Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
O “direito da força” e a força do direito

 

 

 

 

 

Legionário, 4 de novembro de 1945, N. 691, pag. 5

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A humanidade ainda não se libertou completamente dos efeitos nefastos das doutrinas que negam o direito, ou o violam, sobretudo das doutrinas que pregam “o direito do mais forte”, que faz com que o êxito seja o critério para se avaliar o justo.

Eis porque julgamos muito oportuno ocupar esta crônica de transcrições com alguns trechos magistrais dos capítulos em que o professor Guido Gonella (1905-1982), do “Osservatore Romano”, trata do “Mito da força” e da força do direito, em seus “Princípios básicos para uma ordem internacional”, livro que encerra as anotações do autor às mensagens do Santo Padre Pio XII, publicados pelo órgão oficioso da Santa Sé.

Efetivamente, declara o redator do “Osservatore Romano” e catedrático da Filosofia do Direito da Universidade de Bari, “a impossibilidade de negar o direito pela força é involuntariamente confessada pelos próprios defensores de tal negação. Muitas tentativas se fizeram para disfarçar em direito as criações da arbitrariedade, para fazer aparecer como justo o que não era mais que amargo fruto da imposição, para persuadir ao oprimido de que a servidão podia ser mais proveitosa que a liberdade. E quando o direito positivo já não oferecia a estes tais liberdades, nem argumentos, nem expedientes sofísticos, então apelavam para a história, na qual nunca faltam exemplos de fraudes, que são trazidos à memória para representar o cômodo papel de “antecedente”, como se uma iniquidade precedente pudesse oferecer argumento para justificar uma iniquidade subsequente; ou apelam para um mítico “direito natural”, que às vezes nada mais é que uma artificiosa projeção ideológica da arbitrariedade”.

Diante deste abuso da força, o autor julga dever considerar o “legítimo emprego da força” de que fala o Sumo Pontífice e verificar como a força pode ser posta a serviço do direito. É o que veremos a seguir.

Prof. Guido Gonella, jornalista, político e Ministro da República Italiana (1905-1982, Wikipedia CC BY 4.0)

“Depois do direito da força vem agora a “força do direito”. Até aqui se considera nestas páginas como negadora do direito, ao qual desconhece a própria existência, ou como violadora do direito direta ou indiretamente admitido; isto é, ela é considerada como instrumento ao serviço do arbítrio.

“Posto em relevo o absurdo lógico e ético de tais aspectos, convém notar que o problema da força não fica esgotado neste ponto.

O Pontífice fala de um “oportuno e legítimo emprego da força” a fim de tutelar os direitos e reparar suas lesões.

A força não é necessariamente inimiga do direito; não é exclusivamente um instrumento de arbitrariedade nem obra somente contra legem. Pode ser empregada para tutela do direito; pode servir para reparar as violações do direito e restabelecer uma ordem de justiça violada pela arbitrariedade.

“Além da força ab extra que age fora do direito ou contra o direito, há uma força ab intus, que age do direito e no sentido do direito.

“Em relação a esta força, o direito é um prius, não um posterius como é para a doutrina que pretende legitimar os fatos consumados, simplesmente por serem fatos consumados.

“Esta força, que age ao serviço do direito tem um duplo aspecto: força física e força moral. A força moral, além de ser consciência do dever, pode ser tenacidade no cumprimento do dever, isto é, fortaleza moral. Convêm considerar em separado estes três aspectos da força, posta ao serviço do direito.

“Antes de tudo, deve ser assinalado que o direito tem o caráter da coercibilidade, isto é, pode fazer-se valer por meio de constrição física.

“Trata-se de uma força física que serve de substituto à força de persuasão, nos casos em que esta não seja suficiente para fazer respeitar a norma. O próprio direito internacional – sem estar garantido ou representado por tribunais e gendarmes – trata de fazer-se valer contra os violadores com o instrumento bélico, que é precisamente uma força física, cujo emprego é legítimo quando tem por fim a tutela do direito contra suas violações, ou a reparação do direito violado.

A força ao serviço do direito dos Estados não pode ser entendida como instrumento do arbítrio dos Estados, mas que, pelo contrário, há de ser entendida como meio para impedir a arbitrariedade, isto é, para impedir a violação do direito internacional.

A força não constitui direito, mas o pressupõe. Enquanto os que identificam força e direito negam que o direito tenha um conteúdo próprio, os que consideram a força como instrumento do direito admitem que o direito tem seu conteúdo positivo, independentemente do jogo das influências da força, e veem na força simplesmente um meio de afirmação exterior desse conteúdo. Isto é, a força não age sobre as normas que permanecem invariáveis no que são (limitação dos atributos), mas trata de fazer valer eficazmente o conteúdo de tais normas. Em resumo: esta força não influi na determinação da justiça intrínseca e objetiva do direito; é sensivelmente uma força-meio empregada a fim de obter o reconhecimento e o respeito do conteúdo de justiça do direito. Não constitui o direito, mas o supõe e o defende. As muralhas não constituem a cidade, mas pressupõem e defendem cidade.

“O direito, como força de conservação e renovação dos Estados. A força há de ser legitimamente empregada não somente para conservar o direito vigente, mas também para reintegrar o direito violado.

“Com efeito, a força não é necessariamente conservadora. A conservação de uma ordem internacional, objetivamente reconhecida como injusta (por exemplo, a escravidão de um povo por parte de outro) é um permanente ato de violência, ao passo que a rebelião contra tal ordem aparente, antes de ser uma ação de força, é uma reivindicação de justiça.

A força é instrumento de justiça e, como tal, não pode ser entendida apenas como meio de defesa de uma legalidade constituída. Se esta legalidade é injusta e é mantida pela violência, a força do direito perderá todo o caráter conservativo e assumirá um caráter inovador, opondo-se a um direito positivo injusto em nome de um direito natural justo. Em lugar de defender o ius conditum injusto (vigente mas, precisamente por injusto, direito apenas em aparência) se trocará em instrumento de um ius condendum. A aplicação prática deste princípio é bastante delicada, por ser, às vezes, a reivindicação de um direito natural de um Estado, nada mais que um pretexto para violar a ordem jurídica positiva e tirar proveito de tal violação.

“Entretanto, a possiblidade de se abusar de um princípio não é argumento contra a verdade do princípio.

“Militia est vita hominis (a vida do homem é um combate)” (Job, 7, I); e a luta pela afirmação da justiça, contra uma ordenação injusta, é um dever social”.

* * *

A seguir o autor passa a estudar, a equivalência moral entre o direito do fraco e o direito do forte, e indaga: “Se a força é ineficaz para fazer valer o direito, cessa por isto o direito de o ser?

“O direito é uma potestas antes que uma potentia. Como potestas pessoal, o direito implica certamente uma exigência de força, de coercibilidade, isto é, de possibilidade de rechaçar a ofensa. Entretanto disso não nos deve induzir a identificar o direito com a força em ato: basta que se tenha uma força em potência, e se esta forca permanece simplesmente em estado potencial (isto é, força virtual), nem por isso o direito deixa de ser direito. Por exemplo, o direito de profissão de fé dos cristãos, perseguidos nos primeiros séculos, era um direito que possuía uma força coactiva apenas virtual, não real (inermes deliberadamente inermes contra as armas do Império). Mesmo que não se fizesse valer pela força resolvendo-se em ato tal direito conservava implícita uma autorização moral para fazer-se valer pela força; e nisto consiste precisamente a coercibilidade.

A ausência de possibilidade ou de vontade prática de fazer valer pela força um direito não debilita a existência desse direito, porquanto não retira a autorização implícita de empregar a força quando seja possível e se julgue oportuno (renunciando a resignar-se diante do violador); isto é, não inabilita moralmente para fazer que a força passe da potência em ato.”

O direito de uma nação fisicamente fraca, que não tem à sua disposição a força necessária para fazer-se valer ou para defender-se contra as agressões, não é menos direito que o de uma nação materialmente forte, capaz, por conseguinte, de afirmar e defender os valores jurídicos”.

* * *

E depois de se referir aos processos e limites do emprego da força e de sua disciplina, passa o autor a estudar a influência da força moral do direito dos povos:

“Tem-se observado que, mesmo que não existisse uma força física ativa ao serviço e em defesa do direito, este não deixaria por isto de ser tal. Podemos acrescentar que tanto a coação (ativa) como a coercibilidade (potencial), isto é, a habilitação para o emprego da força física, são por si sós insuficientes para conferir eficácia ao direito. São meios absolutamente excepcionais, substitutos da verdadeira e substancial força do direito, que é a força moral, a persuasão, a consciência do dever de respeitar.

É isto certo para todo direito, particularmente para o direito internacional, que, por ter à sua disposição instrumentos coactivos absolutamente impróprios e escassamente eficazes (por exemplo, o sistema de sanções) deve confiar, antes de tudo, na força moral, na reta compreensão das exigências da vida associada no imperativo ético, que, ao ordenar as consciências o respeito do direito, é o fundamental antecedente da inviolabilidade do próprio direito.

“Convém, portanto, recordar que o direito, anteriormente a toda coação física, encontra na consciência moral uma força que impõe a obrigação de respeitar a ordem jurídica.

“O direito tem um caráter de imperatividade moral. É “ordinatio rationis”, como dizem os escolásticos; isto é, não somente uma ordem racional, mas também uma ordem, um imperativo de razão, uma vontade-força; aqui o termo “força” é sinônimo de racionalidade. Quanto mais racional é, mais forte é. No âmbito desta concepção da força, o Estado quer porque pode (moralmente), ao passo que não se pode dizer que pode (moralmente) apenas por que quer (praticamente). O ponto de partida e o limite é a possibilidade moral, a que está subordinada a possibilidade física.

Na moral, pois, o direito tem sobretudo sua defesa, porque obrigação ética de respeito do direito alheio equivale precisamente a proibição de violar tal direito.”