Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
A arca e o dilúvio

 

 

 

 

 

 

Legionário, 9 de junho de 1946, N. 722, pag. 5

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Os adversários incondicionais do interesse sobre o capital, quando, de boa-fé, parecem ignorar que a generalização do campo de aplicação dos juros vem a ser uma das consequências, e não a causa de nossa atual situação econômica e social.

Não resta dúvida que o antigo regime econômico era melhor, mas se na organização social da Idade Média o direito canônico, universalmente aceito pela Cristandade, protegia a pequena propriedade e o trabalhador contra seus opressores, pelas leis sobre a usura, bem como os consumidores por meio de leis sobre o justo preço; se a Igreja conseguiu então fazer prevalecer os princípios da justiça cristã como regra das relações sociais, deve-se reconhecer que esse resultado foi alcançado graças à unidade religiosa, que fazia do mundo civilizado uma só federação de povos cristãos, com um único ideal: não a procura da felicidade terrena, mas o emprego dos meios materiais como instrumento para a consecução da bem-aventurança eterna.

Vivemos, entretanto, em uma sociedade paganizada, que pôs no gozo dos bens materiais sua suprema felicidade. E quem quer que se privasse dos meios lícitos de crédito para evitar seus abusos, seria esmagado pelos novos “Shylocks” que sempre zombaram e, hoje mais do que nunca, prosseguem zombando dos inocentes mercadores de Veneza. Mesmo porque a usura não se manifesta apenas no abuso dos juros, mas também no câmbio negro, nos “trusts” e nas mais variadas formas de especulação e açambarcamento. De nada adiantarão meros paliativos.

A humanidade tem nas suas mãos o remédio para os seus males, e este remédio é a volta ao seio da Igreja, a confiança na eficácia de sua doutrina, pois as transformações sociais e econômicas por que passou o mundo, no que elas representam de decadência, de injustiça e de ausência de Caridade, se explicam justamente pela grande apostasia que afasta a sociedade da Igreja, e que divide a Cristandade. De modo que responsabilizar a Igreja pelo fato de não haver impedido essa desagregação social a que chegamos é, no dizer de Chesterton, o mesmo que responsabilizar a Arca de Noé por não haver impedido o dilúvio.

E estará neste caso quem, desconhecendo as atuais condições da vida social, responsabilizar a Igreja pelo fato de não evitar os males do capitalismo, ao permitir a percepção de um juro moderado sobre o capital.

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Aos que comparam a atual conduta da Igreja com o seu proceder de outros tempos, dissemos, em nosso último rodapé, que há erro em supor que foi somente em nossos dias que Roma acreditou dever promulgar regras de procedimento para uso dos prestatários timoratos, pois além dos títulos extrínsecos, sempre reconhecidos pelos teólogos, não vemos em 1554, o Papa Júlio III declarar na bula de instituição do Montepio de Vicência que se podia, sem escrúpulo algum de consciência, cobrar um juro de 4 por cento ao ano, do dinheiro emprestado por este estabelecimento, sempre que se tivesse facilidade em dar a este dinheiro uma outra aplicação tanto ou mais frutuosa do que esta, aplicação de que caritativamente se privaram para dar o dinheiro ao Montepio?

Aproximadamente um século mais tarde, em 1645, a Congregação da Propaganda dirigiu aos missionários da China uma resposta, aprovada pelo Papa Inocêncio X, quase em todos os pontos semelhante àquelas que foram dirigidas aos consultantes de 1830. Os missionários que evangelizavam a China expunham que a lei do país autorizava um certo juro, e perguntavam se era permitido conformar-se com esta lei, em razão do perigo que o capitalista corria de perder o seu capital. A Congregação da Propaganda respondeu que se não podia receber nada além do capital em virtude do próprio empréstimo; mas que, se havia perigo provável de perder o capital, como no caso em questão, era necessário não inquietar aqueles que exigissem um tal juro, proporcional ao perigo corrido. Nesta decisão de 1645 encontram-se as próprias palavras empregadas também em caso idêntico em 1830: non esse inquietandos.

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Mas como é que estas duas decisões práticas, a de Júlio III e a de Inocêncio X, se conciliam com a doutrina católica sobre a usura? Estes dois Papas dizem-nos expressamente: ao lado do empréstimo encontravam-se, na cidade de Vicência e no império chinês, títulos extrínsecos; em Vicência uma perda de rendas, e na China um risco de perda de capital. Daí, para os capitalistas dessas regiões, o direito a uma justa indenização.

E com relação aos empréstimos feitos na China, diz Santo Afonso de Liguori que o decreto da Santa Sé não deve ser interpretado como pura tolerância, e sim como uma permissão positiva.

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Em 1745, o Santo Padre Bento XIV, pela constituição “Vix pervenit”, declarava que “não se pode negar o fato de se encontrar, muitas vezes, com o contrato de empréstimo, outros títulos não intrínsecos a este contrato, e que dão um direito perfeitamente justo e legítimo a exigir qualquer coisa, além do capital emprestado”. Acrescentava, porém, esse Papa, que seria um erro e uma temeridade acreditar que existissem por toda a parte e sempre títulos extrínsecos, associados ao empréstimo e justificando um certo juro; concluía daí que, antes de exigir este juro, cada qual devia inquirir da existência desses títulos.

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Em 1830, portanto, oitenta e cinco anos mais tarde, a Santa Sé, considerando as modificações sobrevindas, julgou que os títulos extrínsecos acompanham sempre o empréstimo e decidiu, que, por consequência, cada qual pode prudentemente auferir certo juro do dinheiro emprestado. A Santa Sé, que conhece muito bem as circunstâncias e o meio nos quais nós vivemos, fez para nós todos a investigação exigida em 1745 por Bento XIV, como também pelos seus predecessores nos séculos passados, e declarou que hoje os títulos extrínsecos existem sempre e quem não os veja poderá discretamente presumi-los.

Por consequência, cada um de nós pode, sem nenhuma inquietação de consciência, auferir do seu dinheiro emprestado um juro moderado, porque a Santa Sé fez por nós as investigações necessárias e verificou que há sempre um título legítimo para receber tranquilamente este juro.

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Destas considerações não há direito a concluir-se, como querem alguns, que a lei de Deus, proibindo a usura, não tem objetivo para os dias que correm, e que deve, portanto, ser posta de lado como velharia, como lei caída em desuso. Longe disso, esta lei rege o empréstimo hoje, como nos séculos passados; e hoje, como outrora, os homens ambiciosos violam-na frequentemente, exigindo um juro imoderado que já não é uma justa indenização, mas uma ganância tirada do próprio empréstimo, e, por consequência, uma injustiça.

E é um fato arqui-evidente que a usura é boje muito mais frequente que outrora, porque os empréstimos, dados o seu vulto e a sua grande difusão, oferecem mais ocasião para atos ilícitos, sendo também uma triste realidade que o respeito pelos fracos e pelos pobres já não é hoje tão poderoso como antigamente.