Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Inimigos da Realeza Social de Jesus Cristo

 

 

 

 

 

 

Legionário, 5 de novembro de 1944, N. 639, pag. 5

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Para acentuar as analogias, ou melhor, a identidade do atual contágio liberal com o do século passado, transcrevemos hoje um dos mais sugestivos capítulos do admirável livro do Padre Henrique Ramière S.J.: “Le Règne Social du coeur de Jésus” editado em Tolosa em 1832. O Padre Ramière foi o organizador genial e devotado do Apostolado da Oração tendo sido também teólogo do Concílio Vaticano (I). A ele confiou o Santo Padre Pio IX o encargo de escrever a todo o Episcopado Católico, para promover a consagração do orbe cristão ao Sagrado Coração de Jesus em 1876.

O trecho que a seguir transcrevemos foi publicado em forma de artigo no “Méssager du Coeur de Jésus”, números de setembro de 1868 e setembro de 1871 sob o título de “Perigos do liberalismo católico”.

O mais perigoso inimigo da Realeza social de Jesus Cristo

“Havia no mundo um exército, cuja história, dezoito vezes secular, era uma série ininterrupta de reveses aparentes e de triunfos reais. Sempre em luta com inimigos cem vezes mais numerosos, vencera-os a todos, ainda que todos se lisonjeassem de o ter aniquilado a ele. Guarda de uma cidadela de que Deus constituíra protetor, ria-se dos assaltos dos poderosos da terra; e a inutilidade dos esforços empregados pelos maiores conquistadores a fim de o reduzir, dava-lhe o direito de desprezar os ataques futuros, que havia de enfrentar. Mas, eis que o inimigo, desesperado de vencê-lo pela força, recorreu a um estratagema infernal: dirigiu-se aos defensores da cidadela e a eles próprios confiou o cuidado de demolir as fortificações e de abrir-lhe as portas. Todavia, para obter seu concurso, não caiu na tolice de lhes propor abertamente a traição que sua lealdade teria repelido. Houve-se mais habilmente: fez apelo à sua generosidade; persuadiu-lhes que se eles tinham o direito de defender a cidadela, seus adversários tinham igual direito de atacá-la, e portanto a justiça exigia que, em vez de empenhar todas as forças em rechaçar seus ataques, defendessem os direitos dos assaltantes.

A intriga infelizmente surtiu efeito: no seio desse exército, que a união tornara invencível, formou-se um partido numeroso, que tomou como grito de guerra a liberdade de atacar, e os que não quiseram alistar-se nesse partido, viram-se, por parte de seus irmãos de armas, alvo duma hostilidade mais acerba que a dos próprios inimigos. Tal hostilidade estendeu-se até ao Chefe escolhido por Deus, para comandar esse exército. Seus próprios soldados, diante da firmeza com que mantinha no exército a disciplina, que até esse dia fora sua força, não temeram contestar-lhe a prerrogativa de sua autoridade suprema.

“Não há um só de nossos leitores que não tenha rasgado o véu transparente desta alegoria, e lobrigado nela os perigos a que o Liberalismo expõe o exército de Jesus Cristo. É ele, na verdade, a cizânia semeada pelo homem inimigo no campo do pai de família; é a armadilha na qual tantos corações nobres se deixaram apanhar; é o estratagema ao qual o imortal adversário da verdade deve vantagens que a violência jamais conseguira.

*

Que é, pois, o Liberalismo católico? É uma forma mitigada do liberalismo absoluto, ou por outra, do livre-pensamento. Foi sempre tática do pai da mentira unir aos erros extremos outros erros mais moderados, e por isso mesmo mais próprios para seduzir aqueles a quem repugnam as negações absolutas. Foi assim que o Jansenismo, luteranismo mitigado, arrastou no século passado, muitas inteligências, que teriam repelido com horror as blasfêmias de Lutero. Os livres pensadores são os protestantes do século dezenove, e os descendentes legítimos de Lutero. Este protestava contra a supremacia do Papa e contra a autoridade da Igreja: esses protestam contra a autoridade de Jesus Cristo e a supremacia da verdade. Lutero reclamava para qualquer cristão o direito de crer e de ensinar o que julgasse ter achado na Bíblia; esses reivindicam para todo homem o direito de pensar e de sustentar tudo o que sua razão inventa. Os protestantes não queriam nenhum dogma fixo na ordem sobrenatural; os livres pensadores não querem nenhum princípio fixo na ordem racional. A seus olhos, não existem senão opiniões, e o poder público não tem direito algum sobre estas opiniões; deve deixar-lhes mais ampla liberdade de se produzir e de se espalhar. Que se ataque a existência de Deus e da alma, a vida futura e as leis mais essenciais da moral, a lei civil nada tem que ver com isso. Não há delito de opinião, já que o pensamento é livre, a palavra e a imprensa devem sê-lo igualmente. Tal é o liberalismo absoluto, que se chama também racionalismo, a grande heresia dogmática do século dezenove.

O liberalismo católico está longe de chegar a este ponto. Não faz ao erro monstruoso concessões que destruiriam a integridade da fé; não nega que haja uma verdade absoluta, à qual o homem deva dar o assentimento da sua razão; não contesta a divindade de Jesus Cristo e a autoridade da Igreja, mas concorda com o livre-pensamento em encerrar a fé nessas verdades dentro da esfera da consciência individual. Com respeito à sociedade e ao poder que a governa, segundo ele, a verdade não tem mais direitos que o erro. Em ambos, o poder público não vê senão opiniões, cuja liberdade é obrigado a proteger, enquanto não recorrem à violência, para estorvar a liberdade das opiniões contrárias.

“Assim, aos olhos dos liberais, quer católicos, quer anticristãos, a lei deve ser ateia, isto é, não se ocupar de Deus, mais que se não existisse. Para ela, seus preceitos são inexistentes, nula sua autoridade, sem valor sua revelação. No foro íntimo, como cristão e como homem, o magistrado pode crer tudo isto, mas como magistrado, no exercício de sua autoridade, deve comportar-se absolutamente como se nada crera.

A teoria liberal exige, pois, de todos os cristãos, ocupados em cargos públicos que tenham duas consciências: uma consciência individual, segundo a qual conformarão com a lei de Deus todas as suas ações particulares; e uma consciência pública, que lhes permitirá não fazer caso algum desta lei, no desempenho de suas funções. Como cristãos, ouvirão missa, e como magistrados assistirão ao lançamento da primeira pedra duma mesquita. Se vivêssemos ainda no tempo do paganismo, acompanhariam César ao templo dos ídolos.

“Não afirmamos que todos os liberais católicos admitem esta teoria em toda sua extensão. Sabemos pelo contrário que muitos recusam levar até o fim a consequência de tais princípios, mas nem por isto esta consequência se segue menos logicamente dos princípios. Com efeito, não há meio termo: ou a sociedade é sujeita a Deus e então é obrigada a defender-lhe os direitos, e a conformar-se com seus preceitos, e tal é a doutrina católica; ou a sociedade é independente de Deus e então tem o direito de não se ocupar absolutamente dele, e isto é o ateísmo legal. A aplicação das duas teorias pode sofrer diversas modificações, mas as teorias em si mesmas se excluem absolutamente, e devemos por força escolher entre uma e outra. Se defendemos, ao menos em teoria, a supremacia da verdade, somos cristãos; se concedemos ao erro os mesmos direitos que à verdade, somos liberais. Para o liberalismo anticristão, esta igualdade é absoluta; para o católico liberal, é relativa apenas à sociedade e ao poder que a governa; são dois erros diversos, mas que concordam em negar os direitos da verdade. Com efeito, ainda que esta segunda forma de liberalismo seja muito menos repugnante que a primeira, não é menos contrária à doutrina católica, e não exageramos qualificando-a de heresia. Pois é evidente que nega ao mesmo tempo os direitos de Deus, de Jesus Cristo e da Igreja.

Ou Deus não é nada ou é Soberano Senhor de tudo, das sociedades como dos indivíduos. Querer, pois, pô-lo fora da lei, é contestar-lhe a autoridade essencial, é negar-lhe a existência; o ateísmo legal conduz necessariamente ao ateísmo doutrinal.

Jesus Cristo, não menos que Deus seu Pai, tem direito às homenagens e à obediência das sociedades. Quando veio à terra, o eterno Padre lhe deu por herança não só as almas, mas também as nações. Constituiu-o Rei soberano e único Salvador, e tanto aos povos como aos indivíduos se aplicam as palavras do Apóstolo: “Não há, debaixo do céu, outro nome fora do nome de Jesus, no qual os homens se possam salvar.” O liberalismo, portanto, autorizando os povos a não fazer caso dos ensinos e dos preceitos de Jesus Cristo na sua existência coletiva, atenta igualmente contra os direitos do Pai celestial e os do seu Unigênito Filho.

“Atenta do mesmo modo contra a autoridade da Igreja. Com efeito, Ela foi constituída depositária soberana do Verbo incarnado e intérprete suprema da sua lei. Jesus disse aos Apóstolos: “Ide, instrui todas as nações, e ensinai-lhes a guardar tudo o que vos mandei.” Aqui não há distinção entre deveres sociais e deveres individuais. Não disse aos apóstolos: “Ensinareis a cada homem o que deve a Deus, mas não vos ocupareis do que os homens, reunidos em sociedade, devem uns aos outros.” Não se trata somente dos indivíduos, mas das nações. Quando, pois, o liberalismo subtrai as sociedades à autoridade da Igreja, deixando-lhe somente as consciências individuais, dum só golpe reduz a nada a instituição de Jesus Cristo e a missão da Igreja.

“Sim, reduz a nada, porque a verdade é una e indivisível; querer dividi-la em duas partes, e sacrificar uma às exigências do mundo, para melhor conservar a outra, é destruí-la inteiramente. Estamos dispostos a desculpar, quanto quiserem, as intenções dos católicos que fazem este cálculo, e imaginam prestar deste modo grande serviço à verdade, mas não podemos deixar de dizer-lhes com o Papa, que semelhante serviço prestado à verdade pelos seus defensores, lhe é mais nocivo que os violentos ataques de seus inimigos.

“É o juízo de Salomão aplicado às avessas, não já sobre uma criança mortal, mas sobre a imortal verdade. A divisão que, no pensamento de Salomão, não passava de fingimento, quereriam os católicos liberais realizá-la em matéria na qual é manifestamente impossível. Colocados entre sua consciência, que é cristã, e a opinião pública, que já o não é, querem salvar uma e outra; tomam, pois, a espada e tentam cortar a verdade em dois pedaços. À opinião pública cedem os direitos sociais desta divina verdade, e guardam preciosamente para si os direitos individuais. Como é que não vêm que esta verdade divina assim mutilada não é mais a verdade, e nada mais tem de divina? Se não é regra das relações sociais, evidentemente não merece as homenagens dos indivíduos. Concedendo, pois, este ponto ao livre pensamento, concedem-lhe tudo; entregam a cidadela e sacrificam a coroa do divino Rei, de quem se gloriam de ser defensores.

“Mas, dizem os católicos liberais, se recusamos à opinião pública esta satisfação, irritamo-la contra nós e nos colocamos na impossibilidade de exercer sobre ela qualquer influência.

Sim, do mesmo modo que os cristãos dos primeiros séculos não podiam confessar a unidade de Deus e a divindade de Jesus Cristo, sem levantar contra si a opinião pública de seu tempo. É sempre o mesmo combate, posto que o terreno seja diferente. É a luta secular contra Jesus Cristo.

Pretender facilitar a salvação do mundo, sacrificando os direitos do Salvador, seria iludir-nos com uma esperança insensata; com isso só faríamos tornar a salvação impossível. Primeiro porque Jesus Cristo não seria mais o Salvador verdadeiro, se não fosse o Salvador necessário, e em segundo lugar, porque em vez de conquistar o afeto do mundo, só granjearíamos o seu desprezo; enfim porque a verdade deixaria de ter força para salvar os homens, quando seus defensores deixassem de afirmá-la em toda a sua integridade.

“De fato, não são os ataques dos inimigos que enfraquecem a verdade; estes ataques, pelo contrário, fazem com que ela brilhe ainda mais. É de sua essência ser combatida pelo erro, como é de essência da luz ser contrária às trevas. Enquanto a verdade é afirmada altivamente, corajosamente, integralmente por aqueles que ela escolheu por órgãos na terra, conserva todo o seu poder, para esclarecer as inteligências de boa-fé. Mas se os órgãos encarregados de manifestá-la ao mundo, não a afirmam senão por metade, como poderão as mentes obscurecidas conhecê-la? Que proveito não tirará o erro para combatê-la, das imprudentes concessões de seus defensores?

“Não há dúvida: esses erros mitigados, que seduzem católicos e até Sacerdotes, são incomparavelmente mais funestos à verdade que os erros extremos professados unicamente pelos ímpios declarados. Se o candeeiro destinado a alumiar a casa estiver escondido debaixo do alqueire, como poderão os moradores deixar de tropeçar nas trevas? Se o sal vem a tornar-se insípido, que restará ainda para preservar o mundo da corrupção? Portanto, Pio IX não disse nada demais quando denunciou o liberalismo como um flagelo mais temeroso para a França católica que as violências dos tiranos da Comuna. Falando assim, não comparou os católicos liberais aos Comunardos, mas os resultados da ilusão dos primeiros, com as consequências da tirania dos segundos”.


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