Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera

Arquivamento de Encíclicas

 

 

 

 

 

 

Legionário, 29 de outubro de 1944, N. 638, pag. 5

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Em dois grandes grupos principais se dividem os partidários da campanha de silêncio em torno da palavra do Papa. Há os que publicamente recomendam que se arquivem as Encíclicas pontifícias, por constituírem um entrave à livre propagação dos erros modernos. Em segundo lugar há os que se confessam filhos obedientes da Igreja, mas na realidade vivem à margem da doutrina católica, passando por cima das definições e pronunciamentos pontifícios, com o que acabam encerrando as Encíclicas Papais num arquivo fechado a sete chaves. Esta última raça é mais perniciosa, por se filiar à dos escribas e fariseus. Não falam em arquivar as Encíclicas, mas de fato as arquivam.

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Vimos no último número como a confusão da tese e da hipótese a respeito das relações da Igreja e do Estado não constitui novidade, pois foi arma usada pelos “americanistas” neoliberais no fim do século passado. Prosseguiremos hoje a transcrição do que se acha a respeito no livro do Padre Maignen, por onde verão os nossos leitores que o arquivamento de Encíclicas também é expediente surrado.

 

Até estes últimos anos, um certo número de católicos e alguns teólogos achavam que era permitido estabelecer uma distinção entre a Encíclica Quanta Cura cuja autoridade é evidentemente a de um ensinamento ex cathedra da Santa Sé Apostólica, e o Syllabus, que eles acreditavam poder considerar como um documento anexado à encíclica e não tendo suas condenações outra autoridade doutrinal que a das alocuções pontifícias das quais todas as proposições haviam sido extraídas.

Em que pese a probabilidade dessa opinião no passado, ela não mais nos parece conciliável com a nova promulgação do Syllabus, inserido por Leão XIII no próprio corpo da Encíclica Immortale Dei. Com efeito, acha-se expressamente declarado, nessa Encíclica, que o Syllabus foi redigido por ordem de Pio IX, “a fim de que, neste dilúvio de erros, os católicos tivessem uma direção segura”. Eis, na íntegra, essa passagem da Encíclica sobre a Constituição Cristã dos Estados: ‘A respeito da separação da Igreja e do Estado, o Pontífice (Gregório XVI) se exprime nestes termos: “Nós não podemos esperar para a Igreja e o Estado melhores resultados das tendências daqueles que pretendem separar a Igreja do Estado e romper a concórdia mútua entre o sacerdócio e o império. E que, com efeito, os fautores de uma liberdade desenfreada temem essa concórdia, que tem sido sempre tão favorável e salutar aos interesses religiosos e civis”. “Da mesma maneira, Pio IX, cada vez que se apresentava ocasião, condenou as falsas opiniões mais em voga, e em seguida delas fez redigir uma súmula, a fim de que, em um tal dilúvio de erros, os católicos tivessem uma direção segura.

E, como para sublinhar ainda mais o alcance e o significado dessa declaração, Leão XIII fez reproduzir, em nota do texto de sua Encíclica, as proposições XIX, XXXIX, LV, LXXIX do Syllabus, as duas últimas das quais precisamente condenam a doutrina do americanismo. Mas ainda não é tudo; a fim de evitar todo equívoco, e de desautorar as distinções que se pudessem fazer, apoiando-se sobre o fato de que as referidas proposições eram simplesmente citadas em nota e não inseridas no texto da Encíclica, Leão XIII resume e confirma o conjunto  de seu ensinamento nestes termos:Dessas decisões dos Soberanos Pontífices (Gregório XVI e Pio IX), torna- se necessário absolutamente admitir que a origem do poder público deve ser atribuída a Deus, e não à multidão. Do mesmo modo, é necessário admitir que a Igreja, não menos que o Estado, por sua natureza e de pleno direito, é uma sociedade perfeita... Nas questões de direito misto, é plenamente conforme à natureza bem como aos desígnios de Deus, não de separar um poder do outro, menos ainda de os colocar em luta, mas o estabelecimento entre eles dessa concórdia que se acha em harmonia com os atributos especiais que cada sociedade tem por sua natureza. Tais são as regras traçadas pela Igreja Católica relativamente à constituição e ao governo dos Estados.”

Enfim, no parágrafo seguinte da mesma Encíclica, quando se aplica a justificar a Igreja da censura de uma injusta intolerância, Leão XIII renova a condenação da separação da Igreja e do Estado e da igualdade civil de todos os cultos:Ademais, não há para ninguém justo motivo de acusar a Igreja de ser inimiga, seja de uma justa tolerância, seja de uma sã e legítima liberdade. - Com efeito, se a Igreja julga que não é permitido colocar os diversos cultos no mesmo pé legal que a verdadeira religião, ela não condena por isto os chefes de Estado que, em vista de um bem a atingir ou de um mal a impedir, toleram na prática que esses diversos cultos tenham cada um seu lugar no Estado’.

Certamente, não se pode desejar um conjunto de declarações mais claras, mais formais e de uma autoridade mais incontestável. Os católicos não teriam “uma direção segura”, “neste dilúvio de erros”, em que se acham presentemente, se a “súmula” que Pio IX “fez redigir” tivesse apenas uma autoridade discutível; enfim, mesmo se o Syllabus não existisse, ou não tivesse valor ex cathedra, as encíclicas de Leão XIII bastariam para condenar as doutrinas que combatemos.

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Voltemos, entretanto, ao discurso do Congresso de Friburgo sobre o “Americanismo segundo o Padre Hecker”. Eis o artigo da Constituição americana relativa à liberdade de cultos, e o comentário, que a acompanha, do citado orador: ‘O Congresso não fará nenhuma lei para estabelecer uma religião de Estado, nem para impedir o livre exercício da religião’.

No artigo da Constituição americana que acabamos de citar, há duas cláusulas. A primeira interdita a instituição de uma religião de Estado, o que, dadas às circunstâncias e a época, significam a recusa em consentir no estabelecimento da religião protestante.

A segunda cláusula declara juridicamente que o Estado não tem competência alguma em matéria de religião, e que ele abandona, por conseguinte, o domínio religioso inteiramente à autoridade da Igreja. Sobre este ponto, o exercício da autoridade eclesiástica é absolutamente livre.

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Esta interpretação é uma interpretação, nada mais; poder-se-iam formular outras, e é pelo menos provável que os legisladores americanos tivessem uma, bem diferente daquela. Mas, apesar disso, pode ser admitida; é sobre ela que se baseia a atitude atual do Clero nos Estados Unidos, e enquanto os atos do governo permitirem que se acredite em sua exatidão, não se deve adotar outra.

Mas quem não vê a diferença de circunstâncias e de lugares? Em França, na Itália, na Espanha, na Áustria, poder-se-ia dizer que a interdição de constituir uma religião de Estado significa “a recusa em consentir no estabelecimento da religião protestante''? Em França, notadamente, poder-se-ia afirmar que a incompetência do Estado em matéria de religião implica "o abandono do domínio religioso inteiramente à autoridade da Igreja”?

Seria preciso ser voluntariamente cego para ignorar que em França e em quase toda Europa, a ausência de uma religião de Estado conduz à irreligião de Estado, e a incompetência ou a neutralidade religiosa do poder civil se traduzem, de fato no ateísmo obrigatório das instituições públicas e dos personagens oficiais.

Aí está por que Leão XIII, na Encíclica aos Católicos franceses, desejando evitar, sem dúvida, o abuso que poderia ser feito de sua palavra, expressamente condenou, em França, a aplicação de um regime que pode ser digno de tolerância  em outros países; ele interditou aos católicos a preconização dessa separação da Igreja e do Estado, precisamente por causa das intenções daqueles que a desejam.

Eis as próprias palavras de Leão XIII:

"Os católicos não devem sustentar uma tal separação. Com efeito, desejar que o Estado se separe da Igreja, será desejar, por uma consequência lógica, que a Igreja seja reduzida à liberdade de viver segundo o DIREITO COMUM a todos os cidadãos. Essa separação, é verdade, se produz em certos países. É um modo de ser que, se tem SEUS NUMEROSOS E GRAVES INCONVENIENTES, oferece também algumas vantagens, sobretudo quando o legislador, por uma feliz incoerência, não   deixa de se inspirar nos princípios cristãos, e essas vantagens, BEM QUE NÃO POSSAM JUSTIFICAR O FALSO PRINCIPIO DA SEPARAÇÃO, NEM AUTORIZAR SUA DEFESA, tornam entretanto digno de tolerância um estado de coisas que, praticamente, não é o pior de todos. Mas, em França, nação católica por suas tradições e pela Fé presente da grande maioria de seus filhos, à IGREJA NÃO DEVE ser colocada na situação precária que Ela sofre em outros povos. Os católicos não podem preconizar a separação, mesmo porque devem conhecer as intenções dos inimigos que a desejam" (Encíclica de 16 de fevereiro de 1892).

Ora, se não é a fim de preconizar a separação da Igreja e do Estado, com que objetivo os partidários da escola americana vem nos contar, a todo pretexto, os maravilhosos resultados da liberdade pública e do direito comum nos Estados Unidos?

Que interesse pode haver para um congresso internacional de sábios católicos, reunidos na Europa, em saber que o "douto e santo fundador dos Paulistas" admite cordialmente o americanismo em seu aspecto eclesiástico... porque, como Padre piedoso, zeloso e prático do século dezenove, depois de haver olhado em torno  de si e de haver tentado lançar suas vistas para o futuro, nada viu que fosse de natureza a melhor servir os interesses da Igreja na América"? Não podemos insistir demasiado sobre esta observação: se se trata somente de questões internas, religiosas ou políticas da América, a palavra americanismo não tem razão de ser, e estas questões não nos concernem mais do que aquelas da Alemanha ou da Rússia. Não há razão de com elas empolgar a opinião pública, em França, com uma insistência tão grande e, para tudo dizer, com tanta despesa.

Mais ainda. Mesmo para a América, e falando aos Bispos americanos dos assuntos religiosos de seu país, Leão XIII muito formalmente condenou o americanismo em algumas linhas da Encíclica Longinqua Oceani, de 6 de janeiro de 1895.

Eis as suas palavras:

“... No meio de vós, com efeito, graças à boa constituição do Estado, não estando a Igreja constrangida pelos laços de nenhuma lei e estando defendida contra a violência pelo direito comum e pela equidade dos julgamentos, deteve ela a liberdade garantida de viver e de agir sem obstáculo. Todas estas observações são verdadeiras; entretanto torna-se necessário evitar um erro: que não se vá concluir disso que a melhor situação para a Igreja é essa que Ela tem na América, ou então que seja permitido e útil separar, desunir os interesses da Igreja e do Estado como na América. Com efeito, se a religião católica é honrada entre vós, se Ela prospera, se, mesmo, Ela cresceu deve-se atribuir este fato inteiramente à fecundidade divina de que goza a Igreja, a qual, quando ninguém a Ela se opõe, quando nada lhe cria obstáculo, se estende por si  própria e se expande; entretanto ela produziria ainda mais frutos se gozasse não somente  da liberdade, mas também do favor das leis e da proteção dos poderes públicos".

Nada poderia ser mais claro e concebe-se o despeito de uma parte dos católicos norte-americanos que desviaram o golpe desferido em seu sistema, fazendo silêncio em torno desta Encíclica.

Trata-se, na realidade, de uma doutrina que coloca a separação da Igreja e do Estado entre essas coisas fundamentalmente americanas, que Deus deseja entre os povos civilizados de nosso tempo”. É a repetição da velha fórmula liberal: A Igreja livre no Estado livre. Encontramos a descrição viva e original desse despertar do liberalismo na pena de um escritor dos Estados Unidos:

“Aqui nos Estados Unidos, nós nos achamos às voltas com o liberalismo, que se disfarça com o nome de americanismo. A guarda de Napoleão dizia: “a guarda morre mas não se rende!” O liberalismo, pelo contrário, se rende algumas vezes e parece dormir, mas não morre nunca. Depois do ano de 1870, acreditava-se estar o liberalismo vencido para sempre, mas, neste país, faz-se pouco caso das lições da história, não se cuida do que existe na velha Europa, e o liberalismo se pôs em campo e se crê de novo vitorioso. Entretanto, prefere ser chamado americanismo. Esta palavra está bem escolhida, vos asseguro. Quando se censura seu liberalismo, eles se mostram espantados: “Então, dizem, não existe o liberalismo desde a definição de 1870: somos todos ultramontanos, mas somos católicos modernos”.

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Como dizíamos no começo desta crônica, o mal do arquivamento de Encíclicas é velho. Esta amostra convencerá qualquer leitor ingênuo.


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