Plinio Corrêa de Oliveira

 

O caso Bretão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 25 de agosto de 1940, N. 415

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Continuam a aparecer nos noticiários telegráficos, com certa insistência, informações referentes a um possível desmembramento da França, que implicaria na constituição de um Estado bretão autônomo. Preparando a opinião pública para receber sem demasiada surpresa uma transformação tão inesperada do mapa político europeu, certas agências telegráficas têm trazido notícias pormenorizadas sobre o movimento separatista que, de há alguns anos  ao menos  para cá, lavra na Bretanha, e por este processo tem gerado a impressão de que realmente a Bretanha era uma “minoria” - sempre as minorias, como na Checoslováquia, na Polônia, etc. - sedenta de independência.

A tática nazista consiste em acumular questões desta ordem, no mundo inteiro. Se delas precisar utilizar-se em dado momento a diplomacia do III Reich, os agentes da 5ª. coluna saberão envenenar a opinião pública, e explorar habilmente os vários aspectos que elas apresentarem. Se, pelo contrário, o curso dos acontecimentos tornar supérfluo ou embaraçoso o prosseguimento de qualquer destas questões, ela morrerá por si.

Está nesta ordem de coisas o problema bretão. Poderá ter, de um momento para outro, a maior atualidade, como poderá morrer insensivelmente, caso o retirem do cartaz os agentes da 5ª. coluna.

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Isto posto, o “Legionário” não pode deixar de fazer a este respeito algumas considerações.

Seria impossível analisar a fundo neste artigo, o problema, mostrando o grave erro cometido pela Revolução Francesa ao impor às várias regiões de que se compunha o reino francês, uma unidade exagerada, que em lugar de reunir em uma ligação harmoniosa e admirável variedade das muitas províncias francesas, todas elas dotadas de tanta e tão bela “couleur locale”, pretendeu abolir as províncias, substituindo-se por mil pequenos departamentos rigidamente subordinados ao governo de Paris.

Entre as várias províncias que foram assim como que dissolvidas e substituídas por uma verdadeira Via-Láctea de pequenos departamentos, figurava a Bretanha, precisamente uma das que, por mil razões etnológicas e históricas, bem como pela mentalidade e pelo gênio artístico típico de seus filhos, mais fortemente se delineava dentro do conjunto da velha monarquia francesa anterior à Revolução.

Monarquista e católica, a Bretanha muito tardou a se adaptar à república leiga que os dirigentes de Paris lhe queriam impor. Dotada de feitio de espírito muito próprio e muito regional, a Bretanha relutou por tempo não pequeno à centralização espiritual e política que o governo francês queria lhe impor. Mas tão vigoroso e tão profundo era o apego dos bretões à pátria comum francesa, que a Bretanha jamais tentou, quer durante a “chouannerie”, quer durante as guerras de Napoleão I e de Napoleão III qualquer movimento de separação da França. Pelo contrário, seus filhos foram sempre magníficos soldados do exército francês, que mostraram de que valor era para a França o heroísmo incomparável do soldado bretão.

Bastará dizer tanto para que se compreenda que, se a Bretanha conheceu algum dia um movimento ideológico separatista, foi de proporções tão exíguas, que não constituiu força ponderável na vida política da França. E a prova disto está em que certamente 99% dos leitores brasileiros do “Legionário” jamais ouviram falar de separatismo bretão.

Se o movimento separatista tivesse tido, na Bretanha, qualquer repercussão digna de nota, como explicar uma tão universal ignorância a seu respeito?

Assim, pois, ao menos aos nossos olhos de brasileiros, o separatismo bretão jamais existiu, e se nos parece admissível que ele tenha chamado a atenção de algum minucioso sociólogo francês capaz de perscrutar os mais leves e subtis veios de opinião pública.

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Quererá o “Legionário” significar com isto que é impossível que as manobras políticas atuais venham a redundar na separação da Bretanha?

Não. Até aqui, tratamos do problema sob seu exclusivo aspecto temporal. Mas ele também oferece um aspecto espiritual de relevante importância que é, em última análise, o móvel que nos leva a lhe consagrar tanta atenção.

Qualquer observador político que não seja absolutamente superficial, compreenderá facilmente o interesse da Igreja em que os povos católicos constituam, no momento atual, blocos coesos e poderosos, capazes de oferecer aos vagalhões da impiedade moderna uma resistência eficaz. O desmembramento da França, da Espanha, da Bélgica, da Polônia etc., representaria para o Catolicismo um golpe quase tão cruel quanto a anexação da Áustria à Alemanha. Não é só conveniente que os povos católicos conservem sua independência política em relação a governos anticatólicos - seria este o caso da Áustria perante o nazismo - mas ainda se tornar altamente desejável que os povos católicos independentes evitem, tanto quanto possível, de se esfarelar.

Sem nenhum prurido de sentimentalismo, seria oportuno lembrar a este propósito a grande missão unificadora de Joana d'Arc, que teve, ao menos em parte, este sentido profundo. Se a Inglaterra não tivesse sido confinada às Ilhas pela coragem aguerrida da Santa, que risco teria constituído para as almas a ação do protestantismo em território francês?

* * *

Ora, hoje mais do que nunca a integridade territorial da França convém à Igreja - “convém”, acentuamos, porém não é condição essencial de existência para a Igreja, que, ainda que perca a França ou a Europa inteira, não deixará por isto de existir, graças à indefectível promessa de Nosso Senhor.

Seria fácil imaginar a influência do protestantismo e do neopaganismo na Europa latina, com a França desmembrada! E esta influência os católicos a devem evitar absolutamente. Assim, pois, um poderoso interesse da Igreja existe em que o desmembramento francês não se opere.

Dito isto, está demonstrado que este desmembramento convém implicitamente aos inimigos da Igreja, por uma razão igualmente poderosa. E, assim, esses inimigos, que estão no momento com um extensíssimo poder político nas mãos, poderão se sentir interessados em fomentar esta questão que, como dissemos, é aliás inteiramente artificial.

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Existirá outra razão? Sem dúvida. Lembro-me ter lido, há muitos anos atrás em 1930, uma revista, “Le Franc-Catolique”, publicada em 1914 ou 1915, que, analisando a situação alemã, fazia esta pergunta que me pareceu perfeitamente estulta: “Ainda haverá no povo alemão quem acredite nos velhos deuses germânicos? Não haverá na Alemanha forças subterrâneas que trabalhem por uma ressurreição dos velhos cultos idolátricos?”.

Confesso, para minha maior confusão, que o simples enunciado do problema me desagradou profundamente. Pareceu-me ele tão estúpido, quanto este outro: “Não haverá no mundo contemporâneo forças ocultas trabalhando para que a humanidade comece a crer no chapeuzinho vermelho, e em outros contos de fadas?” Em suma, duvidei do equilíbrio mental do autor do artigo.

Como, porém, não tinha o que ler no momento, li o artigo. E confesso que a análise que seu autor fez da realidade objetiva estava tão bem traçada, que, apesar de minha péssima impressão inicial, considerei menos imbecil o autor. É preciso insistir mais uma vez em que o artigo foi escrito em 1914 ou 1915, tempo em que Hitler era um simples soldado raso do exército alemão, e de nazismo ninguém falava. Veio depois do artigo a derrota alemã, e ainda depois desta surgiu o nazismo. Pois o que fez o nazismo?

Confirmando a argumentação do já tão longínquo artigo da revista “Le Franc-Catolique”, ergueu-se como um chacal contra a Santa Igreja de Deus, e empenhou seus melhores esforços em restaurar os velhos cultos pagãos da Alemanha anterior ao apostolado de São Bonifácio. Em suma, o artigo do “Franc-Catolique” tinha razão.

* * *

Houve, pois, um tempo em que foi ridículo falar-se na “ressurreição” dos deuses alemães. E, entretanto, eles “ressurgiram”. Ora, é inegável que os velhos deuses celtas e bretões jamais morreram na imaginação popular de certas zonas da Bretanha, da Escócia e do País de Gales. Este fato é de domínio público. Penso que muitos dos leitores do “Legionário” já viram, em revistas brasileiras ou estrangeiras, fotografias de cerimônias célticas druídicas realizadas em qualquer daquelas regiões. Trata-se de coisas tão supremamente obsoletas, que se julgaria não haver ali senão uma mera cerimônia tradicional despida de qualquer conteúdo ideológico. É possível que em muitos casos isso se dê. Não, porém, em todos. Lembro-me perfeitamente de ter lido, em uma biografia de Augustin Cochin, a transcrição de uma carta em que este contava haver observado que os druidas, em certas regiões por ele percorridas, iam durante a noite fazer cerimônias pagãs com crianças recém-nascidas, e isto muito às ocultas. Os camponeses, em seguida, levavam a criança de manhã ao Pároco, para ser batizada. O Pároco, evidentemente, não era pelos pais informado dos manejos druidas.

Muito curioso é notar que os druidas eram quase sempre socialistas militantes.

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Assim, pois, há uma ou outra brasa do antigo paganismo ainda viva nas populações célticas. Soprando sobre ela a propaganda totalitária, não veremos amanhã uma “ressurreição” druídica, de inspiração totalitária, tentar levar a cabo, na Bretanha, na Irlanda, na Escócia e no País de Gales uma campanha à moda do paganismo do Sr. Rosemberg? Não seria isto para o nazismo uma maravilha?

Dirão muitos leitores que é tão estúpido pensar nisto, que a hipótese nem sequer merece análise. Não concordo. Também seria enormemente estúpido pensar, há 15 anos atrás, na restauração do velho paganismo alemão. Entretanto a realidade não está aí? O que prova isto senão que o mundo contemporâneo, rompendo com a Santa Igreja, chegou a um tal estado de aviltamento moral e intelectual, que se mostra apto a dar crédito a ídolos, tal e qual as populações do interior da África, ou os pobres índios de nosso sertão?

Aliás, uma nota publicada pelo “Diário de São Paulo” ultimamente dá-nos a informação de que existe um movimento organizado em sentido pan-céltico, e que visa fundar uma federação céltica abrangendo os povos bretões existentes na Bretanha francesa, no País de Gales, no Cornwal, na Escócia e na Irlanda. Esta federação não seria o caldo de cultura ideal para uma propaganda neo-pagã?

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Não se trata aqui de uma previsão certa. É uma hipótese. Mas uma hipótese que, caso aos nazistas convenha convertê-la em realidade, nada tem de absurdo.

Muitos dos leitores do “Legionário” pensarão talvez desta folha o que, em meu primeiro momento de espanto, pensei do artigo do “Franc-Catolique” a que me referi. Sorrirão. Tratarão, talvez, de sonhador o autor destas linhas. Mas assim como houve um articulista francês de 1914 que teve a coragem de escrever a verdade, e abrir os olhos, não só meus, mas ainda de muitos outros, assim também aqui ficam registradas corajosamente estas informações.

Queira Deus que, redundando isto em maior glória para a Santa Igreja, esta hipótese não se realize...


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