Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
A volta do filho pródigo

 

 

 

 

 

 

Legionário, 29 de abril de 1945, N. 664, pag. 5

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Estamos na semana da festa litúrgica de São Pio V. Melhor ocasião não podíamos encontrar para encerrar o estudo que nos dois últimos números encetamos das características de uma sociedade internacional vitalmente cristã, segundo as lições contidas no “Curso de Direito Natural” do insigne Taparelli (d'Azeglio).

Com efeito um dos maiores títulos de glória do grande filho de São Domingos ao ser elevado ao Trono de São Pedro, foi o de ter concebido e realizado, já em plena Renascença, uma Liga ou Confederação dos Estados Católicos destinada à defesa da Cristandade.

Hoje de novo tremendos perigos ameaçam os povos resgatados pelo precioso Sangue do Nosso Divino Salvador. E será em vão que os responsáveis pelos destinos das nações procurarão resolver o problema de uma paz duradoura, feita à base da harmonia entre os povos, se se afastarem dos princípios que alicerçaram a nossa civilização ocidental. Não se poderá nem sequer falar em civilização, pois é verdade (e verdade proferida pela voz autorizada de Pio X), que não existe verdadeira civilização a não ser a católica, fruto da missão destinada por Nosso Senhor Jesus Cristo à Sua Igreja.

Passemos, portanto, a completar o que sobre o conceito de Cristandade ensinou o celebrado autor do “Saggio (di Diritto Naturale)”.

* * *

Como consequência da última tese que demonstramos em nosso último número, segundo a qual entre os povos católicos se origina naturalmente uma sociedade de forma poliárquica, que tende a colocar no Sumo Pontífice grande parte da autoridade internacional, sociedade esta distinta da Igreja, ainda que lhe esteja essencialmente ligada e subsista nela, a que se dá o nome de Cristandade, vamos hoje apresentar os seguintes corolários:

1º.) Não se pode conceber que o chefe dessa sociedade seja um membro separado da Igreja e seu inimigo, pois todo superior é parte da sociedade e deve dirigí-la para o seu fim.

2º.) Se a Cristandade é poliárquica, pelo acordo dos chefes cristãos, ela tende a conferir sua autoridade a um ou vários membros. Foi esse acordo que, na Idade Média, confiou essa autoridade aos Sumos Pontífices. Eles garantiram o direito, pela autoridade espiritual, e os recursos por meio dos imperadores cristãos confederados entre si, na unidade do Sacro Império Romano.

3º.) Sendo essa tendência natural da autoridade da Etnarquia Cristã para o Pontífice, motivada por uma certa força resultante da própria função do Pontífice, é necessário que esta força seja anterior à posse de tal autoridade. Ela subsistirá, por conseguinte, dentro de seus antigos limites, mesmo depois que aquela posse se transferiu a outros.

Vejamos agora as objeções que se poderão levantar contra esta questão.

Inicialmente estudemos o que se pode arguir contra a tese de que a sociedade universal do gênero humano só pode existir moralmente numa sociedade religiosa.

Pode-se, com efeito, argumentar que é falso tenderem as sociedades temporais para a união numa única sociedade religiosa. Pelo contrário: 1º.) os fatos mostrariam que se robustece, cada vez mais, a tolerância civil de toda as religiões, à medida que se dilata a comunicação recíproca. 2º.) O motivo disto seria evidente: quanto mais aumenta o número, mais difícil se torna a união das cabeças ou espíritos.

Estas dificuldades podem ser resolvidas pela simples negativa da asserção. Realmente, quanto ao 1º. argumento, nesta objeção, parece que se considera como perfeição aquilo que é apenas o início, e como início aquilo que é perfeição. Todas as sociedades civis, plasmadas pelo Cristianismo, começaram pela tolerância, que é o estado normal da religião pública nascente. Quando, porém, atingiram seu pleno desenvolvimento, deram força de lei à religião. Nada para admirar, portanto, se uma sociedade internacional, que nasce por assim dizer sob nossos olhos, ainda adere à tolerância. É manifesto, porém, que a tolerância não é a perfeição. Também as famílias e cidades cristãs, embora tivessem mantido antes tenazmente sua religião no lar, depois toleraram publicamente o arianismo gótico e as outras impiedades bárbaras, após a formação da família europeia. Esta, porém, não atingiu a perfeição senão depois de se tornar religiosamente una. Logo que cessou essa unidade, tanto se afastou ela da perfeição quanto se afastou da unidade.

Quanto ao segundo argumento, podemos responder que a razão aduzida combate os adversários porque confirma a segunda parte de nossa tese. É, de fato, muito verdade ser difícil a um homem conseguir trazer sua opinião aos espíritos de muitos. Para a Verdade mesma, porém, isto é muito mais fácil, porque é o objeto formal para onde as inteligências tendem por um impulso natural. Será suma a dificuldade da unidade religiosa, se ela houver de originar-se de opiniões humanas; será nula, porém, se provir da verdade infalível, que Deus comunicou na religião sobrenatural. Portanto, poderá a religião divinamente revelada o que não pode a filosofia.

Poder-se-á insistir dizendo que isto é teologia: o filósofo não põe intervenção sobrenatural de Deus nos fatos de ordem natural. É falso, porém, que não a ponha em nenhuma ordem. Antes na própria ordem natural o filósofo deve admitir a intervenção de Deus. Do contrário, nem o metafísico explicaria a existência dos seres, sem a criação, nem o filósofo moral a tendência da vontade ao sumo bem, sem a realidade de um Bem Infinito. Não é, pois, de estranhar que, em todas as outras ciências, tanto teóricas quanto práticas, o ponto necessário de partida seja o sobrenatural e que a ele levem todos os desejosos de uma explicação cabal dos fenômenos deste mundo.

Poder-se-á negar, também, contra o que dissemos, o direito da Igreja sobre o organismo e os bens dos membros ou fiéis. Alegar-se-á que os órgãos e as posses são como coisas materiais. Ora, toda a ordem material dependeria unicamente e sem apelação, da autoridade temporal. Donde se segue que dela somente e não da Igreja dependem o organismo e os bens dos sócios. Logo, a Igreja não teria de si mesma o direito de infligir penas sensíveis ou possuir bens temporais.

Eis a solução desta dificuldade. Em primeiro lugar, se assim fosse, então a Igreja, que o Criador do mundo enviou para unir os povos, para pregar e batizar, oferecer sacrifícios a Deus e governar os fiéis, no meio de tantos e violentos trabalhos e perseguições, essa Igreja, dizemos, deveria pedir aos seus perseguidores um lugar para se reunir, meios para as despesas do culto, tempo determinado para suas assembleias e concílios. E caso o perseguidor negasse os meios temporais, a Igreja não teria direito de usar deles e, se usasse, cometeria um crime. Que bela missão teria a Igreja, assim, recebido do seu Divino Fundador!

Em segundo lugar, esta objeção confunde a posse civil com a política ou o domínio com o direito de organizar socialmente.

O organismo e os bens de cada sócio não são propriedade nem da Igreja nem do Governo, mas do indivíduo a quem pertencem. Para ele o corpo é um instrumento unido substancialmente com a alma e os bens são sustento do corpo. Mas uma vez associados os indivíduos, então, em virtude do dever que os reúne, devem congregar suas atividades e os outros meios externos, concorrendo assim para organização deles próprios.

E como estes devem em tudo observar a ordem visível entre os sócios, devem também determinar a ordem das contribuição a saber: com que atividade e com que auxílios materiais devem eles contribuir, para o bem comum. Só o indivíduo, portanto, é proprietário. Inscrito porém numa sociedade, está obrigado a contribuir para tantos fins quantas forem as sociedades a que se ligou, e sob a direção de outros tantos superiores, de que depende cada uma das sociedades e a ordem delas. E se por acaso houver conflito alguma vez nas ordens dos superiores, pelas leis de colisão, prevalecerá o direito mais forte. Nem por isso cessará de existir o direito dos outros.

O mesmo se diga do direito penal. Nenhuma sociedade tem direito de torturar alguém só por mero prazer. Se um sócio, porém, fechando os ouvidos à razão, tem um proceder tão irracional que não seja possível mantê-lo na ordem senão à força de meios sensíveis, também destes poderá usar qualquer sociedade. Contudo, como podem as sociedades exceder ou impedir a ordem da maior, esta tem direito, não só de regular naquelas o uso dos castigos, mas também de cercear os abusos. Assim a sociedade pública limitou o direito penal dos pais e a autoridade suprema o dos barões feudais etc. Não é outro o proceder da Igreja.

Dir-se-á, porém: mas a Igreja não precisa desse direito porque pode recorrer ao braço secular. Além do que ela mesma não quer usar desse direito, visto que ela tem horror ao sangue.

Quanto à primeira parte da dificuldade, responderemos que a Igreja persistir e progredir na sua atividade, apesar da oposição dos governantes perseguidores e para tanto ela precisa de uma existência independente deles. O agir conforma-se ao existir. Uma Igreja dependente nunca agiu independentemente.

Quanto à segunda parte, responderemos que: 1º.) tratamos de filosofia e não de cânones. Não nos incumbe, pois, aventar o que fará a Igreja segundo o Espirito do Evangelho, mas o que de direito pode fazer conforme a natureza. 2º.) Note-se, além disso, que a Igreja, embora aborrecendo o sangue, contudo ela empregou sempre castigos moderados mesmo no Concílio Ecumênico Tridentino.

Note-se, também, que a Bula Dogmática de João XXII contra Janduno condenava neste heresiarca entre outros erros, o de negar à Igreja o direito do castigo corporal. Mas isto será fora do que nos propusemos estabelecer. Quem desejar mais informações consulte os canonistas católicos.

Afirmamos que o homem não pode impor condições a Deus, ou com Ele estabelecer e rescindir contratos.

Dir-se-á, porém, que muitos contratos da Santa Sé com os governos seculares encerram condições que restringem o direito da Igreja. Logo, a própria Igreja reconhece que se lhe pode impor condições e restrições.

Comecemos por uma distinção. Muitos contratos realizados com governantes infiéis ou pouco religiosos ou obcecados por más doutrinas, de fato encerram tais condições, porque em tal caso a Igreja cede à violência e não reconhece nenhum direito.

Em muitos contratos realizados com governos fiéis e piedosos e não iludidos por diplomatas astutos, temos a subdistinguir: em tais casos e contratos, adota-se de comum acordo uma sábia medida para que ambas as autoridades combinem na administração. Negamos, porém, que com isso se restringe o poder da Igreja.

É claro que se um chefe de Estado católico pretendesse essa restrição ele seria filho rebelde à sua Mãe.

Dissemos que, sendo a tendência natural da autoridade na Cristandade para o Soberano Pontífice motivada por uma certa força resultante da própria função do Pontífice, é necessário que essa força seja anterior à posse de tal autoridade. E que ela subsistirá, por conseguinte, dentro de seus antigos limites, mesmo depois que aquela fosse se transferir a outros.

Surgirá aqui a objeção de que se parece acenar para o restabelecimento da teocracia medieval, o que em nossos dias seria grande insensatez.

A isto responderemos que seria insensatez restaurar alguns caracteres daquela Idade, menos conformes ao espírito cristão e à cultura atual. Quanto a restaurar o poder do direito sobre a força, segundo a interpretação da Igreja, teremos que subdistinguir: se por nossos dias se entende a dominação ímpia e protestante, concedemos. Se o verdadeiro progresso da civilização, negamos.

Mais ainda. Se todo progresso depende da tutela e proteção da autoridade viva, e consiste no triunfo do direito sobre as forças materiais, quanto mais se aproximar do perfeito progresso da sociedade, tanto maior necessidade se deve sentir da influência pontifícia na política, nem poderão os clamores dos ímpios retardar por muito tempo o curso natural da razão humana e social.