Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera

 

Um comunismo aceitável?

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 2 de fevereiro de 1947, N. 756, pag. 5

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Vemos na imprensa diária, duas frases, proferidas em lugares e em ocasiões diferentes por dois homens que ocupam cargos de destaque na política nacional, ambas características de certo ambiente que se busca criar em torno do problema do comunismo. Em uma delas se afirma que o comunismo deixará de constituir um perigo no dia em que abrir mão dos processos violentos. A outra sustenta que o comunismo é mau porque é ateu.

A primeira fica apenas no meio do caminho pois esquiva-se a declarar que o comunismo será inofensivo quando desistir de se impor à custa de coices. Coiçadas e marteladas. Não diz, porém, que o comunismo será admissível quando propagado por meios suaves e pacíficos. A segunda frase, entretanto, pelo modo como está formulada, parece ir mais longe, pois equivale a dizer que o comunismo deixará de ser mau quando cessar de ser ateu. Conclusão: o comunismo crente em Deus, o comunismo “Gottgläubig”, para usar a terminologia nazista, seria perfeitamente aceitável, por ficar isento da maldade do ateísmo.

Unidas as duas frases e assim interpretadas, estão talhadas para servir maravilhosamente bem ao papel de ponte entre o comunismo e os crédulos e os pacifistas. Desde que não se imponha o uso de arnica e que se respeite uma vaga crença em Deus, seja ele o Deus dos cristãos, dos maometanos ou dos bororós, tudo está salvo...

Verifiquemos, porém, se os dois únicos elementos indesejáveis do comunismo são realmente a violência e o ateísmo.

Antes de mais nada, uma consideração de ordem geral. Desde os tempos apostólicos, a Igreja tem combatido com todo o ardor o verdadeiro câncer desintegrador de almas representado pelas heresias. São Pedro chegou mesmo a afirmar em uma de suas epístolas que a heresia é pior que o paganismo. Por acaso será o herege um ateu? Necessariamente não. O herege é o cristão que conscientemente deixou de aderir a um ou mais dogmas de nossa fé. Em geral crê em Deus, crê mesmo às vezes em Jesus Cristo, Deus e Homem. E a heresia nem sempre é acompanhada de proselitismo inculcado por processos violentos. Fortuitamente isto acontece, mas a violência não é o que especificamente torna a heresia detestável. Pelo contrário, o erro religioso subtil, propagado por meio de ronhas e de processos de infiltração pacífica, esse é que é mais perigoso. E é interessante notar que a heresia, erro religioso, foi sempre solidário com o comunismo, erro social. Os ebionitas, os gnósticos maniqueus, os cátaros e albigenses, partidários de erros religiosos, embora não possam ser taxados de ateus, tinham da vida social uma noção que muito se aproxima do atual comunismo. Pode-se até dizer que o comunismo tem por origem as heresias – sendo Karl Marx, em linha direta, descendente de Lutero e de outros heresiarcas seus antecessores.

Só por esta consideração vê-se o absurdo desse modo de se fazer a “conversão” do comunismo, tirando-lhe o ateísmo e a violência.

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A vaga crença em Deus não é anteparo ou escudo contra a condenação de uma ideologia. Nem todos os que vivem a gritar “Senhor, Senhor! Entrarão no Reino dos Céus”. E a violência, em si mesma considerada, pode até servir um fim meritório. Vejamos por exemplo, o que diz São Tomás sobre as virtudes da fortaleza e da magnanimidade.

O comunismo é inadmissível por sua natureza intrínseca em teoria, abstração feita de seus processos violentos de aplicação prática e de seu ateísmo militante, embora o mais elementar bom senso nos aponte a ingenuidade de querer dissociar artificialmente a doutrina, teoricamente considerada, de suas aplicações à realidade dos fatos políticos e sociais.

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Quais as notas que predominam nas condenações do comunismo feitas pela Igreja?

Na Encíclica “Qui pluribus”, Pio IX se refere à “nefanda doutrina do chamado comunismo, tão contrária ao próprio direito natural; a qual, uma vez admitida, levaria à mais radical subversão dos direitos, bens e propriedades de todos e mesmo da própria sociedade humana”.

Pio XI, na “Quadragesimo Anno” diz que o comunismo “ensina e pretende, não oculta e dissimuladamente, mas clara e abertamente e por todos os meios, até os mais violentos, duas coisas: a luta de classes encarniçada e o desparecimento completo da propriedade privada”.

E na “Divini Redemptoris”, o comunismo além do mais é condenado por ser totalitário, por despojar o homem de sua liberdade, “não reconhecendo ao indivíduo nenhum direito natural da pessoa humana, por ser esta, na teoria comunista, simples roda da engrenagem do sistema”. Ademais condena Pio XI o comunismo por sustentar “o princípio da absoluta igualdade, rechaçando toda hierarquia e autoridade estabelecida por Deus, inclusive a dos pais: tudo isso que os homens chamam autoridade e subordinação, se deriva da coletividade como de sua primeira e única fonte”.

A Igreja condena, portanto, no comunismo seu igualitarismo e sua absoluta subordinação da pessoa humana à coletividade encarnada pelo Estado totalitário.

As notas do ateísmo e da violência vem, portanto, apenas agravar um quadro já de si tão negro. Deixasse o comunismo seus processos de ação direta e seu ostensivo ódio à Igreja e nem por isso passaria a ser menos detestável e perigoso aos olhos dos que realmente querem ver.

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Mesmo porque, passando à realidade prática e ao comunismo tal qual é e não como poderia ser, vemos que há muito tempo os verdadeiros mentores dessa seita socialista tentam repudiar esses dois trambolhos do ateísmo e da violência, quando em determinada fase da ação revolucionária, ambos mais atrapalham do que ajudam sua causa.

Já Pio IX em 1846 alertava os católicos contra essa hipocrisia nos termos seguintes, depois de mostrar quais os verdadeiros fins do comunismo: “Tais as insídias tenebrosas daqueles que, com pele de ovelha, sendo lobos rapaces, insinuando-se fraudulentamente, com uma espécie de piedade sincera, de virtude e de disciplina, penetram humildemente, captam com brandura, atam delicadamente, matam às ocultas, apartam de toda religião aos homens e sacrificam e destroçam as ovelhas do Senhor” (Encíclica “Qua pluribus”).

E Leão XIII mostra como os socialistas “abusando do próprio Evangelho para enganar mais facilmente aos incautos, costumam torcê-lo em proveito de sua opinião” (Encíclica “Quod Apostolici muneris”).

Nada mais claro, porém, para desmascarar essa patranha de uma possível “conversão” do comunismo, do que as seguintes palavras de Pio XI:

“Em outros lugares levam sua hipocrisia até fazer acreditar que o comunismo em países de maior fé e cultura tomará um aspecto mais suave, e não impedirá o culto religioso e respeitará a liberdade das consciências. E até há quem, referindo-se a certas mudanças introduzidas recentemente na legislação soviética, deduza que o comunismo está para abandonar seu programa de luta contra Deus”.

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Em resumo, este preparo psicológico do ambiente para habituar o povo à ideia de um comunismo “pacífico” e “crente em Deus” nos deve trazer à lembrança dois precursores desse proselitismo da escola de Tartufo: os pastores das sociedades bíblicas protestantes e os nazistas da marca de um Franz von Papen.


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