Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Locomotivas de manobra

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 24 de novembro de 1946, N. 746, pag. 5

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A resistência dos católicos contra os atos arbitrários dos governos e contra a legislação sectária que lentamente vai fazendo desmoronar as bases cristãs e tradicionais da sociedade, o trabalho de concentração dos católicos para repelir partidos e ideologias extremistas - quer sejam demo-liberais, esquerdistas ou direitistas -, todo esse esforço em parte se neutraliza e se perde diante do que na gíria política tem o nome de locomotivas de manobra.

Um cabo eleitoral do interior costumava dizer que era “amigo incondicional do coronel fulano (o chefe político local) e de seus dignos sucessores”. De muitos católicos também se pode dizer o mesmo: são amigos incondicionais da situação reinante e de suas dignas sucessoras. Se os ventos são favoráveis ao totalitarismo da direita, abraçam sôfregos esses “movimentos de salvação nacional”. Se o fascismo e o nazismo caem em desgraça, voltam de novo em debandada para os braços do liberalismo.

O pandemônio liberal premeditadamente preparado para estabelecer o descrédito dos regimes democráticos, os conduz, como carneiros, para as hostes esquerdistas - e repetem os “slogans” postos na rua pelo poder oculto: “o mundo caminha inexoravelmente para o socialismo”!

Eis que de novo se esboça uma reação contra o comunismo e as locomotivas de manobra passam a caminhar na direção de um neofascismo disfarçado, e assim por diante. O curioso é que, nesse vaivém, nunca as locomotivas de manobra acertam. É que não podem acertar pois seguem a todas as palavras de ordem e a todas as senhas - menos as diretrizes da Igreja, fonte única de salvação para a sociedade humana – e cada vez mais se emaranham no dédalo da moderna Babilônia.

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Já São Paulo Apóstolo concitava os fiéis a abraçar a Verdade, para crescerem em caridade e chegarem à plenitude da idade de Cristo, em vez de agir como “criancinhas vacilantes e levadas para todos os lados por qualquer vento da doutrina, arrastados pela iniquidade dos homens, que, por astúcia, induzem ao erro” (Ef. 4, 14).

Em nossa época sobretudo a peste do liberalismo é responsável por esta indigência dos católicos. Começa que muita gente não acredita na existência de homens iníquos que usem de astúcia para induzir o próximo ao erro. Todos os homens são tão bons... E é tão feio se passar por reacionário e ultramontano. Combater o erro, além de perigoso para o nosso prestígio e posição, galvanizaria os transviados em seus erros.

Bem dizia o poeta latino que qualquer disparate proferido pelos homens já teve algum filósofo que o defendesse há milhares de anos. Este argumento, por exemplo, já alcançou o milênio.

Santo Agostinho, na “Cidade de Deus”, sentiu necessidade de refutá-lo ao analisar as razões por que Deus castiga juntamente aos bons e aos maus. Com justa causa provam aqueles das amarguras desta vida, quando Deus os aflige juntamente com os maus porque, deleitando-se nas doçuras do estado presente, não quiseram mostrar-lhes o caminho errado que seguiam quando pecavam”. E esses tais deixam de repreender aos que erram consultando a sua fama e bem estar, temendo as ameaças e violências dos ímpios... - e não porque considerem que sua fama e vida sejam necessárias para a utilidade e ensinamento do próximo, mas porque se apodera de seu coração pusilânime a falsa ideia de que são dignas de apreço as lisonjeiras razões com que são tratados pelos pecadores, e que, por outro lado, desejam viver em concórdia entre os homens durante a breve época de sua existência”.

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São Vicente de Paulo é o Santo da Caridade por excelência. Entretanto, longe de seguir a corrente dos “panos quentes”, da conciliação a todo o custo, da mão estendida aos semeadores de erros religiosos e sociais, qual foi sua atitude em relação aos jansenistas, que tantos pontos de contato tinham com os “católicos liberais” de nosso tempo?  Perseguiu a seita e atravessou seus projetos, denunciando-os à Igreja e ao próprio poder civil, escrevendo a todos os Bispos da França para levá-los a pedir ao Papa a condenação das cinco proposições extraídas do livro “Augustinus”.

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Quanto à questão de boa-fé, que é o espantalho para tanta gente, isto é, quanto ao argumento de que talvez os inimigos da Igreja se julguem possuidores da verdade, eis o que diz São Vicente em célebre carta aos Bispos de Alet e Pamiers:

“Vós me dizeis, Monsenhores, que um e outro partido crê que a razão e a verdade se acham de seu lado, com o que concordo. Mas bem sabeis que todos os hereges dizem outro tanto, e que isto não os garantiu contra a condenação e os anátemas com que têm sido feridos pelos Papas e pelos concílios; não se achou que a união com eles fosse um meio de curar o mal; pelo contrário, foram combatidos a ferro e fogo, e algumas vezes, demasiado tarde, como pode acontecer neste caso”.

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Será a Fé que opera pela Caridade (Gálatas V, 6) incompatível com essa luta a ferro e fogo contra o erro? Leão XIII dar-nos-á a resposta: “Não é esta ocasião de averiguar se colabaram e até que ponto, para chegarmos a este estado de coisas, a covardia e as discórdias dos católicos entre si; mas seguramente não seria tão grande a ousadia dos maus, nem teriam semeado tantas ruinas, se fosse mais firme, e arraigada no peito de muitos, a fé que opera pela caridade (Gálatas V, 6), nem tivesse decaído tão geralmente a observância das leis dadas ao homem por Deus. Que da memória do passado retiremos o proveito de ser mais avisados para o futuro”.

 “Pelo que diz respeito aos que devem tomar parte nos negócios públicos, devem evitar cuidadosamente os extremos viciosos, dos quais um se arroga o nome de prudência e o outro raia pela temeridade. Porque alguns dizem que não convém fazer frente a descoberto à impiedade forte e pujante, por temor de que a luta exaspere os ânimos dos inimigos. Estes que assim julgam não se saberá dizer se estão a favor da Igreja ou contra Ela; pois se bem afirmem que são católicos, desejariam que a Igreja deixasse que se propagassem impunemente certas maneiras de opinar, de que Ela dissente. Lamentam os tais a ruína da Fé e a corrupção dos costumes; mas nada fazem para sanar este mal, antes com sua excessiva indulgência e dissimulação prejudicial fazem crescer o mal não poucas vezes. Esses mesmos não querem que ninguém ponha em dúvida seu afeto pela Santa Sé; mas, nunca lhes faltam pretextos para indignar-se contra o Sumo Pontífice” (Encíclica Sapientiae Cristianae).

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A prudência desses tais a qualifica o apóstolo São Paulo de sabedoria da carne e morte da alma, porque não está nem pode estar sujeita à lei de Deus. E, em verdade, diz Leão XIII, nada menos conducente à diminuição de nossos males.

Por outro lado, diz o Soberano Pontífice referindo-se aos temerários, “não poucos, movidos por enganoso zelo, ou, o que seria pior, fingindo umas coisas e fazendo outras, se apropriam de um papel que não lhes pertence. Desejariam que tudo na Igreja se fizesse segundo seu juízo e capricho, até o ponto de que tudo que se faz de outro modo, levam a mal ou recebem com desgosto”.

Eis, portanto, retratadas por Leão XIII, as duas principais características dos “católicos liberais”: o enfraquecimento da Verdade unido à monomania de tudo conciliar e a pretensão de ditar normas diretivas à Igreja.

E que seria da divina instituição se fosse seguir essas eternas locomotivas de manobra?