Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
O batismo do socialismo

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 2 de novembro de 1947, N. 795, pag. 5-6

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Dizer que, a Igreja se acha mais próxima do socialismo que do capitalismo, é o mesmo que afirmar ser o socialismo preferível ao capitalismo segundo a doutrina católica.

Ora, de modo inequívoco a Igreja se pronunciou, sobretudo pela voz de Leão XIII e de Pio XI, no sentido de que o regime capitalista “não é por sua natureza vicioso”. Tanto assim que, segundo Pio XI, “Leão XIII pôs todo seu empenho em ajustar essa organização econômica às normas da reta ordem”.

Uma conclusão, portanto, se impõe: se a doutrina católica se acha mais próxima do socialismo que do capitalismo, e se o capitalismo não é um regime condenável por si mesmo, mas aceitável se adaptado às normas da reta ordem, é claro que o socialismo seria ainda menos condenável por si mesmo e ainda mais aceitável, e possível de ajuste.

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Querem, portanto, batizar o socialismo. O feio, o horroroso é o socialismo ateu e pagão, o socialismo que se apresenta como filosofia de vida. Este é inconversível, tem pavor atávico das águas lustrais, pois é totalitário e descende de Nero e de Calígula. Outro tanto não se poderia dizer do socialismo de modestas pretensões, o que se apresenta apenas como sistema econômico ou, em expressão “exquise”, como concentração econômica das riquezas sociais. Seria um regime econômico como qualquer outro, portanto, perfeitamente batizável. Poderia e deveria ser batizado para bem de todos e felicidade geral da nação.

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Os incorrigíveis espíritos lógicos e portadores de bom senso lembrariam, porém, que também o capitalismo é passível dessa dupla apreciação: pode ser considerado como filosofia de vida ou como simples regime econômico.

E foi precisamente como regime econômico que Pio XI o definiu, ao dizer que não é por natureza vicioso, nem condenável por si mesmo, sendo passível de ajuste às normas da reta ordem: “regime capitalista, ou seja aquela maneira de proceder no mundo econômico pela qual uns concorrem com o capital e outros com o trabalho”. E Leão XIII definia, “com expressão feliz”, segundo Pio XI: “Não pode existir capital sem trabalho, nem trabalho sem capital”.

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Vejamos agora como poderíamos definir o socialismo, não como filosofia de vida, mas como simples regime ou sistema econômico. Que vem a ser essa concentração econômica das riquezas sociais? Vem a ser a passagem para a órbita do Estado das fontes da produção. Ora, a produção é filha do capital e do trabalho, pois não há trabalho sem capital, nem capital sem trabalho. Portanto no socialismo o capital, seja móvel ou imóvel, propriedades, mercadoria, maquinário ou dinheiro, existe como existe em qualquer regime econômico, pouco importando o nome que se lhe dê. A única diferença se acha no portador desse capital e no modo de manipulá-lo. No regime socialista a força econômica e política do capital se acha nas mãos do Estado, eis tudo. É simples jogo de palavras usar em vez de “Estado” as expressões “coletividade”, “corpo social”, “bem público”, “concentração das riquezas sociais” etc. E aí é que se acha a ingenuidade, hipocrisia ou estupidez dos que vêm no socialismo um regime econômico mais próximo da cristianização da sociedade que o capitalismo.

Com efeito, que é que transforma o capitalismo, de regime econômico perfeitamente aceitável e justo, em filosofia de vida condenável? Não é o materialismo, não é a sede exclusivista de ganho e de prazeres, com desprezo das normas da justiça social? E qual o móvel propulsor desses males, não serão as paixões, o mau uso deliberado da liberdade ou do livre arbítrio?

E essas injustiças, essas misérias serão miraculosamente removidas pelo chamado primado do proletariado, pela simples mudança, não da filosofia de vida, mas do regime econômico, como no caso do regime socialista ser aceitável, o que negamos à luz da doutrina católica?

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Estamos diante do mesmo equívoco romântico do século passado (XIX). Diante da ofensiva revolucionária da incredulidade liberal, nas hostes católicas não houve unidade de ação. O espírito do mundo se infiltrou entre os filhos da Igreja, enfraquecendo a resistência ao inimigo. O “liberalismo católico” procurou usar as armas do adversário não somente para defender a Igreja, mas sobretudo para “conquistar” os racionalistas e revolucionários. Essa tática de concessões, apesar das condenações de Gregório XVI, de Pio IX, de Leão XIII, preparou a confusão nos meios católicos, que favoreceria a causa dos inimigos da Cristandade. Houvesse a palavra de ordem da Santa Sé encontrado, nas elites católicas, a ressonância que encontrou em um Joseph de Maistre, em um Louis Veuillot, em um Donoso Cortês, e não teríamos a lamentar a corrupção, a inconsciência burguesa que veio preparando as veredas para o despotismo socialista.

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O mesmo romantismo, o mesmo incompreensível espírito colaboracionista e de concessões com o erro, quer agora preparar o caminho para a infiltração socialista no seio da sociedade católica.

Os líricos partidários da mão estendida, não aos comunistas, mas aos socialistas, dão urros de cólera contra todos os que não partilham de suas atitudes levianas, atribuindo ao próprio Leão XIII esse espírito inovador pelas palavras com que abre sua Encíclica sobre a “Questão Operária”, quando a mais elementar análise literária nos mostra que “o afã de novidades”, segundo o grande Pontífice, agitava “os Estados” e não a Igreja...

............... (ilegíveis as primeiras palavras devido a problema tipográfico do original, n.d.c.)  não ver que não há no mundo moderno nenhum avanço irresistível das massas, rolo compressor do proletariado, ou advento insopitável do predomínio do trabalhismo, mas uma pura exploração das massas decadentes e embrutecidas por hábeis “meneurs” (condutores de agitadores, n.d.c.) que nada têm de “proletários” nem de “sofredores”. Por ingenuidade, hipocrisia, ou estupidez, deixam de ver que não se trata da transição de uma civilização baseada no dinheiro para uma civilização baseada no trabalho, mas na passagem revolucionária para etapa final da transição de uma sociedade baseada em Deus e nas diretrizes de Sua Igreja, para a sociedade baseada nos princípios forjados pela Sinagoga de Satanás.

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Esse lirismo, esse vesgo romantismo é que dá aos inovadores essa confiança cega no socialismo “científico” como etapa superior e preferível ao capitalismo.

De onde vem essa segurança na “nova ordem” baseada no trabalhismo socialista, quando os indícios que se nos apresentam no mundo inteiro são os mais tristes e ameaçadores que podemos imaginar? Vejamos os fabianos que manobram o socialismo trabalhista na Inglaterra, os que dirigiam o famigerado Estado novo brasileiro, os líderes do peronismo na Argentina etc. Será essa “maffia” que nos livrará das agruras do capitalismo liberal?

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E não menos ingênuos e românticos que esta confiança cega nos futuros rumos da revolução socialista e nos homens que a conduzirão, são certos meios práticos, preconizados pelos amigos da “mão estendida” para preparar o advento dessa nova era.

Citemos apenas um deles, para edificação de nossos leitores: a abolição do segredo econômico, do segredo comercial e industrial. Se esse ingênuo recurso fosse viável, seria o caso de propormos a abolição da mentira como medida suplementar. Além de garantir a inexistência do segredo, teria a seguinte vantagem extra: sendo o demônio o pai da mentira, perderia seu reinado, pois no mundo apenas passaria a existir a verdade. Teríamos, assim, a abolição dos efeitos do pecado original, e o Paraíso de novo surgiria na terra.

Mais ainda. Se os românticos partidários da “mão estendida” conseguirem, por um decreto do Estado socialista, a abolição do segredo econômico, pediríamos que completassem a medida com a abolição do segredo das lojas, não das lojas comerciais, mas daquelas outras nossas conhecidas...

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Sem a abolição da mentira, bem sabemos qual será o destino das do segredo econômico. Sem a abolição das sociedades secretas, bem sabemos qual será o destino das sociedades políticas.

E inútil será distinguir o socialismo científico do socialismo prático tal qual existe, ou comunismo. Não passará de mera declamação dizer que somente são nefastas as formas totalitárias do socialismo.

O socialismo, não nos cansamos de repetir, é totalitário por definição. O capital é propriedade tanto quanto os bens imóveis. Seu controle estatal não poderá ser feito a não ser à custa de coação. O livre emprego do capital, a livre iniciativa privada no setor da produção não podem ser impedidos a não ser também por medidas totalitárias emanadas do Estado. E que é o socialismo senão a transferência para o Estado dos meios de produção, pelo menos dos principais, que comandam toda a máquina econômica?

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Declaremos, portanto, sem rebuços, que falseia completamente a doutrina social da Igreja, quem considera o socialismo como uma doutrina econômica preferível ao capitalismo. É uma injúria afirmar que a Igreja deseja a manutenção do “statu quo”, ou que ela perfilha os erros do capitalismo. Mas a condenação do socialismo não deixa margem para dúvidas. “É incompatível com os dogmas da Igreja Católica, já que sua maneira de conceber a sociedade se opõe diametralmente à verdade cristã”. São palavras de Pio XI. A pergunta dos católicos ao Soberano Pontífice era no sentido de saber se o socialismo “podia ser admitido e de certo modo batizado” depois de expurgado no tocante à luta de classes e à propriedade privada. E a resposta foi negativa. O menos que se pode dizer desses novos partidários da adesão ao socialismo é, portanto, que são temerários.

Não pretendemos ser mais católicos que o próprio Papa. E evitemos cair nos laços dessa distinção entre socialismo como filosofia de vida e como regime econômico.

Onde os revolucionários, que são donos da festa, não distinguem, a ninguém é lícito distinguir...


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