Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Por falar em paternalismo

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 31 de agosto de 1947, N. 786, pag. 5

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A três por dois ouvimos a advertência solene: é preciso evitar todo paternalismo na solução do problema social. Nada de paternalismo nas relações entre patrões e operários. Tudo que se fizer em favor das classes humildes deve proceder da justiça social e não do paternalismo. E assim por diante.

Que vem a ser esse ogre odioso que parece tanto atrapalhar e atrasar o feliz advento da paz social? Apenas isto: tratamento ou controle paterno de um povo ou de empregados por parte dos governos ou dos patrões, ou por outras palavras, teoria ou prática de governo ou de direção de negócios em que as relações de superiores para inferiores se dão como de pais para filhos.

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Estamos, portanto, diante de um velho conhecido: o movimento em favor da emancipação das massas, do nivelamento social, que retirará o homem que trabalha da tutela e da dependência de patrões.

Do fato de que há patrões que exploram, oprimem, rebaixam e não dão espírito de iniciativa aos seus operários, concluem os insufladores desse movimento, que a única solução para sacudir esse jugo é a luta contra o que convencionam chamar de paternalismo.

Ora, Pio X já fazia alusão a esses falsificadores das noções sociais que procuram ocultar suas unhas revolucionárias sob o disfarce da defesa da dignidade humana. Segundo eles, o homem só será verdadeiramente homem, digno deste nome, no dia em que admitir uma consciência esclarecida, forte, independente, autônoma, podendo dispensar os mestres e os patrões, só obedecendo a si próprio, e capaz de assumir e desempenhar sem falhar, as mais graves responsabilidades.

E esse grande dia, o dia da plena consciência independente, quando virá? indaga Pio X:

“A menos que se mude a natureza humana, virá alguma vez? Será que os santos, que levaram ao apogeu a dignidade humana tiveram essa dignidade? E os humildes da terra, que não podem subir tão alto e que se contentam com traçar modestamente seu sulco na classe social que lhes designou a Providência, cumprindo energicamente seus deveres na humildade, na obediência e na paciência cristãs, não seriam dignos do nome de homens, eles aos quais o Senhor há de tirar um dia de sua condição obscura para os colocar no céu, entre os príncipes de seu povo?” (Pio X na Carta Apostólica “Notre Charge Apostolique”).

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Ensina-nos a doutrina católica que Deus é Pai. “Somos filhos de Deus, diz São Paulo. Herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo”. No próprio Mistério da Santíssima Trindade surge a Paternidade Divina. Cristo Rei, o Filho de Deus, é o “primogênito entre muitos irmãos”, “anterior a toda a criatura”, “nosso irmão mais velho”.

De Deus “deriva toda a paternidade no céu e na terra”. Eis porque “chegada a plenitude dos tempos, enviou Deus seu Filho, formado da mulher, sujeito à lei, a fim de que resgatasse os que estavam sob a lei, para que fossemos adotados como filhos”.

Deus é Pai e “não há, autoridade que não venha de Deus”. “Pelo que, quem se revolta contra a autoridade, revolta-se contra a ordem de Deus”.

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Portanto, segundo a doutrina católica, a paternidade terrestre tem sua razão de ser na paternidade celeste. A paternidade humana, reflexo da paternidade divina, foi por Deus encarregada de continuar a ação criadora entre os homens. Mais ainda: o próprio conceito de autoridade e de zelo pelo próximo se acha indissoluvelmente ligado a esse conceito de paternidade.

Assim, por exemplo, qual o Mandamento da lei de Deus que regula os deveres dos patrões em relação aos seus empregados, bem como os deveres dos empregados em relação aos patrões? O quarto Mandamento, isto é, aquele que nos concita a “honrar pai e mãe”.

Pelo quarto Mandamento Deus nos ordena “a amar e a respeitar nossos pais e aqueles que exercem sua autoridade”. Eis porque São Paulo manda aos servos que obedeçam a seus senhores temporais, como a Jesus Cristo, “vendo neles o Senhor e não os homens”. Sempre, portanto, o conceito de autoridade delegada, pois autoridade vem de autor, e o Autor por excelência é somente Deus.

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O curioso é que os arautos da Revolução vivem a apregoar a fraternidade dos homens. Como, porém, se falar em fraternidade, sem lembrar o conceito de paternidade, a menos que as palavras tenham perdido completamente o sentido? Um “irmão” sem pai é algo de monstruoso e grotesco. Não podem os homens deixar de reconhecer, em sua vida moral, a lei que preside a perpetuação da espécie. E é esse aspecto moral e religioso da paternidade que nos retira da simples condição de brutos.

O esquecimento e desprezo desse amor paternal dá à humanidade o destino do filho pródigo. Adão, por ser nosso pai, não deixa de ser nosso irmão. E onde este amor paternal desaparece ou é repudiado, o normal entre os homens é que o jugo suave de nossos superiores seja substituído pela tirania da força, pois, como ensina São Tomás, até os navios com tripulação idealmente boa não dispensam piloto.

No plano de amor que Deus Pai traçou para o mundo, as relações sociais entre os homens deveriam ser presididas por essa autoridade paternal exercida pelos nossos irmãos mais velhos e mais notáveis pelo valor de suas virtudes, em vez do primado da força bruta, de que a Sagrada Escritura nos dá como primeiro exemplo o poder despótico de Nenrod, “o robusto caçador”.

“Havendo Deus feito o homem racional à sua imagem, diz Santo Agostinho, desejou que ele dominasse apenas sobre as criaturas sem razão, e não o homem sobre o homem, mas o homem sobre os animais. Eis porque os primeiros justos foram estabelecidos pastores de rebanhos antes que reis dos homens, desejando Deus nos fazer compreender por isso o que pedia à ordem das criaturas e o que exigia o mérito dos pecados” (Cidade de Deus).

Distinguia, portanto, Santo Agostinho dois conceitos de poder político: a realeza paternal representada pelos antigos pastores, tais como Abraão, Isaac e Jacob, que reinaram sobre os seus semelhantes como pais de família, e a soberania exercida, não como a autoridade patriarcal que se manifesta como a relação entre pai e filhos, mas, pelo império da força que constrange os homens como rebanhos de animais e que não tem a Deus por origem, mas o orgulho de Lúcifer, representada por Abimeleque, filho de Gedeão, o mais antigo modelo de tirano totalitário entre os judeus.

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A civilização católica adotou este conceito bíblico de poder político. A sociedade não passa de um conglomerado hierárquico de famílias, cabendo o poder político ao chefe da família mais proeminente. O poder real se manifesta, assim, como esta autoridade conferida por Deus ao pai de família, considerando-se a família em sentido amplo de reunião de famílias irmãs.

Do mesmo modo, na vida profissional, e como consequência da formação familiar da sociedade, a autoridade provinha desse mesmo reflexo da paternidade divina. Estude-se a organização do trabalho anterior à Revolução Francesa, e ver-se-á como as relações entre patrões e empregados eram idênticas às de pais e filhos.

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Por conseguinte, não tenhamos receio de paternalismos na solução da questão social. Basta que evitemos a deturpação do sentimento paterno. Queremos pais e não padrastos.

E que melhor coisa podemos aspirar para as classes humildes do que o tratamento, não de escravos, mas de filhos?

A Igreja é exemplo típico de uma sociedade fundada em bases paternais. O representante de Cristo na terra, é o Pai da Cristandade, o que não o impede de ser o “Servo dos servos de Deus”. E para os que nos acusarem de estar suscitando velharias superadas, repetiremos com Pio X:

“A Igreja, que jamais traiu a felicidade do povo em alianças comprometedoras, não precisa livrar-se do passado, bastando-lhe retornar, com o auxílio de verdadeiros operários da restauração social, os organismos quebrados pela Revolução, adaptando-os, com o mesmo espírito cristão que os inspirou, ao novo ambiente criado pela evolução material da sociedade contemporânea; porque os verdadeiros amigos do povo não são nem revolucionários, nem inovadores, mas tradicionalistas”.


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