política e social. Porque qualquer sociologia não pode ser senão a aplicação de uma filosofia social. E uma filosofia social não pode deixar de ser capítulo amplo, mas um mero capítulo, de uma estrutura filosófica inteira. Por isto, entre o Catolicismo e o nazismo, o conflito se manifesta inexorável, fatal, inevitável, inclemente, de vida e de morte em um terreno fundamental: na concepção corporativa.

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A Igreja Católica engendrou, na Idade Média, o corporativismo admirável que elevou a humanidade, naquela quadra, a tão alto grau de prosperidade econômica. Este corporativismo não era, entretanto, senão a aplicação, à vida política e econômica, da concepção que a Igreja tem sobre o homem.

Toda a concepção católica a respeito do corporativismo tem em sua base uma concepção filosófica sobre o homem e suas relações com Deus. E, como o totalitarismo das direitas também tendo uma concepção própria sobre o homem, sobre Deus, e sobre as relações entre ambos, é evidente que o corporativismo católico nada pode ter de comum com o corporativismo totalitário.

Para dizer tudo em uma só palavra, o corporativismo católico é um meio de fazer o Estado servir a pessoa humana. O corporativismo totalitário é um meio de absorver inteiramente a pessoa humana, fazendo da corporação uma escrava do Estado, e do homem um escravo da corporação.

O corporativismo totalitário é uma falsificação grotesca do corporativismo católico. Ou, melhor, não é uma falsificação. É um estelionato. Porque entre um e outro corporativismo nada há de comum em matéria essencial. Só o nome é comum, porque, para iludir a massa, o Estado totalitário usou esta expressão clássica na sociologia católica, expressão esta destinada a insinuar uma afinidade totalmente inexistente, entre o totalitarismo e a Igreja.

Em nosso próximo artigo, veremos como este estelionato é criminoso, e como o corporativismo estatolátrico é exatamente o oposto da sociologia católica.

Este corporativismo implica, nos Estados que o adotam, em uma virtual oficialização do paganismo. Porque ele é uma consequência da filosofia naturalista e portanto pagã do totalitarismo. E, se é verdade que quem aceita os princípios quer as consequências, também é certo que quem aceita as consequências quer também os princípios.


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