Instituto Plinio Corrêa de Oliveira

 

A Inocência Primeva e a Contemplação Sacral do Universo

no pensamento de

PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

© 2008 - Todos os direitos desta edição pertencem ao

INSTITUTO PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA

Dezembro de 2008

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Parte I

 

Capítulo 6

 

A realização do modelo

ideal de si mesmo

 

1. O infeliz desfecho de uma vida sem horizontes

A vista do idoso torna-se fraca no sentido material da palavra e, ao mesmo tempo, a mente fica cada vez mais circunscrita às coisas imediatas, preocupando-se com o momento que passa, com o prático, com o concreto.

‘Um casal meu velho conhecido — de uns 60 anos mais ou menos — tem duas preocupações exclusivas. Uma é tocar uma chacarazinha onde moram: galinha e bomba d’água são um acontecimento para eles. Outra é a fiscalização da saúde. De manhã comentam se o coração palpitou durante a noite, e vivem num pavor da próxima peça que a doença lhes possa pregar. Vendo chegar, com a velhice, a doença e as sombras da morte, vão se defendendo freneticamente. Não têm outra preocupação.

‘Uma pessoa mais jovem poderia pensar: «Será possível que se leve a vida inteira para ficar desse jeito? É uma coisa pavorosa — diz — eu não quisera isto nunca! Mas... vou afundando em horizontes e em preocupações que acabam dando nisto»’.[1]

 

2. Arco voltaico entre a imagem primeira da inocência e a última

‘Se um homem soube, durante toda a vida, crescer não só em experiência, mas em penetração de espírito, em bom senso, em sabedoria, sua mente adquirirá na velhice um esplendor e uma nobreza que transluzirá em sua face e será a verdadeira beleza de seus últimos anos.

‘Seu físico poderá sugerir a lembrança da morte que se aproxima, mas em compensação sua alma terá lampejos da imortalidade’.[2]

Quinquagenários, sexagenários poderiam pensar:

‘«Como é bela a juventude! Tenho saudades da minha inocência. Daquela candura de alma, daquele frescor! Não quero morrer sem ter readquirido as qualidades de minha infância, de maneira que quando me apresente diante de Nossa Senhora eu possa dizer:

‘«Minha Mãe, minha vida inteira está posta em vossas mãos. De tudo quanto me destes, não perdi nada. Vós me fizestes frutificar tudo quanto me destes. Mas houve algumas coisas que me foram dadas nos meus primórdios, que assim nunca mais tive, e que preciso recuperar»’.[3]

‘Quando alguém chega aos primeiros albores da razão, Deus lhe manifesta, de algum modo, como quer ser visto, conhecido e adorado’.[4] É bem provável que, quando esteja para morrer, Deus de alguma forma se manifeste novamente à pessoa naquela forma primeva, que é o modo pelo qual a pessoa é mais atraída por Deus Nosso Senhor.

Estabelece-se uma espécie de arco voltaico entre o momento em que a pessoa nasceu e o momento em que vai dar o último suspiro. E aquela imagem especial de Deus novamente se apresenta, atraindo a pessoa e convidando-a para o Céu.

Ao longo de toda a vida, há instantes de rememoração da imagem primeira e de preparação para a imagem última. A pessoa assim preparada, tendo aproveitado a imagem primeira da inocência e recebendo a imagem última, pode dizer: «Oh, meu Deus, eu Vos adoro, e Vos adoro assim».

Então Deus colhe essa alma e a leva para o Céu, porque ela é semelhante à imagem que Ele lhe tinha dado com a inocência primeva.

‘A vida é um rio que não deságua no vácuo, mas num mar congênere com a pessoa e que lhe é semelhante. Ela começou com uma aurora metafísica e termina num sol metafísico’.[5]

 

3. Deve-se crescer em inocência ao longo de toda a vida

Na Catedral de Estrasburgo, a cada quarto de hora, um dos quatro autômatos, no alto do monumental e célebre relógio, se apresenta; e passam diante da morte: um menino, um jovem, um homem na força dos anos e um velho. Anjos se movem. Um deles toca uma espécie de gongo e outro inverte a posição de sua ampulheta para significar que terminou um tempo e começa outro.

De alguma maneira, em nossa vida, quando passamos de uma para outra idade, um gongo simbólico também toca. Uma ampulheta é virada para baixo. Algo muda.

Mas a mudança significa uma ruptura? Ou dever-se-ia pensar numa soma? Um velho pode ter algo da infância, da juventude, da idade madura e de sua própria idade?

A resposta depende da concepção sobre a vida de cada um. Muitos vêem a mudança como uma gradual ruptura. Outros consideram que deveria haver uma soma. — Como?

Geralmente se considera que a infância é inocente, a juventude é ardorosa e idealista, a idade madura ponderada e venal, e a velhice se arrasta. Entretanto, a inocência é algo que convém a todas as idades: deve-se crescer em inocência até a hora da morte.

Essa visão das idades é a verdadeira? É uma fatalidade que seja assim?

 

4. Uma espécie de «luta de classes» entre as idades

A respeito das várias idades do homem há uma concepção ao modo da luta de classes. Na doutrina comunista, cada classe é inimiga das que lhe estão acima. Na «luta de classes» entre as idades, a pessoa mudando de etapa na vida perderia as qualidades e os defeitos da etapa anterior, e passaria a ter qualidades e defeitos diversos.

Dentro dessa concepção, a infância sonha com o maravilhoso: ela é fraca, débil, pequenina, mas é pura. O puro e o maravilhoso seriam próprios da criança.

Depois vem o moço. Puro já não se ousa afirmar, mas é idealista, forte, romântico, amoroso. As más tendências aparecem com o romântico e o amoroso.

Começa depois a maturidade. O indivíduo perdeu o impulso e o idealismo. A força dele consiste na estabilidade, na fixação. A realidade se torna para ele mais concreta. Ele manda, ele governa. Não tem mais a força de um soldado de vanguarda, mas possui o vigor de um general.

Depois começa a velhice. É o desencanto. Nada é nada. O egoísmo é tudo (esta é a concepção que estamos examinando). ‘Fica chupando sua boca vazia de dentes, tolerando sua cabeça vazia de idéias, carregando seus olhos vazios de luz e os seus ouvidos vazios de som. Posto na sua poltrona, no seu chinelo, contemporiza com a morte e goza um pouco a vida até que a morte chegue’.[6]

É a trajetória de uma vida. É uma «luta de classes» de uma época contra outra.

 

5. A soma das idades

Entretanto, quando o homem é fiel, as qualidades das várias idades se somam. Ele deve conservar até a velhice todas as qualidades da infância.

‘Na juventude, deve ter as da infância. Na idade madura, as da juventude e da infância. Na velhice, um requinte, mediante o qual possua todas as qualidades das idades anteriores.

‘Quando morre, entrega sua alma a Deus com as riquezas de toda a vida.

‘É muito mais bonito exalar o último suspiro assim. A pessoa entrega-se a Deus como quem devolve o conjunto dos tesouros que d’Ele recebeu, implorando a misericórdia divina para o que não estiver completo.

‘Assim deve ser a morte do varão católico’.[7]

Portanto, devemos ter como pressuposto, nas várias idades, os dons da idade anterior.

Isto não significa que não devemos amadurecer, mas sim que precisamos somar as perfeições próprias de cada idade. E chegar à extrema idade com o idealismo da infância e com todas as características das idades anteriores.

‘Maria Stuart, Rainha da França e depois Rainha da Escócia, quando menina era saudada em todas as cidades de seu trajeto, na França em latim e em latim respondia às saudações. Tinha sete anos!

‘No fim da vida, quando já era uma velha de cabelos brancos, teve uma manifestação de mocidade que considero espantosa. Na véspera de ser executada, e sabendo que ia morrer, ela dormiu a noite inteira com tanta naturalidade que, na hora de se vestir para a execução, a criada teve que acordá-la. Aproximou-se e disse:

‘— «Senhora, chegou a hora».

‘— «O que é?»

‘— «Senhora, chegou a hora».

‘— «Já vou».

‘Fez as orações da manhã, adornou-se e foi para a morte.

‘Mostrou que seu domínio psíquico estava em plena força. Depois de 18 anos de cárceres, de sofrimento e de uma vida de aventuras, nem todas elas muito bonitas... era o charme e a grandeza da Casa de Lorena!

‘Vê-se que a soma das idades faz nascer grandes precocidades sem tirar aquilo que a infância deve ter. Essas precocidades vão alargando seu âmbito ao longo dos tempos, resultando em pessoas muito precoces, que começam a vida cedo e a terminam tarde. São as grandes vidas da humanidade’.[8]

Se alguém perdeu sua inocência primeva, trate de recuperá-la! E assim vai recuperar a felicidade possível nesta Terra.

 

6. Entrar no Céu como na casa paterna, não como num país estranho

‘Por vezes vem-nos o pensamento de que a entrada no Céu será como se fosse num país completamente estranho, onde não conhecemos ninguém. Ficamos, no fundo, um tanto apavorados... E pode-se ter a impressão de que o julgamento não tem muita relação com nossa biografia, mas com uma tabela de Dez Mandamentos que se deveriam ter praticado. Não nos parece que vamos rever uma pessoa muito conhecida, mas ter contato com um desconhecido que nunca esteve diante de nós.

‘A expressão talis vita, finis ita* só se explica se considerarmos a vita como o existir da pessoa, ou seja, como o conjunto dos anelos e das aspirações que teve, e das batalhas que travou... Na biografia da pessoa, arquitetonicamente concebida por Deus, há um primeiro impulso, e tudo que segue é disposto pela Providência na coerência desse primeiro impulso, para dirigi-lo a uma determinada orientação.

* Expressão consagrada da teologia católica: Tal como foi a vida, será o seu fim. Sentido: a eternidade será como tiver sido a vida.

‘É como se Nosso Senhor dissesse, a respeito dele: «Isto faço com bondade, com condescendência, com misericórdia, e no fim da vida ele vai ver isto de modo perfeito, inexcedível, o que vai atraí-lo a Mim».

‘Assim sendo, toda a existência dele tem um significado. Isto difere da concepção comum sobre o que são o existir de um homem, o Juízo Final e o julgamento de Deus. É algo de completamente diverso. E é belíssimo.

‘O mesmo sucederá também em relação a Nossa Senhora, Medianeira entre Deus e os homens. O sorriso e a fisionomia d’Ela vão nos convidar a ver o aspecto de Deus que, desde o início de nossa vida, queria que víssemos.

‘Eis uma concepção lógica e, ao mesmo tempo, atraente, suave, coerente e exaltante.

‘Na hora da morte acaba o exílio, porque termina o lusco-fusco e se vai ter o grande encontro: o grande encontro com Aquele com «A» maiúsculo, no lar paterno da alma. Com Aquele que é mais eu do que eu mesmo, e em cujo convívio vou passar a viver e a existir por toda a eternidade.

‘É a sensação de volta à casa paterna, depois de uma longa peregrinação.

‘É a procura do semelhantíssimo a mim, mais eu do que eu mesmo’.[9]

Terei então grande apaziguamento, grande serenidade e grande alegria por todo o sempre: ‘Encontrei Aquele que, de certa forma, comecei a procurar no primeiro momento de minha lucidez mental’.

‘É o momento supremo de minha vida: a morte!’[10]

 

7. A tentação derradeira

‘Nesse momento, o demônio poderá nos apresentar tudo que durante a vida atraía nosso lado mau. O demônio é a personificação do péssimo. E se compreende melhor do que nunca o «rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém». Porque, nessa altura, a única saída é contar com Nossa Senhora.

‘De seu lado, Nosso Senhor Jesus Cristo se fará apresentar de um modo afetuosíssimo e muito convidativo. Travar-se-á possivelmente uma batalha, cujo resultado mete medo’.[11]

 

8. O encontro com o símile absoluto de si mesmo

Se, em determinado momento de nossa vida, encontrássemos, andando pela rua, um homem que fosse nós mesmos, mas na perfeição espiritual que deveríamos ter; se esse homem parasse e nos cumprimentasse, e dissesse, por exemplo: «X, como vai?», teríamos, sem dúvida, uma sensação curiosa. Talvez sequer soubéssemos dizer se já o conhecíamos ou não.

‘Ao mesmo tempo julgaríamos que se trata de um desconhecido e de um conhecidíssimo: a pessoa mais conhecida que para nós existe.

‘Seria interessante nos perguntarmos o que faríamos nessa imaginária ocasião’.[12]

Lê-se na Chanson de Roland:

«O conde Roland está estendido sob um pinheiro. Para a Espanha voltou seu rosto. Ele se pôs a recordar muitas coisas: de tantas terras que conquistou por sua proeza; da doce França; dos homens de sua linhagem; de Carlos Magno, seu senhor, que o educou. Ele não pode impedir-se de chorar e suspirar por isto. Mas não quer esquecer de si mesmo; bate no peito, e pede a Deus perdão: “Pai verdadeiro, que jamais mentis, Tu que resuscitastes Lázaro da morte e preservastes Daniel dos leões, preserva minha alma de todos os perigos causados pelos pecados que cometi em minha vida!”. Ele ofereceu a Deus a luva da mão direita; São Gabriel a recebeu de sua mão. Mantinha a cabeça inclinada sobre seu braço e, com as mãos postas, ele foi a seu fim. Deus lhe enviou seu anjo Querubim, e São Miguel do Péril de la Mer. Com ele veio São Gabriel. Eles levaram a alma do conde ao paraíso».*

* La Chanson de Roland, CLXXVI.

A Chanson de Roland insinua e faz sentir essa concepção da morte. Quando desce o Anjo para buscar a alma do guerreiro, ‘é-lhe dada a alegria incomparável de encontrar, em São Miguel, o simile absoluto de si mesmo. Ele tem a alegria de se sentir pequeno diante de alguém, pois o arcanjo não é um simile horizontal, igual, mas lhe é superior.

‘E, na hora da morte, num último ato de veneração e de enlevo, a alma se desprende do corpo e vai se unir ao Arquétipo, sentindo-se pequenina, alegre de se sentir pequenina, e de contemplar, de admirar desinteressadamente.

‘Como uma criança que volta para os braços de sua mãe’.[13]

Cumprir-se-á assim, para a alma inocente, ou que recuperou a inocência primeva, a promessa divina (Gen 15, 1):

Ego ... [ero] merces tua magna nimis.

— Serei Eu mesmo a tua recompensa demasiadamente grande!

 

Fontes de referência:

[1] 2-2-1972. [2] Catolicismo, nº 12, dezembro de 1951. [3] 2-2-1972. [4] 16-5-1976. [5] 19-12-1979. [6] 2-2-1972. [7] 2-2-1972. [8] 1°-12-1974. [9] 16-5-1976. [10] 16-5-1976. [11] 16-5-1976. [12] 16-5-1976. [13] 16-5-1976.