Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
A paz social e o espírito do mundo

 

 

 

 

 

Legionário, 16 de setembro de 1945, N. 684, pag. 5

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Diz Santo Agostinho, na “Cidade de Deus”, que Nosso Senhor costuma castigar por meio de flagelos juntamente os bons e os maus, porque os bons de ordinário dissimulam a maldade dos maus, sem ensiná-los nem adverti-los de seu fatal estado, entre outras razões “porque desejamos evitar inimizades que talvez nos impeçam e prejudiquem em nossos interesses temporais”.

Esta advertência do grande Doutor da Igreja deve ser lembrada ao tratarmos do problema da paz social que agora prende a atenção de todos, uma vez feita a paz das armas.

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Em nossos dias se formou, entre os inimigos declarados da Igreja e dos fiéis católicos, partidos intermediários que pretendem conciliar o “espírito do mundo” com o espírito dos Evangelhos. Os homens pertencentes a esses partidos não são materialistas ou ateus completos: fazem profissão de crer na divina missão de Nosso Senhor Jesus Cristo, e na origem divina da Igreja. Não são completamente católicos, pois não somente na prática, mas na própria teoria admitem certos princípios ou certas aplicações do racionalismo e do materialismo.

Entre os sinais característicos desses semicatólicos, podemos assinalar principalmente os seguintes: a pretensão de tudo conciliar. Desse falso espírito de conciliação nasce a diminuição e confusão das verdades sobrenaturais, o laxismo, a indiferença religiosa a deturpação de nossa Fé, como é por exemplo a visão unilateral das verdades reveladas. Realçam-se as verdades suaves e consoladoras - ocultam-se as verdades austeras. É o império da prudência da carne.

Os semicatólicos ou católicos vacilantes têm grande admiração pelo que está na moda.

Se está em moda a evolução, ele é evolucionista; se está em moda o liberalismo, é liberal de quatro costados; se está em moda o fascismo, bate palmas aos camisas pretas; se está em moda o socialismo ou comunismo, ninguém tem maiores bigodes do que ele.

Para o semicatólico a salvação do mundo não se acha em Jesus Cristo e em sua Igreja, mas em quantos “salvadores” se apresentam para revolver a “questão social” por meios humanos, sejam esses “salvadores” simples indivíduos ou sejam sistemas revolucionários. Tricolor em 1789 (Revolução Francesa, n.d.c), e vermelho em 1945 (comunista, n.d.c.).

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O que aflige vosso país e o impede de merecer as bênçãos de Deus, dizia Pio IX a um grupo de peregrinos franceses, “é a confusão de princípios. Direi a palavra, não me calarei: o que temo para vós não são esses miseráveis da Comuna, verdadeiros demônios escapados do inferno, mas o sistema fatal que sonha sempre em conciliar duas coisas irreconciliáveis: a Igreja e a revolução. Já o condenei; mas o condenarei ainda 40 vezes, se for preciso.”

Torna-se necessário, dizia Leão XIII, evitar em ser conivente com as opiniões falsas, ou de combatê-las com menos vigor do que a verdade exige”.

E o Santo Padre Pio XII, gloriosamente reinante, em uma de suas alocuções nos dias da ocupação de Roma, disse que os males do mundo moderno têm suas origens na falta de espírito de Fé e no apoio dado às idéias errôneas.

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A Fé professada por muitos católicos de hoje, dizia (Mons. Félix) Sardá y Salvani, é uma simples convicção humana. E mesmo nem a isso chega, porque ainda as simples convicções humanas dão ao homem uma inteireza que os tais não costumam ter. Não são, pois, nem convicções humanas as suas; ficam, talvez, na categoria de frouxas e vacilantes opiniões. Infelizes atacados de lepra generalizada! Creem, mas sem se atrever a dizer que seja falso que em oposição a eles creem seus inimigos! E o homem que à boca cheia não pode dizer que o que crê seu inimigo em Religião é mentira, é evidente que não tem a segurança completa do que seja a verdade. Por onde vemos que não é bom católico o que não crê que são más e perversas doutrinas todas as que são pregadas contra o Catolicismo; nem é bom católico o que como más e perversas não as detesta e abomina; nem é bom católico o que este horror não procura mostrar em todo conjunto de seus pensamentos, palavras e obras em matéria de Religião.

Por amor à paz, à paz que não é de Nosso Senhor, à paz comodista dos que querem servir a Deus e ao mundo, não nos devemos deixar arrastar pelo pensamento de que talvez não seja oportuno resistir de frente à iniquidade poderosa e dominante, compartilhando dos receios daqueles que acham que a luta exaspera demasiadamente os maus. Tais homens, indaga Leão XIII, são a favor ou contra a Igreja? Não saberemos dizer. Porque, de um lado, dizem professar a doutrina católica mas, ao mesmo tempo, desejariam que a Igreja deixasse livre curso a certas teorias que lhe são contrárias. Soltam sentidos gemidos pela perda da Fé e pela perversão dos costumes, e não é raro que aumentem a intensidade desses males, seja por uma indulgência excessiva, seja por uma dissimulação perniciosa.

A prudência desses homens, continua o Santo Padre, é bem aquela que o Apóstolo São Paulo chama a sabedoria da carne e morte da alma. Nada menos próprio a diminuir os males do mundo que uma semelhante prudência. Todo católico deve ser um valente soldado de Cristo, e os que pretendem obter as recompensas prometidas aos vencedores, vivendo como pessoas laxas e abstendo-se de tomar parte no combate, estes não são capazes de deter a invasão do exército dos maus, mas secundam seus progressos.

Outros afetando um falso zelo, ou, o que ainda é mais repreensível, simulando sentimentos que desmentem sua conduta, se arrogam um papel que não lhes pertence. Pretendem subordinar a conduta da Igreja às suas próprias idéias. Agir assim, diz a Santa Sé inerrável, não é seguir a autoridade legítima; é evitá-la e transferir a particulares e leigos, por uma verdadeira usurpação, os poderes da magistratura espiritual, com grande detrimento da ordem que o próprio Deus constituiu para sempre em sua Igreja e que Ele não permite a ninguém violar impunemente (Encíclica “Sapientiae Chistianae”).

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Não consiste a paz, para o verdadeiro católico, em cruzar os braços diante dos erros que procedem do espírito do mundo. “Disse-vos isto para que tenhais a paz em mim. No mundo passareis tribulações; mas tende confiança, eu venci o mundo” (Jo. 16,33) E é neste sentido que Nosso Senhor nos assegura que não nos veio trazer a paz, mas a espada. E o Santo Padre Pio X, falando certa vez a um grupo de peregrinos franceses, nos lembra em cores bem vivas a luta contínua que constitui a vida de homem justo sobre a terra. Luta contra os inimigos internos e externos, contra as paixões e contra os inimigos de Deus e de sua Igreja.

A paz desejada por Nosso Senhor não é certamente a paz como a entendem as Chancelarias.

Que é, na verdade, a paz?

A paz, diz Santo Agostinho, é a “tranquilidade da ordem”. Segue-se naturalmente que a paz não será concedida aos indivíduos e à sociedade a não ser que a ordem, depois da haver sido perturbada, volte a essa “tranquilidade individual ou social”.

Ora, é a Fé que nos faz conhecer as relações cuja harmonia constitui essa ordem desejada por Deus no mundo.

Em primeiro lugar, será necessária a aceitação prática do soberano domínio do Criador sobre todas as obras de suas mãos - soberano domínio sobre os povos e sobre as nações; em segundo lugar, a afirmação da  supremacia do espírito sobre os sentidos – sem desconhecer o que há de animal em nossa natureza, devemos nos lembrar que é a nossa alma com suas potências que nos distingue dos seres irracionais e nos coloca na dignidade de filhos de Deus; enfim, o amor sincero e prático de nossos semelhantes. Sem essa tríplice harmonia, diz o Santo Padre Bento XV, nenhuma “tranquilidade da ordem” é possível.

Hoje em dia, diz o mesmo soberano Pontífice, não é mais na ordem das relações internacionais, mas entre os próprios concidadãos que se declarou uma nova guerra, ainda mais implacável: guerra de inveja, de ódio cego, que vai até a atacar o direito, a caridade, o bem estar social das próprias multidões que ela lança nas mais tremendas convulsões”.

“Do mesmo modo que o indivíduo se insurge contra o indivíduo, nós vemos, em uma escala maior, a sociedade se insurgir contra Deus. Da liberdade se passou à tolerância; a tolerância deu origem às facções; o espírito de facção trouxe consigo as querelas; as querelas degeneraram em ostracismo. A prova é que o próprio Deus passa hoje em dia por um estranho! A Sociedade deseja bastar-se a si mesma e a razão pretende ser o único fator de progresso da humanidade!

“Aonde nos conduzirá essa loucura do naturalismo? Na ordem individual, o olvido do sobrenatural conduz ao egoísmo e faz pesar sobre todos as cadeias dessa escravidão; na ordem social nos conduz à revolução, à anarquia, à ruina” (discurso de Natal de 1919).

Não consiste, portanto, o problema da paz unicamente na volta ao nosso bem estar material, não consiste a paz no modo tranquilo como possamos usufruir dos bens terrenos, pois para nós, criaturas resgatadas pelo precioso sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, todos esses bens parciais e efêmeros devem ser usados como meios para nos ajudar a atingir nosso fim último, que é a bem-aventurança eterna. Seja nossa norma de vida usá-los enquanto nos conduzem a esse fim, abandoná-los, quando nos afastam do caminho da salvação.

Devemos entesourar merecimentos, por meio de nossos atos praticando as ações virtuosas que Deus espera de nós. Essas ações e esses atos devem ser espontâneos. Devemos ser movidos por impulsos próprios, sem violência nem coação. Embora nossas ações boas ou más somente sejam julgadas quando voluntárias, podemos ser responsáveis por atos ou omissões que procedem do erro e da ignorância, quando somos culpados dessa ignorância e desse erro por recusarmos negligentemente tomar conhecimento de nossas obrigações.

Conduzem-nos as virtudes ao fiel e generoso cumprimento da lei.

E mais importante que qualquer lei humana é a lei divina, o decálogo, são os dez mandamentos que podem ser resumidos nos dois principais: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos.

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Mas, indagamos, será bastante a tutela da lei divina para praticarmos a verdade e evitarmos o pecado?

Não. Necessitamos, para cumprir a lei, do auxílio da graça, dessa graça que Deus concede ao homem para ajudá-lo a praticar o bem e fugir do mal.

Se Deus não vem em nosso auxilio, remediar-nos os estragos causados na natureza humana pelo pecado original e atual, não poderemos praticar todas as virtudes nem evitar todos os pecados. Isto dizemos com relação às próprias virtudes e pecados na ordem natural, pois, se considerarmos a virtude sobrenatural e seu exercício como meio para a conquista da bem-aventurança eterna, aí é que absolutamente nada podemos sem o auxílio da graça divina.

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Em resumo, portanto, a paz para o cristão se reduz no Reino de Deus, nesse Reino que se acha dentro de nós. E assim como o Reino de Deus está dentro de nós, “assim também o reino da Santíssima Virgem está principalmente no interior do homem, isto é, em sua alma, e é nas almas principalmente que Ela é mais glorificada com seu Divino Filho do que em todas as criaturas visíveis, de modo que podemos chamá-la com os santos, Rainha dos corações” (Grignion de Montfort).

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Nunca Deus fez e formou senão uma inimizade, mas esta é irreconciliável e há de durar e mesmo aumentar até o fim do mundo: entre a Santíssima Virgem e o demônio. “Porei inimizades entre ti e a Mulher, entre sua descendência e a tua; ela te esmagará a cabeça e em vão armar-lhe-ás ciladas ao calcanhar” diz Deus à serpente no Paraiso.

Portanto, para obter a paz para o mundo, não recorramos ao que nos dita a carne e o sangue, mas à Celeste Medianeira de todas as graças.

Diz Nosso Senhor que Satanás não expulsa a Satanás. Não será, assim, o comunismo que livrará o mundo dos últimos redutos de resistência do nazismo, nem o liberalismo que nos livrará do comunismo. Somente a verdade nos libertará e esta verdade nós não a encontramos nessas doutrinas reiteradamente condenadas pela Santa Sé infalível, mas no fiel cumprimento dos mandamentos de Deus e da Igreja, que não precisa de salvadores, mas que pelo contrário, oferece aos povos e aos governos o único porto de salvação que é Nosso Senhor Jesus Cristo.

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Eis a mensagem de Fátima. Aparecendo àqueles três obscuros pastorinhos, quis Deus manifestar o poder de seu braço, abatendo os poderosos e exaltando os puros e humildes de coração.

Para alcançar a paz para o mundo, a Celeste Medianeira de todas as graças não propôs aos homens todo um programa de assistência material ou de reajustamento de fronteiras.

Para obter a paz para o mundo, a Mãe de Deus nos veio exortar a mudar de vida e a não mais afligir com o pecado a Nosso Senhor. Para alcançar a tranquilidade que tanto almejamos neste mundo conturbado pelas misérias e pelos sofrimentos, convida-nos a Virgem Santíssima a recitar o Santo Rosário e a fazer penitência pelos nossos pecados.

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Mas por acaso não estamos no século do rádio e da energia atômica? E não foram aqueles os remédios que em plena Idade Média a Santíssima Virgem confiou ao zelo de São Domingos contra os erros e devastações dos hereges albigenses?

E essas três crianças de Fatima que usam cilícios como se ainda vivessem no tempo de um São Jerônimo ou de São Francisco de Assis!

Não vê então a Santíssima Virgem que os tempos modernos não comportam essas velharias?

Certamente a Rainha dos Céus não se deixa levar pelos remédios e opiniões dos sábios e orgulhosos desta terra. Ela não ignora que seu Divino Filho é o mesmo ontem, hoje e para todo o sempre. E o problema do mal e das misérias humanas se prende àquela mesma serpente antiga, ao eterno Pai da Mentira que roubou a paz e a felicidade terrena de nossos primeiros pais.

E ontem, como hoje, para a conquista da paz e da concórdia entre os homens, é preciso que inicialmente trabalhemos para que Cristo reine nos corações.

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Lúcia, Francisco e Jacinta, a quem Nossa Senhora lhes apareceu em Fátima (1917)

Para obtermos esta graça, volvamo-nos para nossa Rainha e Advogada.

Maria, sobretudo nestes últimos tempos, diz o Bem-aventurado Grignion de Montfort, deve, mais que nunca, reluzir de misericórdia, de força e de graça: de misericórdia, para fazer voltar e receber amorosamente os pobres pecadores e transviados que se hão de se converter e volver à Igreja Católica; de força contra os inimigos de Deus, os idólatras, cismáticos e ímpios obstinados que se hão de rebelar de um modo terrível, para seduzir e fazer cair por meio de promessas e ameaças todos que lhes forem contrários; deve reluzir de graça, finalmente, para animar e confortar os valentes soldados e fiéis servos de Jesus Cristo, que pugnarão por seus interesses.

Ultramontanos e piedosos devotos da Rainha dos Anjos, unidos ao Papa e à Santíssima Virgem, não sejamos como aquele ridículo iracundo administrador de Vila Nova de Ourém, que há vinte e oito anos atrás, a 13 de agosto de 1917, prendia os três pastorinhos de Fátima, impedindo-os de ir ao encontro aprazado com a Santíssima Virgem. Não impeçamos através de nossos atos e de nossa malícia, que se realizem as comunicações sobrenaturais entre o Céu e a terra. Pelo contrário, tenhamos abertos os corações às moções da divina graça e não poupemos esforços e sacrifícios e orações para que através da Santíssima Virgem, Cristo volte imperar em nossas almas, em nossas famílias, em todas as nações.