Tenho como certo que, se essa posição dos dirigentes rurais tivesse prevalecido, os proprietários iriam sentir no seu bolso a mão confiscadora do Estado. E aí seria tarde para a classe rural cobrar isso dos seus líderes, porque todos já teriam ido por água abaixo [117]. * * * Na ocasião, sócios e cooperadores da TFP distribuíram aos assistentes um prospecto anunciando o próximo lançamento de A propriedade privada e a livre iniciativa, no tufão agro-reformista, o novo livro da entidade em preparação. 4. Pontos importantes do livroDe um lado e de outro, as posições estavam tomadas e a polêmica engajada, o que favoreceu a publicação do nosso livro [118]. Com freqüência, o PNRA alegava princípios de justiça para fundamentar o que, de sua parte, a TFP — em uníssono com milhões de brasileiros — não hesitava em qualificar de confisco agrário. E os mesmos princípios de justiça, ele os invocava também para denunciar como radicalmente inaceitável o regime fundiário constituído de grandes, médias e pequenas propriedades. Ora, pelo contrário, milhões de brasileiros estavam persuadidos de que, em si mesmo, nada havia de injusto em tal forma de distribuição da terra, contanto que a propriedade privada — quaisquer que fossem as dimensões — cumpria dedicadamente sua função social. Havia, instalado no Brasil, um desacordo fundamental e amplamente difundido sobre o conceito de justiça. Exatamente o conceito de justiça, e suas aplicações práticas, que eram largamente empregados pela Teologia da Libertação. Os adeptos da Teologia da Libertação faziam girar sobre uma concepção radicalmente igualitária de justiça, a parte mais importante de sua argumentação agro-reformista. Essa justiça igualitária é oposta ao conceito cristão bimilenar, segundo o qual pensam os católicos tradicionais contrários à Reforma Agrária. Levantando precisamente naquele momento a questão agrária, o governo não conseguiria evitar uma conexão entre o debate agro-reformista e o debate teológico-filosófico instalado nos ambientes católicos. Envolvendo-se com uma questão de justiça, o governo laico se situaria assim no centro de uma controvérsia religiosa e filosófica candente. No horizonte se ia delineando uma eventual crise religiosa. A TFP alertava o governo para o fato básico de que o Brasil mediano, o Brasil sensato, o Brasil autêntico não queria nem o Estatuto da Terra, mero resíduo, em plena abertura, de um ato característico da era militar, promulgado às pressas e sob pressão, com o consenso de um Legislativo então inseguro e pouco influente. Uma abertura que impusesse por força de uma lei de um governo forte, a 130 milhões de brasileiros, uma imensa Reforma Agrária que a grande maioria deles não queria — e isto sem tempo suficiente para que eles se informassem, opinassem e debatessem — tal abertura atentaria contra si mesma, pois deixaria de ser abertura [119]. 5. Os agro-reformistas obrigados a mudar de táticaA conduta do governo em matéria agro-reformista trazia para este a necessidade de mudar de estratégia. Tal necessidade, imposta pela atitude tanto dos proprietários como dos trabalhadores do campo, teria obviamente por meta a reconquista, pelo governo, da popularidade que seu agro-reformismo lhe fizera perder em largos setores rurais, lhe abalara seriamente em outros, e lhe valera a desconfiança generalizada em todos os setores do País, quer no tocante à eficácia da reforma planejada, quer no concernente aos pendores socialistas — na melhor das hipóteses — do ministro Nelson Ribeiro. 6. A nova tática: ordas de invasores, sob a batuta de eclesiásticosSegundo a imagem do País até então apresentada pelo IV e V Poderes conjugados [ou seja, a mídia e a CNBB], as cidades e os campos de nosso território-continente estavam sempre mais imersos na miséria, “os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres”, segundo os princípios da crítica marxista. Em conseqüência, uma geral explosão de inconformidade estaria para estourar no País. Essa explosão traria derramamentos de sangue generalizados, cujas principais vítimas seriam os proprietários, menos numerosos que os proletários, e portanto necessariamente inferiores à força bruta da imensa massa dos trabalhadores manuais.
Como exemplo, o “caso” característico da Fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul, invadida em outubro de 1985. Nos estandartes dos invasores soprava o vento de certa Teologia da Libertação, a que deviam o apoio de tão grande parcela da CNBB. Todos recomendavam aos fazendeiros uma política de concessões: “ceder para não perder”. Em outros termos, fossem os produtores rurais cedendo lentamente, e conservariam por mais algum tempo a posse — sempre mais reduzida — dos respectivos bens. Pois estariam matando, aos poucos, a fome da fera que seria o polvo deste fim de século. Se o primeiro avança sempre, e o segundo cede sempre, chegaria um dia em que o primeiro teria ganho tudo, e o segundo teria perdido tudo. Em outros termos, o proletariado terá destruído o patronato, e estará implantada no Brasil uma organização sócio-econômica sem classes: precisamente a meta comunista. Agitadores agro-reformistas reunidos por impulso de numerosos vigários, religiosas, e muitos núcleos de CEBs, há tempos vinham constituindo hordas de invasores, com o manifesto intuito de tornar a Reforma Agrária um fato consumado à margem da lei [120]. Eles procuravam justificar suas investidas tomando por base uma fundamentação doutrinária de aparência católica [121]. Como se fossem planejadas por uma só máquina central, as invasões de terras costumavam desenvolver-se em zona afetada pela agitação de católicos de esquerda, em geral intimamente ligados ao pároco ou ao Bispo. Depois de algumas negociações (leia-se intimidações!) feitas com os proprietários, apoiadas, no mais das vezes, pelo vigário ou pelo Bispo, invadiam desinibidamente o bem alheio. As “negociações” prosseguiam então — já agora lideradas pelo padre ou pelo Bispo — e o proprietário, ou abandonava o local para salvar a própria vida e a dos seus, ou capitulava desde logo, aceitando ser desapropriado por preço vil. Não era tão raro o caso de que o proprietário fosse pura e simplesmente morto pelos “pobres” ocupantes. O que obrigaria a família a fugir sem compensações a breve prazo [122]. E já começavam a ecoar nas profundidades de nossos sertões os brados-slogans “pega fazendeiro” [123]. * * * Nessas circunstâncias, jogavam um papel decisivo os homens de Igreja, que deveriam interferir criando uma questão de consciência para os agressores, que cometiam um enorme pecado ao apropriar-se dos bens alheios. Porque a propriedade privada está garantida pelos 7° e 10° Mandamentos da Lei de Deus: "Não roubarás" e "Não cobiçarás as coisas alheias". Entretanto, os fatos indicavam que as manifestações de eclesiásticos - inclusive Bispos - criavam uma questão de consciência, não no espírito dos agressores, mas no espírito dos agredidos, procurando convencê-los de que a justiça, o espírito do Evangelho - numa palavra, Nosso Senhor Jesus Cristo - está ao lado do agressor. O agressor estaria fazendo justiça, e os proprietários não teriam os direitos que pensam ter [124]. Realizavam-se assim, em cerrada cadência, as invasões e as ocupações de terras, sob os acesos aplausos da CNBB, com o bafejo de quase todos os meios de comunicação social, e em presença dos sorrisos algum tanto embaraçados, mas visivelmente comprazidos, do Poder Executivo [125]. 7. Pareceres jurídicos sobre a legitimidade da pronta reação contra os invasoresUma das coisas que me chamavam a atenção era que, muitas e muitas vezes, os proprietários de terra reagiam a essas invasões com uma indecisão e uma ineficácia notáveis, por não estarem certos de seus direitos sobre a terra, e nem do direito que tinham de reagir pessoalmente contra os invasores [126]. Lembro-me de ter comentado com Dr. Plinio Xavier que os fazendeiros estavam com muito receio de defender suas fazendas esbulhadas e de sofrer por causa disso uma vindita que poderia ser eventualmente o cárcere. O problema que provavelmente havia no espírito deles era: “Será que a lei penal não contém uma arapuca qualquer por onde, se nós reagirmos às invasões, vamos parar na cadeia?” Por causa disso, não havia reação da parte deles [127]. * * * Nesse quadro, o que a TFP propôs? Uma coisa que não era bem conhecida dos fazendeiros era o fato de que a lei lhes colocava nas mãos a possibilidade de se defenderem do esbulho de suas terras, sem derraparem para a ilegalidade. O que eu desejava era, primeiro, que os proprietários soubessem disso. Segundo, que o Governo soubesse que eles sabiam. Terceiro, que os mentores da agitação rural também o soubessem. Quarto, que o Brasil inteiro - que não via isso claro - ficasse sabendo que isto era assim, para tirar base às explorações que a CNBB, a imprensa esquerdista e outras instituições de esquerda faziam nessa linha. O instrumento para isso seria exatamente que juristas de renome nacional dessem pareceres que mostrassem que o fazendeiro, turbado ou esbulhado na posse de suas terras, tinha o direito de se defender até mesmo à mão armada, caso não fosse socorrido pelo Poder Público. O ideal seria publicar esses pareceres na imprensa, rádio e TV, bem como notícias deles serem espalhadas pelas agências internacionais. Dessa difusão a TFP poderia se encarregar [128]. * * * A TFP tomou então contato com alguns fazendeiros [129]. Um dos consulentes foi o Dr. Osmar Peres Caldeira, advogado e fazendeiro residente em Montes Claros (MG) [130]. Eles se cotizaram para a publicação de Pareceres de dois eminentes jurisconsultos brasileiros a respeito deste ponto concreto: uma vez que às portas de uma fazenda se aproximasse uma coluna de aventureiros pseudo-trabalhadores famintos que ali quisessem se instalar, qual era o direito que a lei conferia ao proprietário para reagir contra essas hordas? [131] Aos jurisconsultos escolhidos sobravam saber e fama para responder com segurança às perguntas dos fazendeiros. Eram eles o Professor Silvio Rodrigues, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e o Professor Orlando Gomes, da Universidade Federal da Bahia. Seus Pareceres, verdadeiras obras-primas pelo valor jurídico, pela clareza e pela força de sua argumentação, bem como pelo cunho firme e cristalino das conclusões a que chegaram, foram datados respectivamente de São Paulo e Salvador em outubro e novembro de 1985, respectivamente. Demonstraram eles que, segundo o Código Civil (art. 502), o legítimo proprietário, desassistido da autoridade policial, tem o direito de defender-se, e às suas terras, contra o esbulho dos invasores e ocupantes agro-reformistas — o que pode fazer inclusive à mão armada quando necessário [132].
A partir de janeiro de 1986, a TFP deu a mais ampla divulgação aos Pareceres, fazendo-os publicar em 87 jornais de 76 cidades de 21 Estados [133]. A difusão desses Pareceres, acompanhada de exposições ou reuniões para fazendeiros e também para trabalhadores rurais manuais, realizadas por sócios ou cooperadores da TFP em 181 localidades, repercutiu amplamente no País. E avivou nos proprietários a determinação de resistirem, dentro da lei [134]. Começaram a aparecer os casos em que proprietários inconformados, desassistidos pelas autoridades federais e estaduais, preparavam a resistência armada com seus próprios recursos [135]. 8. Zoeira comuno-esquerdista contra os PareceresEra de esperar que a publicação desses Pareceres fosse acolhida com aplauso geral. Pois outra não devia ser a atitude dos bons brasileiros diante de proprietários rurais que, postos em situação sumamente aflitiva, timbravam em defender seus direitos, mas só nos limites da lei. Entretanto, larga parcela dos meios de comunicação social se esmerou em fazer o contrário. Focalizando com luz desfavorável os fazendeiros que agissem segundo os Pareceres, puseram-se a clamar que a campanha da TFP propagava a violência nas vastidões do ager brasileiro. Comentário absolutamente tão descabido como o de quem alegasse que os guardas de proteção postados nos edifícios bancários para a defesa das pessoas e bens ali presentes, constituíssem foco de violência nas cidades. Violência! Obviamente há uma violência injusta: é a de quem ataca os direitos conferidos pela Lei de Deus e pelas dos homens. E há uma violência justa, a qual constitui um direito, e conforme o caso até um dever: é a dos que defendem seus próprios direitos, ou ajudam seu próximo a agir do mesmo modo quando atacado. Vociferando indiscriminadamente contra qualquer violência, em notícias acerca de fazendeiros dispostos a defenderem seus direitos, tais órgãos de comunicação social apenas tinham palavras de simpatia e de encômio para os esbulhadores, mesmo quando usavam de ameaça ou de violência efetiva contra o proprietário rural. Essa contradição só se explicava em função da máxima do comunista francês Proudhon: “A propriedade, eis o roubo”. Máxima esta que ecoa a seu modo em toda a literatura comunista, de Marx até nossos dias. Mas a opinião pública não se deixou arrastar por essas vozes enganosas. E não houve quem — fora dos ambientes da esquerda católica, do PCB e do PC do B — tomasse a sério essas acusações. E era fácil perceber que, uma vez difundidos os Pareceres, os fazendeiros que agissem segundo eles teriam a compreensão decidida do Brasil inteiro. E assim se evitou que hordas de agitadores dessem, por sua própria deliberação, como abolidos, dispositivos essenciais do Código Civil e do Código Penal. Pois se a estas hordas se reconhecesse esta exorbitante atribuição de revogar a lei, e de a substituir por outra estabelecendo precisamente o contrário, o Brasil teria soçobrado na pior das ditaduras, que é a do populacho criminoso, e dos enigmáticos revolucionários que o manipulavam detrás dos bastidores, nas grandes convulsões políticas e sociais, das quais foram sinistros paradigmas a Revolução Francesa de 1789 e a Revolução comunista de 1917. Como sempre, também essa propaganda, de tão ampla envergadura, foi levada a cabo pela TFP na maior ordem e na mais estrita conformidade com as leis humanas e divinas. O que valeu à entidade atestados de delegados, prefeitos e outras autoridades municipais, comprobatórios da conduta modelar dos sócios, cooperadores e correspondentes da TFP. Atestados estes que vieram juntar-se a outros análogos, gloriosos trunfos de anteriores campanhas, atingindo o total de 4.317 certificados do gênero. 9. Decrescem as invasões: CNBB baixa o tomCom expressiva simultaneidade, as invasões e ocupações foram caindo de número, a ponto de, em certo momento, parecerem cessadas! Mas o declínio das invasões e das ocupações parece ter feito ver a nosso Episcopado — agro-reformista fogoso, desconto feito de raras e nobres exceções — que o povo não o acompanhava. O fato é que gradualmente diminuiu o número das declarações e “façanhas” agro-reformistas aparatosas, e a CNBB pareceu calar-se quase por inteiro sobre o grande tema, até há pouco tão de sua predileção. Deu-se isto porque a proximidade das eleições de 15 de novembro teria sugerido à CNBB concentrar-se na orientação do eleitorado acerca da Constituinte? [136].
NOTAS |