Plinio Corrêa de Oliveira

 

Lantejoulas

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 7 de fevereiro de 1943, N. 548

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Mostramos, em nosso último artigo, a grande farsa dos regimes totalitários em relação à Igreja. Cercando-a, embora, de todas as manifestações de simpatia e consideração oficiais, vão roubando lentamente, uma a uma, suas liberdades, e, em outros termos, algemam os católicos com correntes carregadas de lantejoulas. Penso que será muito difícil explicar no futuro como católicos, ricos em toda a espécie de predicados, se deixaram por vezes iludir por estratagema tão infantil. E isto sobretudo depois de haver a grande experiência alemã demonstrado de sobejo quais eram os verdadeiros intuitos do totalitarismo no mundo inteiro.

Com efeito, todos vimos como Adolfo Hitler, na concordata que celebrou com a Santa Sé, concedeu à Igreja tudo quanto entendeu, e só pediu em troca uma coisa: a dissolução do Partido Católico. Depois, privados os católicos de seu grande meio de defesa e combate, vieram aos poucos as violações da concordata, até ter como desfecho a perseguição aberta e declarada. E, no entanto, quase até o fim, as autoridades nazistas timbraram em enganar as massas, cercando o Episcopado de manifestações exteriores de respeito, que só não haveriam de iludir aos próprios homenageados, que sentiam pesar duros, aos pulsos, os grilhões da tirania pagã. E, entretanto, em todas as latitudes houve pessoas bastante míopes para se deixarem embair pelas cortesias e lantejoulas dos totalitários. Como se explica isto?

* * *

A explicação deste estranho fenômeno não pode ser dada sem um retrospecto à situação vigente para a Igreja no regime liberal.

Antes de tudo, é preciso notar que o liberal costuma ser inconsequente em tudo, exceto no erro e no mal. A sua lógica, titubeando embora através de mil hesitações, é em linhas gerais impecável. Ele encontra sempre o caminho para as soluções piores, e os modus faciendi mais capazes de atingir suavemente a meta desejada.

Por isto, na vigência do regime liberal tínhamos todos a sensação justificadíssima de que o laicismo não era senão um meio termo a caminho do ateísmo mais extremado e radical.

Daí uma situação de perpétua insegurança, que gerava em todos os espíritos a convicção de que se tornava necessária uma grande medida salvadora, uma grande e drástica “arrancada” sem a qual, cedo ou tarde, teríamos de enfrentar uma ciclópica revolução religiosa. Mesmo os espíritos acomodatícios e sistematicamente imprevidentes que faziam impossíveis para conciliar liberalismo e Catolicismo na ânsia de abrandar o adversário sentiam confusamente a iminência do perigo que se aproximava, e no segredo de seu coração anelavam que alguém manejasse por eles a espada que não tinham nem forças nem coragem para desembainhar. É isto que explica porque foram, em geral os católicos-liberais (?!) os que mais facilmente aderiram ao totalitarismo, ou ao menos os que com eles mais rapidamente se acomodaram.

Esta sensação de insegurança era tanto mais forte quanto a todo passo os católicos dos países liberais sentiam as manifestações exteriores da proscrição em que se encontrava a Igreja. Era esta a regra geral em quase toda a Europa e América. Havia uma grande solenidade cívica? Com aquele instinto católico que os leva a reportar todas as coisas ao Cristo Senhor Nosso e a sua Igreja desejavam ver associada a ela a religião. E entretanto [erro tipográfico – ilegível] ....das comemorações muitas manifestações populares, solenidades escolares, militares, etc. Nenhuma comemoração religiosa. No estrado das autoridades, muitos fraques, muitas fardas, muito brilho, mas como seria maior aos olhos de católicos este brilho se acentuado pela presença dos representantes da hierarquia eclesiástica. A todo o propósito, em todas as exterioridades da vida pública, o fato dominante, que a todo o momento feria sua sensibilidade era este: a Igreja era a grande banida. E, por isto mesmo, nos maiores fastos da Igreja, o Estado timbrava em se manter perpetuamente alheio. Um Metropolita se empossava, rejubilava todo o povo católico com o fato, engalanava-se a Igreja para recebê-lo: mas só as autoridades civis permaneciam desdenhosamente alheias. A Igreja cantava em algum soleníssimo Te Deum um hino de reconhecimento a Deus por qualquer grande graça: o senso do decoro mandaria que ali se representasse o Estado. E, no entanto, ele estava ausente. Chorava a Igreja alguma grande mágoa? Onde estava a homenagem filial que o Estado lhe devia? Os oficiais de gabinete enxameavam na mais insignificante das pequenas solenidades escolares ou esportivas. Só havia um gênero de solenidades à qual jamais eram enviados: eram as da Igreja.

A isto tudo acresce que, como dissemos, havia certa coerência nos homens liberais. Sinceramente empedernidos em seu laicismo, não só o professavam mas até o ostentavam escancaradamente. E, por isto, quando um ou outro raro estadista do regime liberal – houve em todos os países honrosas exceções que seria injusto omitir – infringia de qualquer maneira os cânones severíssimos do laicismo oficial, expunha-se a tais sarcasmos de seus pares, e até mesmo a tais hostilidades que, em via de regra, estas infrações eram prova manifesta de simpatia sincera para com a Igreja.

Assim, a situação era clara. Gozavam os católicos de um bem inestimável: a liberdade da Igreja, que podia, sem a insuportável petulância das interferências governamentais, nomear ou destituir livremente bispos e párocos, criar e dividir dioceses, multiplicar à vontade as paróquias sob o peso de um grave mal: o escândalo permanente do agnosticismo oficial. A liberdade lhes parecia tão natural quanto o ar que respiravam ou a luz que os iluminava: nem lhe sentíamos o valor. Pelo contrário, mediam, sentiam, palpavam a cada passo a extensão do escândalo do laicismo oficial. Em outros termos, para muitos, o grande problema parecia apenas este: fazer cessar este escândalo, a todo o preço. E não lhes passava pela cabeça este outro problema: conservar a todo o preço o inestimável bem da liberdade da Igreja.

Se uma opção entre as duas coisas devesse ser feita, indiscutivelmente optariam pela liberdade. Ninguém pode, em sã doutrina católica, optar por outro alvitre. Mas não era disto que se tratava. A liberdade lhes parecia tão fundamental e natural que nem lhes passava pela cabeça que lha roubassem. Atiraram-se, pois, resolutamente à conquista e conversão do Estado leigo.

* * *

Era o que esperava o totalitarismo. Encheu-os de toda a espécie de honras e obséquios oficiais. Suprimiu o Estado leigo, ou pouco faltou para tanto. Eliminou os mil indícios que a todo o momento lhes lembravam a proscrição da Igreja nos Estados modernos. Conservando-se embora leigo na medula de seu espírito, na índole de suas instituições, em toda a tendência de sua legislação, o Estado totalitário [...] segurou animosamente o tocheiro. Cobriu-os de lantejoulas e honrarias oficiais.

Depois de às vezes um século de laicismo oficial, tal visita deslumbrou os espíritos simples, que acreditaram que estas amabilidades eram o início de uma transformação radical. Nem lhes passava pela cabeça, a estes espíritos pobres (muito mais do que pobres de espírito) que se tramava contra a liberdade da Igreja. Confiaram. Entregaram tudo. Consentiram em tudo. Um belo dia, acharam que os braços do novo amigo eram muito fortes, seus presentes muito onerosos, suas amabilidades um tanto incoerentes. Quiseram protestar. Quiseram mover-se. Mas já era tarde. Quando quiseram debater-se com os braços, viram que estes já não estavam livres. Prendiam-nos as grossas e vistosas pulseiras, aceitas como presente num belo dia de confraternização.


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