Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Comentando..

 

A intranquilidade do mundo

 

 

 

 

 

 

Legionário, 20 de janeiro de 1946, N. 702, pag. 2

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Não teve entre nós a devida repercussão o notável discurso proferido pelo sr. Spruille Braden, na Universidade de Yale, em meados do mês passado. Entretanto, há vários conceitos, nesta oração do antigo embaixador americano na Argentina, de significação transcendental, e que talvez sejam o primeiro anúncio de toda uma nova sistemática social e política a ser posta em vigor em futuro não remoto. É possível que, na enunciação destes conceitos, esteja a chave do que está para vir, ou do que se pretende fazer do mundo. Pelo menos, é absolutamente fora do comum o reconhecimento de certos fatos históricos, no referido discurso, fatos que eram habitualmente negados ou cuidadosamente mascarados.

Analisando a intranquilidade do mundo contemporâneo, o sr. Spruille Braden encontra, como uma de suas causas principais, o desaparecimento, por obra das revoluções, das monarquias legítimas. Os governos subsequentesnão eram revestidos deste caráter de legitimidade, o que ocasionou a perda de confiança nos mesmos, por parte dos governados. A união orgânica entre povo e governo, dava a este último força moral para se fazer obedecer voluntariamente; sobreveio um regime de ordenação mecânica, no qual a obediência é fruto da coação. Daí um estado de tensão entre súditos e governo, que originou a ampliação ilimitada da força coativa deste para resolver o conflito. Assim aconteceu que o governo contemporâneo acabou por ter um poder muito mais vasto do que o dos monarcas antigos, tais como Luís XIV, Henrique VIII ou Carlos V, os quais tinham sua ação limitada “pelas restrições religiosas e morais, claramente definidas e tradicionais normas de direito”.

O sr. Spruille Braden afirmou categoricamente: “Um governo cuja legitimidade não é reconhecida cabalmente pelo núcleo sobre o qual atua, vê sua autoridade menoscabada pela atitude do que acatando suas ordens, as cumpre somente sob pressão da força. A tensão assim originada (...) se converteu (...) em patente fermento explosivo dotado de imprevisíveis resultados. Por sua vez, o governo que provoca essa tensão necessita de algum modo o emprego de seu prestígio total e o consegue mediante o exercício de ilimitada faculdade soberana”.

Vemos assim reconhecida uma verdade importantíssima. Há dois tipos de ordem política. Numa delas, governo e governados formam um corpo, e tem consciência disso; é na pessoa do governante que os governados têm a expressão mais nítida da vida em comunidade; governante e governados provêm do mesmo processo histórico, vivem da mesma tradição. Mas, por isso mesmo, o governante sofre várias limitações de fato no exercício de sua soberania, pois o povo está estruturado numa sociedade orgânica, com vida própria, que deve ser respeitada sob pena de serem abalados os fundamentos sociais e históricos do governo. Pois o governo nada mais é do que o produto mais alto das forças vivas da sociedade, em sua evolução histórica, o ápice da alma coletiva.

Mas há também outro tipo de ordem política. Neste há, de um lado um governo, juridicamente anônimo e neutro. Este governo organiza arbitrariamente leis segundo uma elaboração científica (na melhor das hipóteses), tendo em vista a utilidade social. De outro lado está a “massa”, mero aglomerado humano, sem sentido histórico, sem ligação íntima com uma paisagem: massa de si mesma incapaz de outra atividade própria que não sejam os furores revolucionários. A esta massa o governo demiúrgico dá uma estruturação artificial e infunde uma aparência de vida, dando em resultado uma sociedade acosmística, que só se mantém de pé pela força coativa e pela propaganda organizada. Polícia e Ministério da propaganda são os esteios de uma tal sociedade.

Eis o que vem de ser reconhecido por alto funcionário do Departamento do Estado norte-americano. Porém, o que não foi dito é que a ordem político-social do primeiro tipo estava sob a égide de Jesus Cristo; a dissolução das ordens políticas deste tipo, existentes no mundo civilizado, acarretou a perda gradual de valores cristãos, digamos mais claramente, de valores católicos, que estavam historicamente inviscerados a ela, e que não se poderiam perder (no máximo poder-se-iam empanar) se tais ordens não fossem destruídas. Substituíram-nas as sociedades amorfas de nossos dias, onde impera um espírito crescentemente pagão, como é inegável. Será que agora vamos caminhar para uma reconstrução político-social do mundo, isto é, será que vamos voltar para as sociedades do primeiro tipo, mas já agora sobre fundamentos leigos e naturalistas?


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