Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Cabides para chapéus

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 14 de setembro de 1947, N. 788, pag. 5-6

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O lamentável de nossos tempos não é apenas o espírito de confusão reinante. Mais lastimável ainda é a tremenda falta de lógica e de bom senso, que alarga o campo de ação dos criadores de patranhas. As cabeças se transformaram em simples cabides para chapéus. E o próprio chapéu agora está fora de moda... É o que explica a coragem de certos incorrigíveis escamoteadores da verdade.

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Vejamos um exemplo recente.

O Santo Padre se dirigiu à Cristandade no Domingo passado (7 de setembro):

O curso natural das coisas, diz o Soberano Pontífice no correr de sua alocução, conduz a uma repetição desigual dos bens terrenos, mas a Igreja se opõe a que esses bens se acumulem com exclusividade em mãos de algumas pessoas, enquanto as outras estão condenadas à pobreza e a condições econômicas incompatíveis com a dignidade dos seres humanos. Uma distribuição equitativa das riquezas representa, pois, um objetivo social digno dos vossos esforços, embora a sua realização exija dos particulares e das coletividades elevada compreensão dos direitos e necessidades de seus semelhantes”.

“Ora, comenta o Momento Internacional do “Diário de São Paulo”, quem pode traduzir em termos políticos e práticos, esses conceitos morais e esses preceitos religiosos? No que se refere à Europa, parecem estar qualificados como os mais capazes, os partidos socialistas, sejam quais forem as suas denominações. E é esse exatamente o motivo pelo qual o comunismo personalizou no socialismo - todas as vezes que não consegue devorá-lo ou sufocá-lo em seus anéis - o seu pior inimigo. Vejam-se, no caso, a situação da política francesa e a guerra sem quartel que Thorez declarou a Ramadier”.

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De duas uma: ou o articulista é uma vítima da confusão reinante em torno da atitude da Igreja em relação ao socialismo, ou conhece perfeitamente os termos da questão e pretende, portanto, conscientemente turvar as águas. De qualquer maneira, a nota que perdura é a do baralhamento das idéias, dos conceitos e dos fatos.

Houve tempo em que os arautos da confusão procuravam insinuar que o comunismo era inaceitável por ser ateu. Outro tanto não se poderia dizer de um comunismo cristão. Há ainda quem force esta nota. Mas o último modelo da tática na passagem desse contrabando esquerdista, a atual tática aerodinâmica é outra: o comunismo é péssimo, é totalitário, para ele se dirigem, os raios de tudo quanto é Júpiter tonante. O socialismo, porém, desde que não seja materialista, o socialismo “espiritualista” seria perfeitamente tragável.

E, argumento tirado do último figurino de Paris, a  prova disto está na guerra que atualmente o comunismo está desencadeando contra o socialismo em terras de São Luís.

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Se vivêssemos em uma época em que vigorassem os mais elementares princípios de lógica, bastaria que citássemos o seguinte trecho do artigo quarto da constituição soviética:

“A base econômica da U.R.S.S. é constituída pelo sistema socialista da economia e pela propriedade socialista dos instrumentos de produção, estabelecidos em seguida à liquidação do sistema capitalista de economia”.

Não é bastante, porém. Dirão que neste caso o socialismo se acha deturpado pelo fato de ser praticado pelo totalitarismo comunista. Repetiríamos com o Padre Nelo Trissoto que o socialismo é por natureza totalitário e que, portanto, é uma redundância dizer-se que o socialismo soviético é totalitário.

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Em homenagem, porém, àqueles que ainda conservam a cabeça em cima dos ombros para a nobre função de pensar, vamos passar adiante e estudar o seguinte ponto: será verdade que a Igreja condena o socialismo apenas porque é materialista e que esse materialismo não lhe é intrínseco, mas acidental?

Já Leão XIII na encíclica “Quod apostolici” distinguia o comunismo do socialismo, condenando, porém, a ambos. Referia-se à “peste do socialismo”, sem excluir ou justificar esse apregoado socialismo cristão.

Pio XI na “Quadragesimo Anno” declara expressamente que “socialismo religioso, socialismo cristão são termos contraditórios”.

Diz também Pio XI que o socialismo se dividiu em dois campos (o comunista e o socialista) “as mais das vezes contrários entre si e cheios de ódio mútuo, sem que nenhum deles renegue o fundamento anticristão, próprio do socialismo” (“Quadragesimo Anno”).

Com efeito, segundo a “Quadragesimo Anno”, o socialismo concebe a sociedade e o caráter social do homem de forma inteiramente contrária à verdade católica. Pensam os socialistas, esclarece Pio XI, “que a abundância de bens que se há de receber nesse sistema para empregá-los a seu prazer nas comodidades e necessidades da vida, facilmente compensa a diminuição da dignidade humana, à qual se chega com o processo “socializado” da produção”.

Ademais afirma o Soberano Pontífice que “uma sociedade como a vê o socialismo, por um lado, não pode existir nem conceber-se sem grande violência, e, por outro lado, entroniza uma falsa licença, visto que nela não existe verdadeira autoridade social”.

Eis, portanto, bem definido o carácter totalitário inerente ao socialismo. A socialização dos meios da produção, isto é, sua passagem para as mãos do Estado, transforma este último na “providência” dos indivíduos, diminuindo a dignidade humana. Ao tal monopólio estatal das fontes da produção não se pode chegar sem o emprego também totalitário da violência, tirando-se aos membros da sociedade e às entidades privadas o direito de prover a sua própria subsistência no que diz respeito à produção de bens. Os partidários do socialismo condenam o homem livre e canonizam o Estado, que não é um ente angélico livre de pecado original, mas se compõe também de homens e bem sabemos, pela prática, de que espécie de homens...

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Isto quanto a parte doutrinária. Enquanto o socialismo for socialismo, mitigado que seja, “é incompatível com os dogmas da Igreja Católica, visto que sua maneira de conceber a sociedade se opõe diametralmente à verdade cristã” (“Quadragesimo Anno”).

Livre-nos Deus, portanto, do socialismo “religioso” ou “cristão” pois além de ser contra a ordem estabelecida por Deus para a sociedade humana, ainda por cima procura mistificar os católicos em sua credulidade e boa-fé.

Passemos, porém, à parte política.

Diz o articulista do ”Diário de São Paulo” que o pior inimigo do comunismo é o socialismo. É como se se dissesse que o pior inimigo da cachaça é o restilo. Como se sabe, o restilo é a cachaça destilada... Ou como quem dissesse: o pior inimigo do arrombador de casas é o batedor de carteiras.

Houve tempo em que também se dizia que o pior inimigo do comunismo era o nacional-socialismo. Simplificaram a balela, pondo de lado o “nacional”. Mas a constante socialista permanece, pois ela é que é o elemento essencial no jogo dos que manobram esses diferentes fantoches.

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Vejam, porém, até que ponto chega a coragem dos confusionistas.

A 9 de julho de 1937 estava reunido o 31º. Congresso nacional do partido socialista francês. Nesse dia o comitê central do partido comunista francês dirigiu aos seus colegas socialistas uma carta da qual extraímos os seguintes trechos:

“Dentro ele alguns dias fará três anos que foi assinado o pacto de unidade de ação que uniu nossos dois partidos. Desejamos com todas as nossas forças que esta união tenha seu prolongamento natural na realização do partido único da classe operária da França e temos a convicção profunda que em breve esta suprema esperança das massas proletárias se tornará uma realidade viva”.

Na resposta a este convite, a moção do partido socialista francês “pede a todos os seus grupos e a todos seus militantes que deixassem unicamente aos organismos centrais o cuidado de prosseguir na procura da unidade nos limites das decisões tomadas pelos congressos e de não constranger, ou talvez comprometer, o trabalho de conjunto por tentativas locais e prematuras”.

Por outras palavras, a união dos socialistas não se achava impedida por nenhuma questão de princípios, pois já estavam trabalhando juntos na “Frente Popular” durante três anos, mas a união completa dos dois partidos em um só apenas podia ser prematura e não de todo repugnante aos socialistas.

E a 17 de setembro de 1937, há apenas dez anos portanto, o próprio Thorez, como secretário geral do partido comunista francês, enviava outra carta aos socialistas na qual terminava dizendo que “nada mais, se opunha à reunião da Comissão de unificação e vos pedimos de decidir de comum acordo sua próxima convocação”.

Eis, portanto, como esses dois “ferrenhos”, inimigos trocam bendizias (elogios, n.d.c.) e apenas não se unem por questão de oportunidade e de detalhes. Era preciso mistificar um pouco mais a opinião pública, aliciando novos adeptos para um e outro lado.

Do mesmo modo na Espanha vemos a união completa dos socialistas e comunistas nas eleições e depois na guerra civil. Que socialismo inimigo do totalitarismo é esse, que periodicamente se une aos abraços com o seu “pior inimigo”?

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O fato é em parte explicável. Pitkin escreveu “A short introduction to human stupidity”. No prefácio previne ao leitor que apenas se limitará a fazer uma pequena introdução à história da estupidez humana. Se fosse escrever a história completa, em vez de um volume, teria que escrever toda uma biblioteca.

Está se vendo.

Bem dizia São Paulo que quando o homem despreza a Deus, passa a correr atrás de fábulas.


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