Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera

Plebs christiana

 

 

 

 

 

Legionário, 24 de dezembro de 1944, N. 646, pag. 5

  

 

Em discurso pronunciado quando ainda na vice-presidência da república norte-americana, afirmou o sr. Henry A. Wallace que a “democracia é a única expressão política verdadeira do Cristianismo”.

A sentença é de um protestante. O católico, porém, sabe que “há erro e perigo em atar sistematicamente o catolicismo a uma forma de governo, erro e perigo que são mais graves quando se cifra a religião a um gênero de democracia cujas doutrinas são errôneas” (Pio X).

Há hoje em dia a tendência em se contrapor a democracia aos totalitarismos. Somente aquela seria aceitável pelos que de fato amam a verdadeira liberdade. Na realidade porém a democracia pode ser totalitária. É o caso da “democracia social” que tende ao nivelamento das classes e à igualdade de bens, e que faz a autoridade residir no povo. O assunto se presta a desvios lamentáveis e não é esta a primeira vez que presenciamos as consequências funestas dessa confusão de idéias.

Em fins do século passado, os efeitos da Encíclica “Rerum Novarum” foram imensos. Surgiam na ordem intelectual vários e importantíssimos trabalhos referentes ao salário, legislação social, aos limites da intervenção do Estado na vida econômica e brilharam nomes como os de Cathrein Pesch, Weiss, Mayer etc. Em pouco tempo os frutos da famosa Encíclica apareciam: a “plebs christiana” se congregara aos pés da Igreja.

Em 1893 pela primeira vez foi proclamada na Bélgica a expressão “democracia cristã” no sentido de “partido dos que pretendem, sem usurpar os direitos alheios, dar ao trabalho o posto que lhe corresponde, mercê das oportunas reformas feitas sob a bandeira de Cristo e de sua Igreja”.

Não tardaram, porém, a surgir os desvios doutrinários. Pretendia-se ir ao povo para conquistá-lo, mas tal conquista se fazia muitas vezes à custa de erros, de início velados, mais tarde claros e perniciosos. Surgiram os que procuravam desviar essa ação popular dos católicos, ou “democracia cristã”, como foi batizada na Bélgica, para o lado da “democracia social”, dando-lhe feição política no sentido dos princípios revolucionários pregados pelos democratas liberais e socialistas. Não faltaram também os que desejavam introduzir na Igreja uma constituição diferente da que lhe deu Seu Divino Fundador. Acreditava-se que a Igreja não fazia o bem que devia, porque não modificava sua atitude.

Impunha-se, portanto, que Roma falasse para esclarecer os espíritos. Foi o que fez o santo Padre Leão XIII, publicando a 18 de janeiro de 1901 a Encíclica “Graves de communi”.

É dessa Encíclica o trecho que a seguir transcrevemos. Por ele vemos a preocupação do santo Padre em dar à expressão “democracia cristã” o sentido exclusivo de ação popular dos católicos sem qualquer ligação com o sentido político da palavra democracia. E mostra o Soberano Pontífice como a “democracia social” é incompatível com a doutrina católica, por conduzir ao que hoje chamaríamos totalitarismo socialista. Mais ainda: a “democracia cristã” verdadeira no sentido de ação benéfica e cristã em favor do povo, é própria da Igreja e lhe deve estar sujeita.

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Não há dúvida alguma sobre o que pretende a democracia social e sobre o que deve aspirar a democracia cristã. Porque a primeira em muitos chega a tal grau de malícia, que nada admite fora do natural, busca exclusivamente os bens corpóreos e externos, pondo a felicidade humana em sua aquisição e gozo. Daí seu desejo de que a autoridade resida na plebe, para que, suprimidas as classes sociais e nivelados os cidadãos, se estabeleça igualdade de bens, como consequência seria abolido o direito de propriedade e a fortuna dos particulares, assim como os meios de vida passariam a ser comuns.

Pelo contrário, a democracia cristã, pelo próprio fato de receber esse nome, deve estar fundamentada nos princípios da Fé divina, atendendo de tal sorte ao interesse dos plebeus que procure aperfeiçoar saudavelmente os espíritos, destinados a bens eternos. Nada, pois, para ela tão santo como a justiça, manda que conserve íntegro o direito de propriedade, que se defenda a diversidade de classes, própria de toda sociedade bem constituída, e quer que sua forma seja a que o próprio Deus, seu autor, tem estabelecido.

Por onde claramente se infere que nada existe de comum entre a democracia social e a cristã, e que elas entre si diferem como se diferenciam a seita do socialismo e a profissão da Religião cristã.

Não seja, ademais, lícito referir à política o nome de democracia cristã: pois apesar de democracia, segundo seu significado e uso dos filósofos, denotar regime popular, sem embargo na presente matéria deve entender-se de modo que, deixado todo conceito político, unicamente, signifique a mesma ação benéfica e cristã em favor do povo. Porque como os preceitos naturais e evangélicos excedem por si a todos os feitos humanos, é impossível que dependam de qualquer regime civil, antes bem podem harmonizar com qualquer regime, contanto que não repugne à honestidade e à justiça. São, pois, e permanecem alheios inteiramente os ditos preceitos às opiniões dos partidos e a todo evento, de modo que, seja qual for a constituição do Estado, possam e devam os cidadãos cumprir aquelas mesmas leis, nas quais se lhes manda amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmos. Esta foi a disciplina constante da Igreja e dela usaram os Soberanos Pontífices ao tratar com as sociedades, qualquer que fosse sua forma de governo. Pressuposto isto, a mente e ação dos católicos, ao promoverem o bem dos menos favorecidos, de modo nenhum há de tender a desejar e tratar de induzir um regime social com preferência a outro.

Por idêntica razão, deve-se remover da democracia cristã outro conceito, que é atender de tal modo as classes humildes, que pareçam preteridas às superiores, as quais também contribuem para a conservação e aperfeiçoamento da sociedade. A esta necessidade provê a leda Caridade, à qual já fizemos menção, e que abrange a todos os homens de qualquer condição, como membros de uma família, criados por um mesmo bondoso Pai, remidos por um mesmo Salvador e chamados à mesma herança eterna. Esta é a doutrina do Apóstolo: “Um corpo e um espírito, como fostes chamados em uma esperança de vossa devoção. Um senhor, uma Fé, um Batismo. Um Deus e Pai de todos, que se acha sobre todos e por todas as coisas e em todos nós” (Eph. IV, 4-9). Em consideração, pois, da união natural da plebe com as demais classes, afiançadas pela fraternidade cristã, nestas há de influir necessariamente toda diligência que se empregue na ajuda daquela, o que melhor se concebe tendo em conta que, para o êxito nesta ordem, é necessário que aquelas classes sejam chamadas a tomar parte na obra, com o que nos ocuparemos a seguir.

Evite-se, por isso, encobrir sob a denominação de democracia cristã o propósito de insubordinação e oposição às autoridades legítimas, porque a lei natural e cristã prescrevem reverência aos que, segundo sua posição, regem a sociedade e obediência a seus justos preceitos. O que o cristão há de fazer para que seja digno de si próprio, sinceramente e como um dever. Isto é por consciência, como admoestou o Apóstolo, quando disse: “toda alma está submetida às potestades superiores” (Rom XIII, 1-5). Não se porta, por conseguinte, de modo cristão o que recusa submeter-se e obedecer aos que gozam de autoridade na Igreja, e em primeiro lugar aos Bispos, os quais, salvo o poder do Romano Pontífice, “foram postos pelo Espírito Santo para governar a Igreja de Deus, a qual Ele adquiriu com Seu Sangue”. O que de outra maneira sinta ou se conduza, se olvidou daquele gravíssimo preceito do mesmo Apóstolo: “obedecei a vossos superiores e permanecei a eles submissos. Porque eles velam; como hão de dar conta de vossas almas”. Em sumo grau interessa que os fiéis gravem em seu coração o exposto e o cumpram na conduta de sua vida; os Sacerdotes por sua vez não cessam de inculcá-lo aos demais, não somente pela palavra, mas pelo exemplo.

Explicada e esclarecida esta doutrina, esperamos que desapareça toda dissenção a respeito do nome de democracia cristã e toda suspeita de perigo quanto ao que com tal nome se entende. E o esperamos com razão. Porque aparte algumas opiniões particulares sobre a natureza e eficácia desta democracia cristã, nas quais há exagero ou erro, nada haverá que censure essa ação, que somente aspira, segundo a lei natural e divina, a ajudar aos que vivem do trabalho de suas mãos, a tornar menos penoso seu estado, e proporcionar-lhes meios para atender às suas necessidades: a que fora como dentro de seus lares cumpram livremente os deveres das virtudes e da religião; a que se persuadam de que não são animais porém homens cristãos e não pagãos; e desta maneira se dirijam ao último bem, para o qual todos nascemos. Este é, em verdade, o fim, esta a empresa dos que entranhadamente querem aliviar a plebe cristã e preservá-la incólume da peste do socialismo.

De propósito fizemos menção dos deveres morais e religiosos. Na opinião de alguns, a chamada questão social é somente econômica, sendo pelo contrário certíssimo que ela é principalmente moral e religiosa e por isto há de se resolver em conformidade com as leis da moral e da religião. Aumentai o salário do operário, diminui as horas de trabalho, reduzi o preço dos alimentos, mas se com isto deixais que ouça outras certas doutrinas e sofra a influência de certos exemplos, que o induzem a perder o respeito devido a Deus e à corrupção dos costumes, seus próprios trabalhos e ganhos se arruinarão. A experiência quotidiana ensina que muitos operários de vida depravada e desprovidos de religião, vivem em deplorável miséria apesar de que com menos trabalho obtenham maior salário. Afastai da alma, os sentimentos que nela infiltrou a educação cristã; tirai a previsão modéstia, parcimônia, paciente e demais virtudes morais, e inutilmente se obterá a prosperidade, ainda que conseguida à custa de grandes esforços. Esta é a razão por que jamais exortamos os católicos a fundar sociedades e outra instituições, para o feliz futuro da plebe sem recomendar-lhes ao mesmo tempo que o façam sob a tutela e auspícios da religião”.

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Concluiremos em nosso próximo número a transcrição desta importante Encíclica. Veremos que a democracia cristã, ou ação popular dos católicos é própria da Igreja. Veremos também qual o campo em que se exerce essa benfazeja ação social que de modo nenhum se confunde com a ação política a que erroneamente se pretende atrelar a lei do Evangelho.