Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
A coparticipação nos lucros e na gestão das empresas

 

 

 

 

 

Legionário, 9 de setembro de 1945, N. 683, pag. 5

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Está na ordem do dia o problema da participação nos lucros e na gestão das empresas, como um dos meios preconizados para a solução da questão social.

Trata-se de medida de grande alcance e que, adotada com o necessário bom senso e a imprescindível circunspeção que a delicadeza do assunto exige, não deixará de produzir reais benefícios ao organismo social.

Já o Código social de Malines assim se manifestava a respeito:

“A gestão das empresas pertence de fato mais comumente aos possuidores de capital ou capitalistas.

“Pode dar-se que os trabalhadores se tornem coproprietários de uma parte do capital da empresa que os ocupa. Então se realiza o que se chama cogestão.

“Um dos meios de realizar a copropriedade entre capitalistas e trabalhadores e por conseguinte a cogestão é o acionariato do trabalho.

“Este regime do acionariato reveste diversas formas. Ora as ações da empresa são atribuídas aos trabalhadores da empresa, individual ou coletivamente, sem que eles tenham que subscrever estas ações: é a atribuição gratuita.

“Ora, as partes de benefício ou os prêmios que tenham podido adquirir a título individual se transformam automaticamente, desde que sejam suficientes, em ações da empresa. Outras vezes, enfim, os trabalhadores individual ou coletivamente destinam tudo ou parte de suas economias a comprar na Bolsa ações da empresa.

“Quando o Sindicato reúne para este fim as economias de seus membros é qualificado de sindical.

“Devem ser acompanhadas com interesse essas tentativas que parecem encaminhadas para a gestão combinada do capital e do trabalho.

“A cogestão pode se realizar ainda por outros meios úteis, tais as delegações do pessoal no seio dos conselhos diretivos, principalmente nas empresas organizadas como serviços públicos” (Código de Malinas, capítulo VIII).

* * *

Como vemos, a própria variedade das formas do acionariato está a indicar com que cuidado se há de aplicar este sistema, e o fato de que ele pode não ser igualmente vantajoso a todos os ramos de empresas. Não se trata, evidentemente, de uma panaceia e o católico, neste assunto, se coloca léguas dos demagogos socialistas que, com inqualificável ligeireza, incutem no espírito crédulo dos operários a ideia de que, amanhã, em um novo regime social, reinará o mais completo igualitarismo nas fábricas e nas usinas, cabendo exclusivamente à mão de obra os frutos do trabalho.

Sabe o católico que “laboram certamente em erro os que não duvidam de proclamar, como princípio, que tanto vale o trabalho e deve ser remunerado com tanto quanto valem os frutos por ele produzidos, e por isso o que presta sua mão de obra tem o direito de exigir quanto com o seu trabalho se alcançou; princípio cujo absurdo aparece também do que expusemos, tratando da propriedade” (Pio XI na “Quadragesimo Anno”).

E compreendendo que o regime do acionariato não é uma panaceia que se aplique a todos os casos e que seja capaz de resolver em todos os seus ângulos, a questão da remuneração do trabalho, capacita-se o católico de que a instituição da coparticipação nos lucros e na gestão das empresas está muito longe de significar necessariamente a proscrição do regime de salariado. Com efeito, diz Pio XI:

“É em primeiro lugar a afirmação de que o contrato de oferta e de ajuste da mão de obra seja por natureza injusto, e portanto deva ser substituído por um contrato de sociedade, é afirmação gratuita e caluniosa contra o Nosso Antecessor, cuja Encíclica Rerum Novarum não só o admite, mas trata longamente sobre o modo de discipliná-lo segundo as normas da justiça”.

O próprio Pio XI se estende pormenorizadamente sobre a questão do salário, e encara o acionariato ou contrato de sociedade, mais especialmente como meio de temperar o contrato de trabalho, que tem base no direito natural:

“Todavia, julgamos mais apropriado às condições presentes da vida social o temperar algum tanto, na medida do possível, o contrato de trabalho com elementos adquiridos do contrato de sociedade. É o que já se principiou a fazer sob várias formas, com não poucas vantagens para os mesmos operários e patrões. Deste modo os operários são chamados a participar de algum modo na propriedade da empresa, em sua gestão e com partes em certa medida nos lucros que ela proporciona”.

* * *

É preciso que distingamos entre a teoria e a prática, neste delicado assunto. Não basta teorizar, mesmo sem o desejo de fazer demagogia. A questão dos fatos tem aqui importância capital. Antes de um passo decisivo, precisamos nos basear num “saber de experiências feito”. E neste sentido assim se expressou Monsenhor Olgiati em seu livro “Il Divenire Sociale”:

“Concedamos que a utilidade social possa justificar a introdução, através de meios honestos e com os devidos reembolsos, de uma nova estrutura econômica; mas duvido muito que a passagem das empresas, mediante o acionariato, para as mãos dos trabalhadores, seja um fato tão simples como alguns o imaginam.

“Suponhamos – por enquanto afortunadamente a hipótese é improbabilíssima – (este livro é anterior ao advento do fascismo, quando o Parlamento italiano ainda decidia as questões que lhe eram submetidas) que o Parlamento italiano votasse o projeto Valente, segundo o qual, quando a maioria dos trabalhadores de uma empresa o desejassem, mediante a participação e o acionariato, o negócio passaria para a propriedade daqueles que nele trabalhassem. Amanhã quase todos os estabelecimentos da Itália, de empresas capitalistas seriam transformadas em empresas cooperativas. O salariado seria abolido; mas receio que também a indústria seria ferida de morte. Não basta a posse do capital para a gestão de uma empresa industrial. Tanto é verdade que com o mesmo capital um empreendedor ganha 10, 20, 30 por cento; e um outro perde tudo o que tem. A classe trabalhadora não se acha ainda preparada para o grande passo: falta-lhe formação técnica  e consciência moral e nem uma nem outra serão criadas pelo acionariato”.

E continua Olgiati:

“Em vez de se recorrer a uma intervenção legislativa, manda o bom senso que se recorra a uma experiência de acionariato”. É preciso ter paciência, diz ele, e não pretender conseguir, em uma hora, que uma semente se transforme em planta desenvolvida. É preciso educar a classe operária, hoje muito e muito deficiente sob mil aspectos.” A experiência – que pode ser muito diversa segundo os lugares e as circunstâncias, e que pode ir do acionariato individual ou coletivo ao acionariato sindical - não deveria consistir unicamente na materialidade da posse de uma ação de trabalho e na divisão de dividendos mais ou menos lautos, mas na organização das corporações de artes e ofícios, com todas as providências necessárias para elevar o espírito do operário, para instruí-lo, para plasmá-lo, para o tornar capaz de assumir nas empresas as funções que as responsabilidades de coparticipante exigem”.

* * *

A participação nos lucros, nos casos especiais em que pode ser feita, em geral se realiza mediante a redução da quota do patrão e o aumento da quota do empregado. Salvas determinadas circunstâncias bem caracterizadas, não se poderia, sem ferir a justiça, obrigar o patrão a vender sua parte na empresa por este processo.

Isto posto, ainda é preciso lembrar que a participação nos lucros não quer dizer a propriedade da totalidade dos lucros, mas deve compreender, de direito natural, a justa remuneração do capital, a compensação pelo risco a que este pode estar exposto e a retribuição pelas funções diretoras.

Ademais, a participação nos lucros, pelo acionariato, obriga, em geral, a um crescente aumento do capital social, o que o estado de muitas empresas não justifica. Neste caso e quando as ações da empresa não podem ser adquiridas, visto esta não comportar novas inversões, os operários seriam obrigados a aplicar os lucros que recebessem em outras empresas, das quais passariam a ser meros capitalistas.

Vê-se por aí como o problema é complexo e daqueles que, segundo Pio XI salientou ao tratar da justa proporção do salário, só os levianos “julgam poder resolver facilmente, recorrendo a uma única medida, que está muito longe da realidade.”

Com efeito, embora não haja quem, de reta intenção, possa deixar de perceber as vantagens do regime de acionariato, na aplicação prática surgem inúmeras dificuldades que impedem a sua generalização. Sobretudo devem ser levadas em consideração as condições a serem preenchidas para a coparticipação. O simples fato de se pertencer a uma determinada empresa será suficiente para se passar à categoria de coparticipante ou deverão ser preenchidas certas exigências quanto à habilitação profissional, ao espírito empreendedor à vontade de trabalhar e à criação de estímulo para os empregados diligentes e dedicados em contraposição com os turbulentos e ociosos?

Deverá ser um sistema rígido, mediante o qual o empregado seja forçado a adquirir partes em um negócio por natureza arriscado e sem estabilidade, ou cujos dirigentes individuais ou coletivos sejam aventureiros sem escrúpulos? Como apurar os lucros em empresas cujas despesas e transações estejam sujeitas a segredo, como caso da indústria bélica e de outras de interesse nacional, como há pouco aconteceu com as pesquisas relativas ao radar e à bomba atômica? E uma vez apurados os lucros, onde seja fácil fazê-lo, como fixar a percentagem da coparticipação? E o problema da mobilidade da mão de obra? Estudem-se os tratadistas sobre o assunto e ver-se-á que o acionariato, como solução geral, não se acha na fase dos remédios de aplicação provada e conhecida, isto sem contar os fatores psicológicos oriundos do atual espírito das massas trabalhadoras que estão a exigir a máxima prudência no uso desta terapêutica, para que não se repita entre o operariado e os entusiastas irrefletidos da medida a fábula do homem e do amigo urso.

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Sobretudo neste assunto devemos fugir à tentação de querer resolver com simples meios materiais um problema que é eminentemente de ordem moral.

As medidas preconizadas por Leão XIII ou por Pio XI no campo social e econômico pressupõem o homem com sua natureza decaída, e capaz de reerguer-se apenas com a graça de Deus, pela prática das máximas contidas nos Evangelhos e pela recepção dos sacramentos.

Embora muito tenhamos que fazer no campo social e econômico para minorar o sofrimento dos desprotegidos da fortuna e para elevar o nível de vida das classes operárias, a fim de lhes proporcionar uma subsistência compatível com a dignidade humana é mister evitar o messianismo da “Nova Ordem”, que seria a transformação da terra num novo jardim de delícias. Ainda há poucos dias um “socialista cristão” nos fazia lembrar a seguinte advertência de Leão XIII:

“Se há quem, atribuindo-se o poder fazê-lo, prometa ao pobre uma vida isenta de sofrimentos e de trabalhos, toda de repouso e de perpétuos gozos, certamente engana o povo e lhe prepara laços, onde se ocultam para o futuro mais terríveis calamidades que as do presente.”

“O melhor partido consiste em ver as coisas tais quais são e, como dissemos, em procurar um remédio que possa aliviar os nossos males” (Leão XIII, Encíclica Rerum novarum).