Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Cegos e surdos voluntários

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 11 de agosto de 1946, N. 731, pag. 5

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É conhecido o episódio de um judeu que, em Jerusalém, bem antes da destruição do Templo, saía pelas ruas a gritar: “Desgraça para o Templo! Desgraça para o Templo!”, não cessando essas exclamações proféticas nem diante de ameaças, nem de prisão, nem de castigos corporais. E veio a destruição do Templo, sendo esse arauto de sua desgraça uma das primeiras vítimas do assédio da Cidade Santa.

Essa dureza do coração e do entendimento não é, porém, caso único na História. Até hoje vemos o exemplo dos que se fazem surdos não somente às palavras desses instrumentos da Divina Providência, mas à própria Mensagem que Nosso Divino Salvador trouxe à humanidade.

* * *

É comum se ouvir dizer que o totalitarismo socialista é filho dileto do filosofismo liberal. Entretanto o mais das vezes essas afirmações não passam de tiradas líricas sem maiores consequências práticas. Brada-se contra a onda crescente do despotismo socialista, ao mesmo tempo que se recusa obstinadamente aplicar à sociedade agonizante o remédio indicado.

Para mais uma vez dar uma prova dessa cegueira, abaixo transcrevemos as palavras com que Louis Veuillot, em introdução às obras completas de Donoso Cortês, revelava as previsões do grande pensador espanhol quanto ao avassalamento da Europa pelo despotismo socialista. Isto há cerca de cem anos, antes do próprio nascimento de Lenine. 

Juan Francesco Maria de la Salud Donoso Cortés, primeiro marquês de Valdegamas (1809-1853), foi um escritor e político espanhol

“Já assinalamos que as primeiras observações políticas de Donoso Cortês o haviam feito entrever a Rússia como uma ameaça levantada contra a civilização filosófica, da qual ela é filha e da qual será o castigo.

Longe de temer a Rússia, muitos em tudo esperam. Não estudaram sua política em relação aos católicos, ou não levam em conta este aspecto da questão. O governo russo pode participar do erro que nele vê o inimigo e o vencedor do socialismo. Esse erro não muda em nada a natureza das coisas. Entre o despotismo moscovita e o socialismo europeu, existe uma afinidade profunda. Isoladamente, agem do mesmo modo e um pelo outro; dia virá em que exercerão uma única e mesma ação.

Quando, de uma parte, o socialismo houver destruído o que deve naturalmente destruir, isto é, os exércitos permanentes pela guerra civil, a propriedade pelos confiscos, a família pelos costumes e pelas leis; e quando, por outro lado, o despotismo moscovita houver crescido e se fortificado como deve naturalmente se fortificar e crescer, então o despotismo absorverá o socialismo, e o socialismo se encarnará no Tzar. Essas duas medonhas criações do gênio do mal se completarão uma pela outra.

“Depois de haver dado ao Tzar seus aliados mais úteis, o socialismo, que não tem nem Deus nem Pátria, lhe fornecerá seus mais impiedosos instrumentos. Já se sabe o que eles podem fazer um sem o outro, pelo que se vê na Suíça e na Polônia. Todos dois declararam guerra à Igreja de Jesus Cristo. Senhores do mundo, esmagarão o mundo com uma corrente que as almas carregarão do mesmo modo que os corpos, e nada de semelhante terá sido visto sobre a terra. Os socialistas ajudarão o Tzar a encarcerar a consciência, que é a liberdade em seu último refúgio. Eles lhe denunciarão todo pensamento bastante audaz para lhe recusar adoração e o presentearão com essa igualdade da degradação, que é o sonho e o suplício de sua inveja.

Será assim castigado o orgulho da civilização filosófica. Assim gemerão, sob o jugo do homem, esses titãs da ciência e da razão humanas, que empreenderam sacudir o jugo de Deus. Saberão o que perderam quando, vendo perseguir a Igreja, disseram: Que importa? Ela nos estorva, deixemo-la sucumbir. Ela nos deu a liberdade e a ciência, mas já somos grandes e fortes, e podemos andar sem seu apoio.

Saberão, por essa resolução ingrata e covarde, que desmantelaram a fortaleza da civilização, que difundiram por toda a parte a peçonha das guerras civis, que estancaram em cada povo em particular a fonte do patriotismo, e que prepararam na Europa inteira a extinção do patriotismo cristão.

“Na Idade Média, os príncipes da Europa, sob a inspiração dos santos, levaram as fronteiras da Europa e do cristianismo para além dos mares, sobre o solo do inimigo. Nosso século verá, talvez, e verá sem surpresa, governantes que se dizem cristãos guiar ao coração da Europa exércitos de infiéis que virão ali estabelecer o despotismo anticristão. Esse espetáculo será proporcionado a esses sábios e a esses políticos que, ainda hoje, entregaram, com satisfação, Roma à cáfila socialista. Mas então conhecerão, enfim, a verdade.

“Saberão que, pelo desprezo das crenças divinas, se terão aviltado a si mesmos ao ponto de se tornarem servos da tirania, pelo menos até ao ponto de aturá-la ignobilmente. Os melhores, lançando um olhar humilhado sobre a glória dos últimos mártires, tremerão de medo que algum beleguim policial, vindo das margens do Neva, o acuse de admirar em segredo aqueles que ainda confessem a Deus e à pátria.

Tal será esse despotismo sem igual previsto por Donoso Cortês: sem igual, porque ele se exercerá sobre uma sociedade caída das alturas do Evangelho, e porque nenhuma civilização havia ainda permitido ao orgulho humano precipitar-se de um tão glorioso pedestal; sem igual ainda porque, de uma parte, o amolecimento universal das coragens e, de outra, o desenvolvimento inexorável dos meios materiais de governo concorrerão para tornar impossível qualquer resistência geral. Apenas algumas cabeças isoladas se levantarão e nobremente chamarão sobre si a morte. E essas cabeças não se levantarão por muito tempo! Entre a mão do déspota e o coração da vítima, será vã toda a imensidade do império: a cólera do Senhor poderá matar como o raio; a eletricidade levará as sentenças e o carrasco delas prestará contas no mesmo dia em que forem executadas.

“E para que toda a Europa chegue a este ponto, que será necessário?

“Será necessário, segundo Donoso Cortês em seu “Discurso sobre a situação geral da Europa”, que a Revolução, depois de haver dissolvido a sociedade, dissolva os exércitos permanentes; em segundo lugar, que o socialismo, despojando os proprietários, extinga o patriotismo, porque um proprietário espoliado não é, não pode ser patriota. Com efeito, desde que a questão foi levada até esse termo, até essa angústia, todo patriotismo morre no coração do homem. Em terceiro lugar, será necessário que se realize a confederação de todos os povos eslavos sob a influência e sob o protetorado da Rússia. As nações eslavas contam 80 milhões de habitantes (N.R.: contavam naquela época; e hoje?).

“Ora bem, quando a Revolução houver destruído na Europa os exércitos permanentes, quando as revoluções socialistas houverem extinguido o patriotismo na Europa, quando no oriente da Europa se efetivar a grande confederação dos povos eslavos, quando no Ocidente não restar senão dois grandes exércitos, o exército dos espoliados e o exército dos espoliadores, então a hora da Rússia soará...”

“Estamos diante de simples conjeturas, sem dúvida, mas essas conjeturas nada têm de contrário à razão, nada de contrário aos ensinamentos da História. O colosso que aterroriza os olhares do homem de Estado pode ruir em uma hora, a um simples sopro de Deus; as chagas profundas que devoram a Europa podem, se Deus o desejar, cicatrizar-se instantaneamente. Deus fez curáveis as nações da terra. Sabemos como podem curar-se e o exemplo de Nínive concede esperança aos culpados, mesmo quando a sentença está lavrada, mesmo quando está em vias de execução. Para nos curar, Deus enviará grandes Papas, grandes príncipes, grandes santos... Novas conjeturas! Conjeturas mais consoladoras, sem dúvida, mas sempre conjeturas.

“O mais seguro é não desprezar a advertência dos homens de Fé a quem Deus concedeu essa visão genial e começar, por nós mesmos, seguindo seu exemplo, como Donoso Cortês fez tão plenamente, essa reforma sem a qual o mundo não será salvo”.

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Presenciamos, atualmente, a confirmação das previsões do Marquês de Valdegamas. Com a diferença, para pior, que o Tzar socialista não é da casa dos Romanoff, mas se corporificou no camarada Stalin.