Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

A "questão romana” - I

 

 

 

 

 

Legionário, N.º 602, 20 de fevereiro de 1944

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Os trágicos acontecimentos que submergem no momento o centro e o sul da Itália afetaram profundamente a situação da Santa Sé. A chamada questão romana adquiriu, assim, nova atualidade. Não será demais, pois, que à luz das tristes evidências destes dias de luto, raciocinemos um pouco sobre ela. E para isto, comecemos por lhe dar os termos essenciais.

A situação internacional especialíssima do Santo Padre provém de três causas essenciais:

a) o caráter divino de sua missão;

b) o inevitável conflito dessa missão com o desregramento das paixões humanas;

c) o caráter universal da Santa Igreja.

Analisemos o alcance de cada uma dessas causas no assunto de que nos ocupamos.

Disse alguém que a doutrina católica se assemelha a uma corrente com muitos elos. Aceito o primeiro, todos os outros se seguem necessariamente, com uma coerência impecável. Esta verdade precisa ser tomada em grande consideração na análise deste assunto.

A Igreja ensina que a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade “se fez carne e habitou entre nós”, que “padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado”, e pelos méritos infinitos de sua Paixão e Morte resgatou a humanidade pecadora. A fim de assegurar aos homens a continuidade dos benefícios da Redenção, o Divino Salvador instituiu uma sociedade sobrenatural, a qual incumbiu da tríplice missão de santificar, ensinar e governar as almas em tudo quanto dissesse respeito à sua eterna salvação. Essa sociedade é a Igreja Católica.

Fundada pelo próprio Deus, investida de poderes sobrenaturais pelo próprio Deus, organizada segundo sua imutável estrutura pelo próprio Deus, a Igreja adquiriu implicitamente um direito a existir, a se desenvolver, a exercer sua divina missão, a conservar sua invariável organização, que paira acima do arbítrio de todos os homens, de todas as instituições, de todos os estados, tanto quanto o Céu paira acima da terra.

Com efeito, se Deus instituiu, organizou e dotou de uma missão a Igreja, qualquer homem, qualquer classe, qualquer Estado que queira suprimir esta instituição, alterar essa organização, cercear a liberdade dessa missão se revoltará contra o próprio Deus. Essa revolta será um crime, quiçá o pior de todos os crimes. Nunca, porém, por mais prolongada e triunfante que pareça, gerará em benefício de quem quer que seja o direito de transformar a violência em ordem normal de coisas, e alterar de qualquer forma aquilo que, procedendo de Deus, a nenhum homem é lícito alterar.

Fundada por Deus, para o serviço de Deus, a Igreja só a Deus deve contas de sua missão. Ela é, pois, na esfera própria de suas atividades, isto é, na esfera espiritual, soberana no sentido mais amplo, genuíno e nobre da palavra. Não há poder terreno que prevaleça contra Ela.

* * *

Se é este o ensinamento da Igreja, compreende-se facilmente que, em relação aos poderes da terra, a Igreja só possa aceitar como legítima uma ordem de coisas que reconheça integralmente as conseqüências dessa doutrina. Soberana para todos os fins de sua missão espiritual, a Igreja Católica tem o direito de se mover livremente no mundo inteiro, de ensinar o que bem entenda, de se desenvolver à vontade, sem sofrer em nenhuma destas atividades a menor ou mais leve restrição.

Isto posto, compreende-se perfeitamente que o Santo Padre, Chefe visível dessa sociedade espiritual soberana, e no sentido pleno da palavra um verdadeiro soberano, o mais alto de todos os soberanos da terra, porque investido de missão espiritual e divina, que por isso mesmo sobreleva em sublimidade e nobreza todas as outras soberanias temporais e terrenas, como o Céu paira acima da terra.

Não queremos dizer com isto que a Igreja toque o governo temporal do mundo. Cristo ensinou e a Igreja conserva com desvelo a doutrina da distinção entre Poder Espiritual e Poder Temporal. Pairando acima da terra, o Céu nem devora, nem esmaga, nem oprime a terra; pelo contrário, céu e terra continuam perfeitamente distintos na ordem universal da criação. Mas é o céu que ilumina a terra, vem do céu as condições que tornam a terra aprazível e habitável. A luz do céu ilumina majestosa e placidamente a ordem terrena, em lugar de a perturbar ou subverter. Assim também a Igreja, pairando sobre todos os poderes temporais, não os destrói, não os absorve, não os diminui, mas pelo contrário ilumina de tal maneira a própria vida temporal, estimula de modo tão ativo e fecundo todas as circunstâncias favoráveis a ordem terrena, amplifica, eleva, consolida e nobilita de tal maneira o Poder Temporal sempre conservado rigorosa e plenamente soberano na esfera própria, que os revolucionários de todos os matizes sempre sentiram que não havia o meio mais seguro para abalar o poder Temporal do que atacar o Poder Espiritual. Devemos “dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Das muitas coisas que a César devemos dar, nenhuma é mais gloriosa, mais útil, mais honrosa que o diadema real de filho de Deus. César só é plenamente soberano, inteiramente estável na sua soberania, quando filho de Deus.

* * *

O Soberano Pontífice é, pois, o mais alto soberano dentre os que na terra existem. E de tal maneira ele o é, que violada, sofismada, de qualquer forma abalada sua soberania, tremem, se abalam, ruem por terra todas as soberanias temporais. Desde que o Papado foi instituído, o Poder Temporal adquiriu com isto um esplendor novo, uma força e uma nobreza até então desconhecidas, mas esta bela realidade não existe sem o inevitável reverso da medalha. Instituído divinamente o Papado, o Sumo Pontífice passou a ser a chave de cúpula de toda a ordem humana. Tocar no Papado é sacudir a coluna que sustenta o mundo.

Ora - chegamos aí ao segundo elemento da questão romana - a missão espiritual do Papado, benfazeja e gloriosa entre as que mais o sejam, suscitou no passado, suscita no presente, suscitará até a consumação dos séculos uma inevitável oposição.

Quando o velho Simeão, sustentando nos braços trêmulos de emoção o Menino-Deus, fez no Templo de Jerusalém, sua célebre profecia, "meus olhos viram o teu Salvador, que aparelhaste ante a face de todos os povos, como lume para ser revelado às nações, e para glória do teu povo de Israel", acrescentou "eis aqui está posto este Menino para ruína e ressurreição de muitos em Israel, e para ser o alvo ao qual atire a contradição", isto é o ponto de mira contra o qual se atirará a contradição, a oposição, o furor de todos os ímpios.

A impiedade teria um meio fácil de fazer mentir a profecia, e de encobrir a divindade da Igreja: consistiria em não a combater. Desde que a Igreja deixasse de ser também Ela o alvo contra o qual se jogam todas as oposições, todas as baixezas, todos os ódios humanos, não seria divina, porque Cristo será durante todos os séculos o alvo deste ódio, e onde as setas dos partidários do mal não confluem, aí não está Jesus Cristo.

Pelo contrário, até nossos dias e até o fim dos séculos, os ímpios tem cumprido rigorosamente a indefectível profecia. Com um furor, ora desmascarado e brutal, ora sagaz e falacioso, sempre perseverante e ativo, desde o início de nossa era até os dias presentes, a Igreja tem encontrado no exercício de sua missão as maiores oposições. Ela preceitua humildade às inteligências orgulhosas; Ela impõe moderação às sensibilidades infrenes; Ela obriga a uma inflexível mortificação os sentidos desregrados; Ela dobra e quebra os instintos que nos arrastam ao mal. No dia em que Ela deixasse de o fazer, a impiedade não a odiaria mais. Neste dia, também, Ela não seria mais de Jesus Cristo. Mas esse dia nunca chegará, porque a Igreja é indefectível, e Cristo nunca a abandonará. Até o fim dos séculos, Ela terá o seu trono circundado pelo amor de todas as almas de escol, mas ouvirá, subindo das profundezas do inferno até o escabelo de seus pés, o concerto de blasfêmias, de injúrias, o murmúrio confuso e omnímodo das conspirações urdidas contra Ela por todos os sequazes de Satanás na terra e nos infernos.

Dois dos elementos essenciais da "questão romana" já se delineiam, pois, a nossos olhos. O Papa é um soberano espiritual, investido de uma inalienável e intangível missão originária do próprio Deus. Mas esse soberano tem de lutar em toda a extensão do orbe da terra contra os poderes das trevas, para a realização de seu divino encargo.

* * *

Soberano de um reino todo espiritual, para o Papa não há fronteiras. Jesus Cristo abateu pessoalmente todas as fronteiras do mundo no que diz respeito ao reinado espiritual do Papa, quando impôs aos missionários que ensinassem "a todos os povos, batizando-os em nome do Padre, e do Filho e do Espírito Santo". Todos os povos foram chamados à Igreja. A Igreja estenderá sobre todos eles seus benefícios e suas bênçãos. O Papa tem e terá súditos suecos e malaches, new-yorkinos e siameses, tem e terá filhos nas geleiras da Suíça e nos ardentes arenais do Saara, nas regiões tórridas da Amazônia e na desolação hibernal da Groelândia. Esta Igreja que deve abranger todos os povos, por isto mesmo não pertence a nenhum deles, não pode e não deve ser governada por nenhum povo da terra. "Catolicismo" quer dizer "universalismo". Universal, a Igreja não tolera e não tolerará qualquer tentativa no sentido de se transformar em instrumento de ambição ou de poder de algum governo ou de algum povo. Mas, reciprocamente, enquanto no mundo houver déspotas e criminosos, haverá homens que concebam o torpe e sacrílego desígnio de escravizar a Igreja Católica a seu desejo de mando ou a sua vaidade patrioteira. Ora, de que forma se poderia processar este crime? Qual o golpe solerte, engenhoso, rápido que colocaria na dependência de algum potentado feliz os católicos do mundo inteiro? Evidentemente, um corpo tão vasto só pode ser dominado por um atentado contra sua cabeça. Dominada a Sé de São Pedro, estaria dominada a Igreja. Para o conseguir, quanto já se tentou! Nesta tarefa, quantos os fracassados! Entretanto, quantos ainda até a consumação dos séculos a empreenderão!

A Igreja precisa, pois, de uma situação tal que o Sumo Pontífice não esteja exposto aos atentados de mãos sacrílegas. Soberano Espiritual, convém à sua soberania ter pelo menos uma nesga de território em que realmente não seja soberano nenhum poder da terra. Não que à míngua deste território o Papado desaparecesse ou se deixasse enfeudar a qualquer país. Mas esta situação tornaria fáceis e quiçá impunes os atentados que lhe seriam feitos, e embora não subjugando o Pontífice, trariam ao desempenho normal de suas funções prejuízos e perturbações sem conta. A liberdade espiritual da Igreja - o que eqüivale a dizer a independência espiritual do mundo – reclama como condição essencial um território em que o Pontífice esteja a salvo de toda e qualquer mão sacrílega.

Vemos, pois, que do caráter divino da missão pontifícia, das inevitáveis oposições suscitadas por essa missão, do caráter universal da Igreja, brota como inevitável conseqüência a necessidade de um território onde o Papa seja soberano espiritual e temporal.

No próximo artigo, mostraremos a sabedoria e oportunidade das disposições mais relevantes do Tratado de Latrão, e analisaremos as condições criadas pela guerra moderna para a solução da "questão romana".

Nota: Os negritos são deste site.


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