Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Minha

 

Vida Pública

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Parte VII

Viagens de 1950 e 1952 à Europa

 

 


 

Capítulo I

Planos e Intenções

1. Finalidade primeira: contatos com setores diretivos da Santa Sé

No ano de 1950 fiz uma primeira viagem à Europa [1] que durou três meses [2]. Viajei em companhia do Dr. Pacheco Sales.

Dr. Paulo Barros e Dr. Adolpho tinham me antecedido [3]. Dom Mayer nos alcançou em Paris e foi conosco depois para Roma [4].

Nessa viagem de 1950, não nos acompanharam os da geração nova (ou seja, do grupo da Martim). Já na segunda viagem, de 1952, alguns desses mais jovens estavam mais amadurecidos, e ela foi feita com alguns deles.

Quais os principais objetivos dessas viagens?

Estava em nosso espírito a idéia de que Pio XII, como seus antecessores, havia publicado encíclicas que freavam a Revolução em vários pontos.

Nós, sentindo no Brasil toda a situação dramática descrita no Em defesa da Ação Católica, tínhamos visto que a Santa Sé nos dera aval pela nomeação de Dom Sigaud e de Dom Mayer como Bispos, e pela carta de louvor que eu recebera de Pio XII [5].

Naquela época eu imaginava haver no Vaticano um ninho de contra-revolucionários colocado nos píncaros da humanidade [6].

A idéia era aproveitar alguns contatos epistolares que tínhamos travado na Europa a partir das indicações do Padre Mariaux nos anos 1940. E ver se nos era possível aproximar dos setores diretivos do Vaticano e conseguir da Santa Sé, para o mundo e para o Brasil, uma política mais definidamente contra-revolucionária, quer do ponto de vista da ortodoxia (para prevenir o progressismo que vinha nascendo), quer do ponto de vista da luta da direita contra a esquerda (para fazer avançar a Contra-Revolução no terreno temporal).

De todos os objetivos, o que nos parecia mais concreto, mais palpável era o dos contatos com a Santa Sé. E nossas idas à Europa foram preparadas na intenção de fazermos de Roma — a Roma eterna dos mártires e dos santos — o pináculo de nossa viagem e, propriamente, o objetivo sumo [7].

Lá deveríamos procurar conhecer os contra-revolucionários do Vaticano, para colocá-los a par dos erros das correntes perniciosas que se haviam infiltrado no movimento católico no Brasil. E obter deles medidas pertinentes, conservando-me depois em contato com eles para a articulação de um movimento contra-revolucionário universal [8].

2. Finalidade segunda: estreitar os laços com os movimentos contra-revolucionários da Europa

Mas, para que fôssemos tomados a sério em Roma e nossa presença tivesse peso, pareceu-nos que deveríamos aparecer em Roma não só com as cartas do Padre Mariaux, mas com cartas de apresentação de todas as direitas européias que não tivessem sido nazistas nem fascistas [9].

A este cálculo somava-se uma razão mais profunda.

Como boa parte das minhas convicções eu devia à tradição que a minha família recebera de fontes européias, eu pensava ser natural encontrar ali o foco dessas tradições ainda aceso, em pessoas capazes de ter o mesmo espírito que o nosso. E eu imaginava que o nosso grupo poderia se expandir muito mais na Europa do que no Brasil.

Daí a minha segunda meta de encontrar no Velho Continente movimentos católicos, movimentos direitistas (excluídos naturalmente os nazistas e os fascistas) fiéis à tradição européia, e que pudessem concordar conosco.

E, dentro desses movimentos, ver se havia líderes de grande vôo, de grande inteligência, de grande capacidade, com o mesmo pensamento que nós e com os quais pudéssemos articular uma coligação mundial das direitas, sob a direção desses líderes. Pois me parecia natural que na Europa estivessem os luzeiros capazes de dirigir o movimento contra-revolucionário universal. Então, eu procurava também esses líderes [10].

Resolvemos então começar a nossa viagem pela Espanha, tomando em consideração ser o mais católico dos países da Europa.

Depois de tomar contato com os círculos espanhóis, passaríamos por Portugal, visitaríamos Fátima e depois iríamos à França para análogo trabalho.

Como aqui no Brasil eu havia recebido um convite do Príncipe Alberto da Baviera para ir à Alemanha, teríamos contato também com os meios tradicionalistas alemães, inclusive com o pretendente ao trono da Áustria, o Arquiduque Otto de Habsburgo, que morava naquele tempo em Paris.

Isto, antes de penetrarmos na Itália, de maneira a nos apresentarmos em Roma com a seleção dos contatos que fizéssemos, e todo o nosso jogo de xadrez guarnecido com todas as peças para travar a batalha final, que era a batalha romana [11].

Foram portanto viagens de apostolado e comportavam muito trabalho e muita preocupação. Tudo foi muito pensado, muito refletido, e eu tomava notas meticulosas para depois não me esquecer [12].

3. Vassalo à procura de suserano

Notem bem: eu não fui à Europa à procura de bases para liderar.

Pelo contrário, se a minha viagem tivesse dado resultado, eu teria vindo tendo por cima de nossas cabeças líderes. Líderes civis na esfera temporal, e líderes de alta categoria eclesiástica que pudessem nos dar uma diretriz.

Isto foi o que fui procurar.

Eu estava, portanto, como um vassalo à procura de suserano. E não como um suserano à procura de vassalos [13]. Fui como um peregrino à procura dos restos da Cristandade.

Infelizmente, a nossa peregrinação deu resultados os mais pungentes, os mais desapontadores que se possa imaginar [14].

Capítulo II

Espanha

1. Carlistas, alfonsistas, movimentos católicos e personalidades

Na Espanha, mantivemos contatos com próceres do movimento carlista e de algum modo também com os círculos alfonsistas.

Os carlistas e os alfonsistas eram os que dividiam entre si o público monarquista da Espanha, público ainda muito forte.

O pretendente carlista ao trono espanhol era o Príncipe Xavier de Bourbon-Parma. Morava em Paris (creio que ele era proibido pela legislação franquista de ir à Espanha), e tinha como lugar-tenente um homem que nos meios tradicionalistas da América Latina era famoso: Don Manuel Fal Conde, um advogado da cidade de Sevilha.

Depois, entramos em contato também com o público católico das associações religiosas.

2. Madri e San Sebastián

Também tomei contato com Don Elias de Tejada Spínola, professor da Universidade de Salamanca, o qual eu havia conhecido no Brasil.

Eu tinha ouvido falar também de Cristiandad, revista católica tradicionalista, que ficava a meio caminho entre o carlismo e o movimento especificamente católico [15].

*   *   *

Quando Dom Sigaud veio de volta da Navarra, no navio ele travou amizade com um coronel do exército espanhol, chamado Manuel Barrera de Aguilar.

Eu o procurei e mantive contato com ele em Madri.

Fomos juntos a San Sebastián e ali participamos de uma reunião de carlistas.

3. Sevilha

La Giralda de Sevilla - Litografía hacia 1844 del artista Genaro Pérez de Villa-Amil. Procede de su obra, España Ártistica y Monumental

Fui também a Sevilha.

Há um velho provérbio, creio que português: “Quem não viu Sevilha, não viu maravilha”. É a própria e literal expressão da verdade. Sevilha é monumental! [16]

Dois monumentos muito importantes da cidade são a Catedral, com a famosa Torre da Giralda (uma torre ainda mourisca, de uma beleza extraordinária), e o Alcácer de Sevilha com seus jardins espantosos que, infelizmente, não tive tempo de visitar.

A Giralda é uma torre colossal, muito alta, se não me engano tem mais de 80 metros de altura. Não é em escada, mas em rampa.

Do lado de fora, a Giralda seria um paredão uniforme e monótono, sem graça, se os mouros não tivessem arranjado um jeito de abrir ali umas tantas janelinhas com desenhos em relevo, criando a impressão de tapete.

Do lado de dentro a torre é feia. O que é bonito são as sucessivas visões da Catedral a alturas diversas, à medida que se sobe.

Eu visitei tanto a Giralda como a Catedral, e andei pelo bairro velho de Sevilha onde morava Don Manuel Fal Conde.

La Torre del Oro - Sevilla - Litografía hacia 1844 del artista Genaro Pérez de Villa-Amil. Procede de su obra, España Artística y Monumental

E no contato com esses monumentos, vi uma torre que toda a vida, desde menino, tive vontade de ver: a Torre do Ouro.

É uma torre octogonal, tão bonita quanto esperava, refletindo-se dignamente no rio Guadalquivir.

A cidade, apesar dos aspectos mouriscos, tem qualquer coisa de profundamente católica, fazendo uma síntese entre o católico e o mourisco. Mas, vendo-se a coisa mourisca, não se sente o mouro, mas o sevilhano. A cidade é “batizada” até onde pode ser, e católica mesmo no seu passado.

Andando pelo bairro velho sentia-se alguma coisa do encanto do tempo antigo: junto com uma forma de pobreza-riqueza, um certo modo de ser da classe alta que também me pareceu encantador e que abria para mim horizontes novos.

*   *   *

Em Sevilha visitei Don Manuel Fal Conde, um homem grisalho, beirando os 60 anos, de estatura afidalgada, muito teso, muito ereto, cabelo cortado à escovinha, com olhos de andaluz, redondos e pretos, cor de pele um pouco dada ao moreno. No total, uma fisionomia atraente, um homem simpático, um pouco reservado, muito acolhedor, muito vivo, muito digno, muito amável. Uma amabilidade que não tinha nada daquele tipo de sorriso idiota e comercial de quem quer vender uma Electrolux, mas um sorriso de batalhador. Olhando de frente, fixando-me nos olhos, muito cavalheiresco, como quem diz: eu o respeito, me respeite.

Eu apertei a mão dele com prazer [17]. Conversamos longamente [18], disse a ele que ia a Paris e que talvez ali encontrasse o Príncipe Xavier de Bourbon-Parma, então pretendente ao trono espanhol. E pedi uma apresentação para ele. Ele me respondeu que com todo o gosto, e me deu uma apresentação calorosa.

Deu-me ainda uma apresentação para o Arquiduque Otto de Habsburgo.

4. Barcelona

Fomos depois a Barcelona [19].

Em uma Missa na igreja dos jesuítas, vi num altar um estojo muito bonito, com uma espada. Perguntei o que era, e a pessoa me respondeu com toda a simplicidade: “É a espada de Santo Inácio de Loyola quando ele era fidalgo”.

Era, portanto, a famosa espada que ele tinha consagrado a Nossa Senhora no Santuário de Montserrat e que depois os jesuítas tinham conseguido.

*   *   *

A catedral de Barcelona é uma bonita catedral gótica. Iluminada de dentro durante a noite, de fora se vêem os vitrais todos coloridos. É uma beleza.

Santo Cristo de Lepanto - Catedral de Santa Eulália - Barcelona

Na catedral de Barcelona há também um velho crucifixo, logo à direita de quem entra. Um Cristo até não muito bonito, mas de grande tamanho e meio torto.

Perguntei:

— Que Cristo é este?

— É o Cristo que estava na nau capitania de Dom João d’Áustria na Batalha de Lepanto. O movimento que o senhor o vê fazer foi devido ao seguinte, segundo uma piedosa tradição: na hora da batalha, uma bala ia atingir o Crucifixo; a imagem então se moveu, desviando da bala. Milagre que entusiasmou muitos combatentes.

— Oooooooooooh!

Outra coisa que é um encanto é uma casa que eles chamam Ayuntamiento, hoje ocupada pela Prefeitura. Toda construída de mármore branco, com pátios e perspectivas que dão a impressão de se estar imerso em plena feeria. Não estive em lugar nenhum em que a presença da Idade Média fosse mais carregada do que lá [20].

Conheci em Barcelona um prato também maravilhoso: paella. É um prato com uma quantidade indefinida de arroz, azeite e toda espécie de frutos do mar. Como gosto muito de arroz, meu entusiasmo pela paella foi sem limites.

Depois me levaram para ver, no cais, a reprodução fac-similar do Santa Maria, Pinta e Niña, os três naviozinhos com que Cristóvão Colombo descobriu a América: umas cascas de noz, sem conforto, sem tamanho, dir-se-ia sem estofo para enfrentar o mar! É a homenagem que se presta ali à coragem dos tripulantes, realmente extraordinária.

5. Entrevistas com o grupo de “Cristiandad

Visitamos também a sede da revista Cristiandad, que era editada em Barcelona por um grupo que tinha uma orientação bem parecida com a nossa.

Ali tive contato com o Padre Ramón Orlandis i Despuig, jesuíta, aglutinador e diretor espiritual do grupo, um sacerdote bem idoso, alquebrado, curvo, mas com o olhar perfeitamente jovem, vivaz, prestando atenção em tudo [21], inteligente, capaz, astuto, um bom padre [22].

Ele era das ilhas Baleares, de uma família muito nobre, a tal ponto que um ramo da família se chamava Orlandis e Habsburgo, do tempo ainda em que os Habsburgos reinavam sobre a Espanha. Ele tinha sido contra-revolucionário a vida inteira [23].

Ele foi logo falando de Teilhard de Chardin, e disse que falava contra porque é jesuíta. Cristiandad servia de instrumento ao Padre Orlandis para exercer uma ação profundamente sadia nas fileiras jesuíticas [24].

Confraternizamo-nos muito. Mas infelizmente dois ou três anos depois ele morreu.

6. Os alfonsistas: entrevista com Bultó

Eu queria ter contato com um alfonsista — os quais desejam a restauração da linha de Alfonso XIII e não da linha de Don Carlos de Bourbon, príncipe das Astúrias — para conhecer a mentalidade que os movia.

Apresentaram-me então um senhor cujo nome era Bultó, íntimo amigo de Don Juan de Borbon y Battenberg, pai do rei Juan Carlos.

Homem muito fino, muito agradável, ele convidou-me para almoçar num clube de muita categoria, e via-se que tinha relações nesse clube. Dava-me a impressão de um gentil-homem realmente.

Então, falamos longamente sobre os espanhóis da linha legitimista e do legitimismo espanhol [25].

7. Cuenca: longa entrevista com o Cardeal Segura y Sáenz

 

Cardeal Segura y Sáenz

Na Espanha, apontaram-me como pessoa muito contra-revolucionária o Cardeal Pedro Segura y Sáenz*, Arcebispo de Sevilha. Disseram-me que era um homem comme il faut. E eu quis visitá-lo.

* O Cardeal Segura nasceu em Carazo, Província de Burgos, no antigo reino de Castela, no dia 4 de dezembro de 1880 e faleceu no dia 8 de abril de 1957, em Madri, aos 76 anos.

Eu tinha uma carta de apresentação. Telefonei e me disseram que ele estava na cidade de Cuenca, que ficava a três ou quatro horas de Madri, e que me receberia às tantas horas.

Tomei um automóvel de praça velho, com pára-lamas periclitantes. E fui sozinho a Cuenca, onde vi coisas encantadoras. Isto foi num sábado, dia 29 de julho de 1950.

Cheguei mais ou menos às quatro horas da tarde. Tratava-se de saber onde era a casa do Cardeal.

Desci e entrei em uma confeitaria para perguntar. E fiquei diante de um quadro como nunca imaginei.

Em plena hora de trabalho, uma orquestra tocando a todo pano! E a confeitaria com grande número de homens jogando dominó, cada qual com a fisionomia de general dirigindo uma batalha: ocupadíssimos, entretenidíssimos e muito sérios.

Perguntei sobre a casa do Cardeal e um homem me disse:

— Suba aqui, desça lá.

Chamei o meu chofer e lhe disse: “Tome nota desse caminho, porque não me cabe na cabeça”.

Eles se entenderam e cheguei à casa do Cardeal.

*   *   *

O Cardeal mantinha todos os protocolos de antigamente.

Fizeram-me entrar numa salinha de espera.

Passados uns quinze minutos, tempo necessário para manter o visitante a uma respeitosa distância, ouço passos que descem a escada. E entra o Cardeal, homem já velho, devendo ter perto de 70 anos [26].

Ele era o tipo característico do espanhol. Parecia mais moço do que era. Não era anêmico, mas tinha uma tez pálida, na qual não se percebia o rubor do rosto. Olhos grandes, rosto um tanto comprido [27], alto, seco, com um solidéu vermelho, vestido com toda a roupa própria de um Cardeal, portando um anel com um rubi lindíssimo. Eu gosto de admirar pedras e devorei o rubi com os olhos quando ele me estendeu a mão para cumprimentá-lo [28].

Sua voz não era de trovão, mas muito modulada, cheia de inflexões. Cortês, mas desses homens que diz o que quer e que vai falando logo [29].

Sentamo-nos e eu disse:

— Tenho uma carta de Dom Geraldo de Proença Sigaud me apresentando a Vossa Eminência.

Ele disse: “A ver” [30].

Ele passou então a falar dos problemas da Espanha diretamente [31]. Daí a pouco estávamos em conversa solta e em grande intimidade. Ele percebeu que eu era ultra antiprogressista e antimodernista. E começou a se abrir [32]. Seu programa era, evidentemente, de me abrir os olhos a respeito de mitos eclesiásticos e hierarcas. Ele do princípio ao fim não fez outra coisa senão procurar abrir-me os olhos [33].

Contou-me a longa história da perseguição que sofreu, pois fora expulso da Espanha pelos rojos (vermelhos). E contou-me também como ele teve de entestar com o Caudillo (Francisco Franco). Era bem o meu programa: nada de rojos, nada de caudilhos! [34]

*   *   *

O enfrentamento com os rojos havia se dado no dia seguinte ao da proclamação da República em 1931.

O cardeal Pedro Segura y Sáenz a caminho do desterro, decretado pelas autoridades republicanas. Junho de 1931

Ele estava em visita pastoral, quando um piquete de cavalaria o detém na estrada, o prende por 24 horas e o expulsa da Espanha sem dinheiro, sem breviário nem remédios.

Começa então um ano de exílio na França: ele, sem dinheiro, rolando de diocese em diocese, sofrendo do mundo eclesiástico francês copiosas humilhações.

Nas casas religiosas cobravam hospedagem dele, Cardeal da Santa Igreja Romana, Arcebispo de Toledo e Primaz da Espanha!

Ele contou-me que esse ano de exílio nessas condições deveu-se a Pio XI.

Logo que foi expulso, ele foi para Lourdes e pediu ordens ao Papa. Não recebeu resposta. Um mês depois, nova carta pedindo pelo menos auxílio financeiro, igualmente sem resposta.

A certa altura, Monsenhor Maglione, Núncio em Paris, foi ter com ele para dizer que sua situação se normalizaria caso ele pedisse demissão da Sé de Toledo.

Durante um ano ele resistiu.

Ao cabo desse ano, estava ele em Sept-Fons, a famosa abadia trapista, e esteve mal à morte. Ali tiveram pena dele*.

* O abade de Sept-Fons, nessa época, era Dom Jean-Baptiste Chautard (1858-1935), o célebre autor do livro A alma de todo apostolado, cuja leitura, como vimos, marcou profundamente a vida de Dr. Plinio.

O médico diagnosticou a causa da doença: traumatismo moral. E escreveu pessoalmente a Pio XI, responsabilizando-o pela situação do Cardeal.

Pio XI então se comoveu, pelo medo do escândalo, e convidou-o para ser Cardeal de Cúria.

Restava um problema: como Cardeal de Cúria, ele deixava Toledo, mas por iniciativa própria. E o coitado, levado pela fome, concordou em princípio deixar Toledo, porque para ser Cardeal de Cúria não podia ser Arcebispo de uma diocese.

Em Roma, ele é recebido na estação pelo Cardeal Pacelli e dois outros dignitários do Vaticano, que o acompanharam ao edifício de apartamentos dos Cardeais.

E ali, logo na chegada, disseram-lhe que Pio XI lhe mandava dizer que desse uma entrevista à imprensa declarando que abandonara de espontânea vontade a arquidiocese de Toledo e o território espanhol.

Resposta dele:

— Cumprirei todas as ordens lícitas que o Papa me der, mas ele não pode me obrigar a pecar. O Papa sabe que isso é mentira, porque tem informação perfeita do ocorrido e não espere de mim que eu minta.

*   *   *

De vez em quando, o Papa se reunia com o Sacro Colégio e passavam juntos em revista os acontecimentos eclesiásticos e mundiais do tempo.

Ele me contou que, numa dessas reuniões, Pio XI pronunciou um discurso contendo um magnífico elogio a ele, dizendo que era a jóia do Sacro Colégio. Mas acrescentou que fora por livre vontade que o Cardeal pedira demissão da Arquidiocese de Toledo... [35]

Terminado o discurso, era do protocolo desfilar diante do Papa, Cardeal por Cardeal, para prestar homenagem. Quando o Cardeal Segura passou por Pio XI, o Papa lhe perguntou:

— Eminência, gostou do discurso?

Respondeu ele:

— Exceto no ponto em que Vossa Santidade mentiu!

— Eu menti?

— Mentiu! Vossa Santidade declarou que pedi demissão, e Vossa Santidade sabe que eu não pedi demissão [36].

Pio XI deu uma risada e disse:

— Vossa Eminência é sempre irredutível.

*   *   *

Em sua estada na Cúria, ele foi nomeado para todas as comissões cardinalícias, excetuadas as políticas.

Começou então o regime de franqueza dele com Pio XI.

Um exemplo.

Na Congregação dos Ritos, ou dos Sacramentos, houve um caso gravíssimo a decidir. Pio XI mandou recado à Congregação de que queria que ela votasse de certo modo. Ele se levantou e formulou o protesto:

— O Papa pode decidir sem nos consultar e pode fazer o contrário do que aconselhamos. O que ele não pode é forçar-nos a dar um mau conselho.

Ele propôs então uma solução oposta à de Pio XI.

Um Cardeal objetou: “A tese de Vossa Eminência seria válida no tempo de Pio X, não no tempo de Pio XI”.

Resposta do Cardeal Segura: “Voto por Pio X”, que não estava canonizado.

No dia seguinte, audiência com Pio XI: todos os Cardeais têm que prestar contas do voto decidido. Ele pede demissão da Púrpura por ver que estava prevalecendo o regime das conciliações.

Pio XI recusa. Ele pede demissão da presidência da comissão, Pio XI recusa também.

*   *   *

Pio XI gabou-se diante dele de que nunca na vida estivera doente.

O Cardeal Segura lhe disse, diante de outros:

— Lamento profundamente. Vossa Santidade não tem a marca dos predestinados.

Pio XI diz: “Não, é uma proteção de Santa Teresinha do Menino Jesus”.

O Cardeal Segura:

— Com ela ou sem ela, ninguém muda a Teologia, e aqueles a quem Deus ama dá cedo ou tarde os sofrimentos físicos.

Algum tempo depois, durante um retiro do Papa, ouve-se um estrondo por trás da cortina. O Papa cai desmaiado. Havia tido um enfarte de coração fortíssimo.

O cardeal Segura então lhe manda um recado: “Parabéns a Vossa Santidade, porque agora tem o sinal dos predestinados”. O Papa mandou agradecer [37].

*   *   *

Ele comentou que Pio XI tinha um gênio muito ruim, mas de um lado sentindo a morte chegar, e de outro lado com tirocínio, disse uma vez ao Cardeal Segura que ele era a única pessoa que lhe dizia a verdade.

*   *   *

O Geral dos Mercedários tinha um privilégio, dado por vários Papas, de conceder condecorações. Pio XI queria reservar só para o Vaticano o direito de condecorar.

Instaurado o processo, o Cardeal Segura previne Pio XI que votaria contra.

Pio XI disse:

Não faz mal, Vossa Eminência cumpra seu dever votando contra e eu cumprirei o meu, não tomando em consideração o seu voto.

O Cardeal vota contra, apresentando uma tese de cem folhas datilografadas, provando efetivamente que os Papas haviam dado esse direito.

Depois, houve uma audiência para explicar o voto vencido.

Pio XI: “Vossa Eminência não me abalou com seu relatório, e não pense que estou disposto a mudar de orientação: suprimirei o direito”.

O Cardeal: “Vossa Santidade pode fazer isto, mas lembre-se de que dará contas a Jesus Cristo, de quem é Vigário, sobre o acerto ou desacerto de sua medida. E aí, Santidade, não há apelação”.

*   *   *

Quando Mussolini fez um discurso no Senado, reduzindo a frangalhos o Tratado de Latrão, o Cardeal Segura disse a Pio XI que não havia remédio senão a ruptura completa com o fascismo e o nazismo.

Pio XI: “Vossa Eminência é muito moço e não sabe que é preciso conciliar”.

Mais tarde, Pio XI resolveu fazer a condenação do nazismo [38].

Nos seus últimos dias, como estava muito mal, pediu aos médicos mais 12 horas de vida para pronunciar um discurso que arrasaria com Mussolini. Os médicos disseram então que não dava mais tempo para isto*.

* Pio XI veio a falecer na noite de 10 de fevereiro de 1939. Ele havia convocado a Roma todos os Bispos italianos, por ocasião do 10º aniversário da "reconciliação" com o Estado italiano. Estava programado para esses dias um importante discurso, preparado há meses, que seria o seu testamento espiritual e onde ele denunciava a violação dos Pactos de Latrão pelo governo fascista e a perseguição racial na Alemanha. Esse documento não foi divulgado.

*   *   *

Palavras do Cardeal Segura na conversa comigo: “Quando fui transferido para Sevilha, Pio XI disse-me que, enquanto eu estava em Roma, ele não precisava se preocupar, porque sabia que eu sempre defenderia os interesses da Igreja. Depois de minha saída, não ficaria ninguém que se interessasse pela Igreja”. E, disse o Cardeal Segura, o Papa acentuou muito: “ninguém”.

No total, ficou bem claro para mim que, apesar do “fraco” de Pio XI por ele, ele achava Pio XI um mau Papa, dizendo expressamente que foi o contrário de São Pio X. Ao longo da conversa ele me disse que era interessante saber tudo isso para se conhecer bem o Vaticano [39].

*   *   *

Na época em que ele era Arcebispo de Sevilha, Franco mandou dizer, creio que na festa de São Fernando de Castela, que iria à catedral participar das comemorações. E queria ser tratado com o mesmo protocolo dos reis da Espanha, portanto que o recebessem no pórtico da igreja com o pálio, para ele entrar junto com o Cardeal.

Isso equivalia ao Cardeal reconhecer Franco como uma espécie de rei de Espanha. E o Cardeal Segura disse que não.

Se não me engano, Franco mandou recado de que se ele, Cardeal, não estivesse lá com o pálio, ele mandaria prendê-lo.

O Cardeal disse: “É o que nós haveremos de ver”.

Na hora da cerimônia, chega Franco com todos os batedores, automóveis, e aquela solenidade toda. Desce, vai falar com o Cardeal que o espera sem pálio e o cumprimenta.

Ele pergunta:

— Eminência, onde está o pálio para eu entrar?

— Está guardado.

— Mas eu disse a Vossa Eminência que só entro na igreja debaixo do pálio.

— Então a conclusão é normal: não entre. Se só entra assim, não entre.

— Mas a questão é que eu tenho direito.

— Vossa Excelência não tem direito a não ser às honras de um Chefe de Estado interino. Vossa Excelência não é rei, nem lhe reconheço como rei. De maneira que, ou entra sem nada, apenas na minha companhia, ou não entra na catedral.

Então Franco, que era galego, disse: “Esses castelhanos (o Cardeal era de Castela) são insuportáveis. Mas não tem remédio, vamos entrar”. E entrou comportadamente com o Cardeal [40].

*   *   *

Depois de uma longa conversa, eu me despedi do Cardeal. Se não me trai a memória, duas horas inteiras de conversa. Saímos muito amigos.

Alguns anos depois, veio a notícia da morte dele [41].

8. Toledo: remanescentes do Alcácer

Durante a Guerra Civil espanhola (1936 a 1939), o Alcácer de Toledo era uma fortaleza ocupada por espanhóis verdadeiramente heróicos que, junto com suas famílias, resistiram e não se entregaram. Os comunistas fizeram galerias subterrâneas por debaixo do Alcácer para fazê-lo explodir, e deram prazo: “Se até tantas horas vocês não saírem, nós amanhã explodimos com o Alcácer”.

O Alcácer durante o assédio republicano

E os que estavam no Alcácer ouviam embaixo, no subsolo, o barulho das picaretas e de outros instrumentos cavando o subsolo.

Visitei este Alcácer, e mostraram-me o lugar, no claustro, onde as pessoas ouviam as pancadas dos comunistas preparando a explosão, enquanto se celebrava a Missa.

Em determinado momento chegaram as tropas anticomunistas e salvaram o Alcácer, e os heróis puderam sair avivados e aclamados por todo o mundo.

Então perguntei [42] ao Coronel Barrera, que me acompanhava [43]:

— Não há uma associação de membros que pertenceram a essa epopéia do Alcácer?

— Ah! sim, tem uma associação: uma irmandade que se reúne uma vez ao ano para celebrar uma Missa nesse lugar [44].

*   *   *

Da viagem à Espanha ficou-me uma idéia: este povo é ainda tão católico, vale tanto e merece tanto que, apesar da decadência das coisas, o primeiro lugar da Europa onde eu procurarei fundar um grupo é nesse país.

Foi o resultado da viagem à Espanha [45].

Capítulo III

Portugal

1. O pai de Jacinta e Francisco

Olímpia de Jesus e Manuel Pedro Marto, pais de Francisco e Jacinta. Foto de autor desconhecido, 1951

Da viagem a Portugal, lembro-me de ter conhecido um homem rústico mas respeitável. Foi num cemiteriozinho de Aljustrel: um trabalhador manual, que de tanto mexer e remexer a terra a sua pele parecia de couro. Olhos pequenos, estatura de média para baixa, vivaz apesar de idoso, apoiado num bordão e muito falante. Não era nada mais nada menos do que pai de Jacinta e Francisco*.

* O bom homem chamava-se Manuel Pedro Marto (1873-1957).

Usava um gorro enorme, do estilo da zona, que descia até quase a metade do peito. O seu bordão era um pedaço de pau cortado de alguma árvore.

Esse homem tinha alma! Vi nele uma certa forma de alegria no enfrentar a vida rude, que é um dos traços de alma do português. A naturalidade com o rude, a alegria no rude, a saúde dentro do rude e o tamancão davam um pouco a ideia da grandeza de Vasco de Gama.

Eu fiquei observando o “ti” Marto conversar. Eles não dizem “tio”, mas “ti”. Ele me falava do cemitério, da hora que fecha, umas coisas dessas. E eu me deleitando com o entusiasmo com que ele falava dessas pequenas banalidades [46].

2. Irmã Lúcia

Estive com a Irmã Lúcia no Carmelo de Santa Teresa, em Coimbra. Dela só vi uma parte do rosto.

Paço Episcopal Bracarense ou Antigo Paço Episcopal Bracarense - Paço Arquiepiscopal

Estava presente o Arcebispo de Coimbra, a quem eu havia pedido licença para visitá-la. Antes de ela aparecer, ele exigiu de mim um compromisso de nada perguntar sobre as visões. Eu não pude senão pedir orações, dizer-lhe três ou quatro palavras e tudo ficou encerrado por aí [47].

3. Braga

Todos nós já ouvimos a expressão: “Velha como a Sé de Braga”.

Quando eu estive nesta cidade (lembro-me que fui lá com o Dr. Paulo Barros e Dr. Adolpho), eu quis ver a Sé de Braga [48].

Na casa do Arcebispo havia umas chinoiseries (porcelanas chinesas) trazidas pelos navegantes portugueses, mas tão bonitas e de uma superior qualidade, que eu quase perguntei a ele se ele me vendia uma daquelas porcelanas. Mas achei que ficaria muito feio e não perguntei [49].

Capítulo IV

França

1. Segunda pátria de todos os homens

Parti depois para a França.

A viagem que fiz à França era a que me dava mais esperanças. As razões dessas esperanças se prendiam a vários motivos [50].

Churchill, num trecho das memórias dele, fala a respeito da França com aquela admiração comovida e fervorosa com que ele em geral se referia a essa nação. Ele então salienta tratar-se de um país dividido em dois por um sulco de sangue que não secou, e que é o sangue vertido na Revolução Francesa. E enquanto esse sangue não secasse, a França não poderia ser um país unido [51].

É onde a luta entre revolucionários e contra-revolucionários ainda é forte. E eu esperava encontrar ali o maior número de contra-revolucionários de minha viagem.

Eu penso da França o que São Pio X, que não era francês, escreveu sobre ela: que o povo francês foi galardoado por Deus com os maiores benefícios, com as maiores graças, com as maiores bênçãos. E há realmente no gênio francês, na cultura francesa qualquer coisa que faz da França o ponto de referência do pensamento humano.

Assim como havia entre os povos antigos o povo judaico, e em função dele é que se desenrolava toda a ação da Providência na história da Antiguidade, assim também há, depois da Redenção, um povo predileto. Esse povo é o francês. É o que eu penso da França.

Alguém disse que é a segunda pátria de todos os homens, a partir do momento em que eles conheçam a cultura francesa e o papel da França na História* [52].

* São Pio X, por exemplo, teve as seguintes palavras, que ele põe nos lábios de Nosso Senhor dirigindo-se à França: “Levanta-te, lava as manchas que te desfiguraram, desperta em teu seio os sentimentos adormecidos e o pacto da nossa aliança, e vai, filha primogênita da Igreja, nação predestinada, vaso de eleição, vai levar, como no passado, meu nome diante de todos os povos e de todos os reis da terra" (Alocução consistorial Vi ringrazio de 29 de novembro de 1911).

2. Abbé Luc Lefebvre e a “Pensée Catholique”

Na França, eu possuía várias apresentações, quer para o mundo eclesiástico, quer para o mundo civil [53].

A primeira pessoa que fui visitar foi o Abbé Luc Lefebvre.

Ele era o diretor de uma excelente revista francesa de direita, chamada Pensée Catholique.

Revista muito interessante, altamente intelectualizada. Trazia artigos de Teologia e de Filosofia muito bem feitos, atacando de frente o que já era a antecâmara do progressismo. Uma revista realmente de primeira classe.

Os artigos do Abbé Luc Lefebvre, além de serem muito sólidos do ponto de vista teológico, eram muito engraçados. Ele tinha uma qualidade que o francês chama verve [54].

Como já tínhamos certa correspondência com ele, quando cheguei a Paris eu lhe telefonei. Atendeu uma voz: “Alô, ici l’Abbé Luc Lefebvre”.

Eu respondi no mesmo tom: “Aqui, Plinio Corrêa de Oliveira”.

Ele: Oh! bonjour, M. le professeur. Desde quando o senhor está em Paris?

Combinamos encontro na casa dele, num bairro que tinha um lindo nome: Neuilly-sur-Seine.

Toco a campainha e abre a porta um padre vestido de batina, cabelo louro escovinha, com um topetinho próprio ao ataque. Rosto comprido e, apesar de já velho, ainda bem corado, rosado, com dois olhos azuis inteligentes. Mas o grande papel na fisionomia dele era o nariz monumental, não por ser grande mas pela forma, gênero nariz grego, que a certa altura fazia uma depressão e começava a crescer, formando uma ponta arredondada: uma coisa totalmente sui generis.

Tinha-se a impressão de que a inteligência escorria dos olhos ao longo desse nariz, e que derivava para os lábios em palavras de vibração, de vida e de interesse.

*   *   *

Ele recebeu-me em seu escritório, onde havia uma escrivaninha, uma cadeira giratória e várias estantes com livros.

Eu o estava achando um homem prodigiosamente interessante. A certa altura ele se levantou para pegar um livro e tomou uma bengalinha em forma de T, na qual se apoiava: “Isso é por causa de um ferimento que eu recebi no campo de batalha durante a I Guerra Mundial” [55].

Depois dessa guerra, ele exerceu o seu ministério sacerdotal, estudou muito e tornou-se um teólogo e escritor verdadeiramente de mão cheia. Fez muitas relações em todo o alto meio eclesiástico francês e romano, e uma boa parte de seus estudos teológicos ele fez em Roma [56].

Almoçamos e jantamos várias vezes juntos. E verifiquei que o homem era muito conhecido em Paris: em todos os restaurantes onde ele ia, vinham pessoas cumprimentá-lo e exprimir solidariedade [57].

Nas conversas ele contava fatos do tempo em que era seminarista em Roma, histórias de São Pio X, de Pio XI, de Pio XII, histórias dos bastidores da vida religiosa francesa. Ele falava aos borbotões e conhecia tudo isso perfeitamente.

*   *   *

Ele havia montado uma livraria direitista, chamada Livraria Lefebvre, próxima ao bairro universitário de Paris. E no momento em que a direita francesa estava completamente achatada, ele, com algum risco para si, continuava com a sua bandeira desfraldada. A revista, a livraria e a organização dele eram as que mais lutavam contra o progressismo e contra o esquerdismo que ia avançando.

E ele nos fez conhecer algumas relações de fato interessantes.

3. Duque de Lévis-Mirepoix

Antoine de Lévis-Mirepoix -(1884-1981)

Um amigo meu francês, o Conde Regis René de Coniac, levou-me para visitar um dos mais altos nobres da França, presidente da Associação dos Nobres, o Duque de Lévis-Mirepoix.

Alto, seco, inteligente, o rosto dele parecia um castão de bengala. Era membro da Academia Francesa de Letras.

Recebeu-me com aquela grande cortesia antiga e convidou-me para fazer uma tournée por vários castelos da França. Mas não pude aceitar e muito amavelmente recusei o convite, que teria sido interessante [58].

4. Com o Almirante Auphan

Outro personagem que visitei foi um almirante bretão, com o qual tive uma longa conversa: o Almirante Gabriel Auphan.

Ele fora Ministro da Marinha de Pétain. Durante a guerra teve um papel saliente, inclusive no afundamento da esquadra francesa em Toulon*.

* Por ordem dele, enquanto Secretário de Estado da Marinha, dois almirantes de Toulon, André Marquis e Jean de Laborde, fizeram ir a pique, na noite de 26 para 27 de novembro de 1942, a frota de guerra ali ancorada, diante da notícia de que os alemães preparavam um golpe de mão para se assenhorear dos vasos de guerra franceses. Enquanto Ministro da Marinha do governo Vichy fez, juntamente com o General Weygand, uma oposição tenaz à política de colaboração com o governo nazista alemão.

 

Afundamento da frota francesa em Toulon  (27 de novembro de 1942)

A esquadra de guerra francesa era de primeira ordem. Se ela ficasse do lado dos alemães, eles podiam intentar o desembarque na Inglaterra. Se, pelo contrário, ela ficasse do lado da Inglaterra, a Inglaterra teria meios de reforçar o seu desembarque na França e de pôr os nazistas para fora.

Os chefes da Marinha estavam na maior desorientação, não sabendo qual seria o dever deles: se aderir a Pétain, que havia tomado o poder em Paris, ou aderir a um governículo que se formou em Bordeaux.

Então, o Ministério da Marinha, portanto o Almirante Auphan, ordenou que a Marinha fizesse a destruição de seus vasos de guerra e os pusesse a pique, caso ameaçados de passar para mãos estrangeiras [59]. Ele era tido como um dos chefes da direita francesa [60].

5. Entrevista com Monsenhor Beaussart

Entre os contatos que me marcaram mais a memória cito o Arcebispo Coadjutor de Paris, Monsenhor Roger Beaussart.

O Arcebispo de Paris tinha uma tendência mais para a esquerda. Este Monsenhor Beaussart era de direita [61] e amigo do Abbé Luc Lefebvre.

Já entrando na velhice e muito doente, morava perto da Catedral de Notre Dame, num castelinho de pedra que era a casa paroquial da catedral. O castelinho do lado de fora era um mimo, e o arranjo interno um encanto: veludos framboise, lâmpadas de cristal, tudo muito bem arranjado. Dentro poderia parecer quase uma casa de bonecas.

Monsenhor Beaussart era um homem alto [62], combativo [63], enérgico; era desses franceses possantes, voz de estentor. Usava bengala por causa da idade, e batia-a no chão quando fazia comentário de alguém com quem não estivesse de acordo. E rugia todas as verdades a respeito de toda espécie de coisas [64].

Recebeu-nos de braços abertos, ficou um grande amigo nosso.

Queria que levássemos até o Papa Pio XII queixas a respeito do que acontecia no mundo religioso francês. Mas não podíamos falar sobre assuntos franceses no Vaticano. De maneira que tiramos amavelmente o corpo, não entramos na questão [65].

O recado que ele nos pediu para dar a Pio XII eu prefiro não repetir, de tal maneira era um recado ardido. Ele estava muito em desacordo com as concessões [66].

6. Conde de “X” e o plano da Europa unida

Na sala de espera desse Monsenhor Beaussart conheci um Conde de “X” [67].

Este senhor era da Nobreza francesa, de uma velha família de origem protestante, calvinista, mas que com o passar do tempo e as boas dragonadas de Luís XIV, tomou juízo e voltou para a verdadeira fé.

Ele se apresentava a mim como católico praticante e como grande amigo de Monsenhor Beaussart. Teria naquele tempo perto de 75 anos e eu 42 anos.

Feitas as apresentações, ele manifestou o desejo de me conhecer mais de perto e convidou-me para almoçar no Automóvel Clube de Paris, ambiente muito fino, mas servindo um almoço plutôt medíocre. Ele, um homem muito agradável de trato.

Como de costume, quando dois homens se encontram por razões de negócio, ou por razões de doutrina, de ideologia ou política, depois de se sentarem, observam um pouco o ambiente, encomendam o menu e os vinhos, e a conversa insensivelmente passa para os assuntos sérios.

Ele me fez elogios de Pio XII (eu ouvira de Monsenhor Beaussart comentários bem diferentes). E quis contar-me coisas da França e da Europa.

Fez também muitos elogios genéricos do Arquiduque Otto de Habsburgo: “Homem muito inteligente, capaz”. Só faltou dizer-me que Otto era de muito boa família...

A conversa não parecia conduzir a grande coisa, quando de repente ele me disse [68]:

Bom, Professor, o senhor com certeza, como líder católico, quer ganhar o seu tempo.

Eu concordei enfaticamente .

— E quer saber o que vai se passar.

Vinha como numa bandeja. Então respondi:

— Sim, claro.

Ele então me fez uma descrição do que seria a política de aproximação entre as esquerdas e as direitas nos próximos decênios, a qual ele descrevia entusiasticamente, apresentando-a como uma coisa muito boa que deveria se dar.

Foi uma exposição fluente, que durou mais ou menos uns quarenta e cinco minutos, em que ele pôs todas as cartas sobre a mesa [69].

Sabe, professor, a Europa está mudando de um modo como ninguém imagina. Em vez de caminhar para uma dilaceração entre as correntes que a dividem, ela, pelo contrário, caminha para uma síntese. Está sendo preparada uma Europa Unida, cujo centro será provavelmente Estrasburgo, a cidade carolíngea.

E continuou:

Está também em gestação um Parlamento da Europa; e, depois do Parlamento, está preparado um governo da Europa. Esse Parlamento e esse governo farão desaparecer completamente as diversidades nacionais. Vão ser eliminadas as fronteiras alfandegárias, de maneira que de um país para outro se poderá fazer exportação de mercadorias inteiramente à vontade, sem impostos, sem alfândegas nem taxas. A Europa terá, portanto, um só mercado consumidor, uma só indústria e um só comércio geral.

Ainda dentro dessa confidência, ele acrescentou:

No interior dos países entrarão em composição todas as correntes, desde o partido comunista até os monarquistas, desde as mais moderadas até as mais radicais e intransigentes [70]. As esquerdas e as direitas vão convergir [71]. E neste Parlamento da Europa Unida haverá representantes de todas as classes sociais, representantes dos industriais, representantes dos sindicatos operários, especialistas e sumidades que exprimirão todos os valores da Europa [72].

E afirmou uma coisa surpreendente:

Os próprios príncipes das casas reais vão colaborar para isso. No Conselho da Europa, eles vão representar a tradição. Outros representarão o dinheiro, e outros ainda representarão a cultura e assim por diante. E esse Conselho vai levar a Europa à completa ligação com a Rússia [73].

E concluiu assim:

Vai assim se abrir uma nova possibilidade para os componentes das casas imperiais e reais, hoje destituídas. Eles não se tornarão monarcas, pois essa época histórica cessou. Mas ficarão como representantes da tradição, enquanto um dos valores da Europa. As casas reais e a antiga Nobreza vão também elas mandar seus deputados para o parlamento de Estrasburgo. E o senhor verá sentado, lado a lado, na mesma bancada, o Arquiduque Otto de Habsburgo e o presidente de um sindicato. E a Europa inteira, desde a sua mais antiga tradição quase carolíngea, até sua expressão mais moderna de extrema esquerda, toda reconciliada, caminhará no mesmo rumo.

Ouvi tudo aquilo sem fazer o menor comentário. Ouvi com um ar de surpresa que velava o meu espanto e a minha completa falta de admiração por esse plano [74].

Na hora da partida, eu agradeci o almoço, dizendo que tinha sido muito interessante, muito instrutivo, mas sem dizer uma palavra que significasse aprovação àquele plano.

Cumprimentamo-nos e ele saiu-se com esta:

Bom, Professor, eu sei que o senhor está de partida para Roma e seria necessário que conhecesse essas coisas antes de abordar um centro internacional tão importante quanto a Cidade Eterna. Aqui está meu cartão de visita. Procure-me na volta, porque então será a outra parte de sua viagem [75].

E inclinando-se para o meu ouvido disse baixinho: “Vou então acompanhá-lo até as melhores casas de perdição, e aí o senhor poderá conhecer as verdadeiras ‘filles de Paris’”.

Isto foi dito na hora de apertar a mão para a despedida.

Soltei a mão dele, disse um “até logo” seco [76] e amarrei a cara. E ele percebeu que eu havia fechado a cortina [77]. Ele foi para uma direção e eu fui para outra e nunca mais nos vimos.

Esse homem sabia perfeitamente que eu era um católico praticante, de comunhão diária. Sabia de meu passado católico, de minha condição de escritor e jornalista católico. Como podia ele imaginar que pudesse me agradar um oferecimento infame daqueles?

Diante de coisas dessas, e depois de alguns desapontamentos que eu tivera na Espanha, fiquei com a sensação desagradável de estar diante de uma parede que eu esperava ser de um probo granito resistente, e que de repente se transforma em uma parede de papelão, da qual saíam vermes e podridão. Quem era essa gente? [78]

7. Visita ao Arquiduque Otto de Habsburgo

Eu possuía duas cartas de apresentação para o Arquiduque Otto: uma do Príncipe Dom Pedro Henrique e outra de Don Manuel Fal Conde.

Mandei levar essas cartas ao castelo de Clairefontaine, onde morava o Arquiduque Otto, acompanhadas de um cartão perguntando quando ele poderia dar-me uma audiência.

Château de Saint-Remy-des-Landes, Clairefontaine-en-Yvelines, que foi residência do Arquiduque Otto, em foto de 1900-1920

Telefonei depois e ele mesmo veio ao telefone, falando um francês excelente e com um bonito acento. Eu disse que gostaria muito de conhecê-lo pessoalmente e perguntei quando viria a Paris. Ele então me convidou para almoçar com ele em Clairefontaine, onde ficaríamos mais à vontade.

Ele marcou a data, desligamos e eu fui a Clairefontaine no dia combinado*.

* A visita se deu no dia 17 de junho de 1952. Clairefontaine foi residência de exílio dos Habsbourg, inclusive da Imperatriz Zita, entre 1950 e 1953.

O castelo era todo de pedra, mas não medieval. Sua construção data do Ancien Régime. Bonito, digno, bem arranjado, possuía bons móveis, andar térreo com portas-janela em semi-arcos muito altos dando diretamente para o pátio, e grandes cortinas. Nada era de grande luxo, mas tudo perfeitamente digno para um príncipe exilado.

Toco a campainha, abrem a porta e eu entro no salão.

Nesse salão havia um grande quadro do Imperador Carlos da Áustria-Hungria (pai do Arquiduque Otto), vestido com o traje de coroação, tendo na cabeça a coroa de rei da Hungria e o cetro na mão.

Espero alguns minutos, entra o Arquiduque Otto. Era um homem esbelto, alto, muito amável, muito agradável, fascinante em todo o seu modo de ser. Manifestamente uma pessoa da Providência feita para grandes coisas.

Era formado pela Sorbonne, com vários cursos superiores e famoso por sua inteligência. Foi um dos homens mais inteligentes que eu tenha conhecido. Um espírito luminoso, penetrante, compreendendo facilmente as coisas e sobretudo dotado de muita facilidade para estabelecer inter-relações entre os vários temas, e percebendo, logo nas primeiras palavras, aonde o seu interlocutor queria chegar. Um interlocutor de mão cheia, com quem era agradável conversar.

Muito fino, mas de uma finura que trazia o encanto incomparável das maneiras transcendentalmente finas da Nobreza. Ao mesmo tempo simplicíssimo, entretanto sabendo perfeitamente quem ele era.

Nada de mais despretensioso do que ele, nada de mais afável, colocando a pessoa à vontade, sem que aparecesse o desejo de assim fazer. Porque esse desejo poderia dar o ar de um ato de compaixão. Ele era aberto mesmo em seu trato.

Exprimia-se em um francês fluente, muito claro, muito elegante. Verdadeiramente tinha o physique de rôle do que deveria ser.

Conversamos a respeito de vários temas, de política e outros. E ele contando fatos curiosos da vida dele, inclusive dizendo que tinha conhecido o Churchill.

Perguntei-lhe a impressão que tivera dele.

Ele disse:

— Professor, o senhor imagine encontrar de repente um rabanete de um tamanho imenso, mas com todas as formas de um rabanete comum: o senhor diria que é um fenômeno da natureza. Assim é o Churchill. O Churchill está para o comum dos homens como esse rabanete estaria para os rabanetes correntes. É um homem colossal, é um fenômeno da natureza, uma superinteligência, supercultura, e com o dom de fascinar.

Eu o ouvia falar e pensava com meus botões. “É verdade, mas o senhor não fica atrás, porque tem o dom da tradição, e um certo encanto indefinido que os charmes dinásticos comunicam às pessoas e que paira acima de tudo” [79].

A certa altura da conversa, ele me fez os maiores elogios de Francisco Franco. E me disse que Franco estava dando uma educação tão esplêndida ao Príncipe das Astúrias, que correspondia exatamente à educação que ele, Otto, gostaria de dar a seu próprio filho [80].

À força de conversar com ele, acabei percebendo que ele se reputava o pretendente ao trono da esquerda e da direita européias. Quer dizer, agradavam a ele os monarquistas de esquerda, que viam a possibilidade de uma composição, ou seja, de uma monarquia liberal-democrática representativa, governando sobre uma sociedade burguesa. E demonstrou também pouca atração pela nobreza enquanto nobreza, e muita admiração pelo mundo comercial e industrial, que naquele tempo estava chegando ao seu oitavo ou décimo auge.

Ele todo confluía para a idéia de uma longa época de paz, na qual tratava-se de ele se inserir, com a nota não tanto de um líder austríaco, mas de um líder mundial.

E dado que ele era o mais alto representante de uma Casa que tinha liderado a Europa - porque o Sacro Império Romano Alemão era a liderança da Europa, e isto no tempo em que a Europa liderava o mundo - ele representava algo para os homens conservadores do mundo inteiro e não apenas os da Áustria, sem esquecer que ele era o pretendente ao trono austríaco e que tinha na Áustria uma base política séria.

Isto, acrescido ao seu valor pessoal, faria dele um personagem mundial, representante não se sabe bem onde, mas pelo menos junto ao setor de opinião pública das direitas do mundo inteiro.

Ele certamente imaginava que, sendo eu do continente sul-americano, ele deveria apresentar um direitismo temperado com um molho da América do Norte. Então transmitiu de si a visão de um pretendente que, se por uma circunstância inesperada fosse eleito presidente da República ou imperador da América do Norte, conservaria tudo tal qual estava, com uma lenta deflexão gradual para a esquerda. Foi a impressão que tive nesse contato.

Princesa Regina de Saxe-Meiningen

Ele não me perguntou o que eu pensava a respeito do que ele dizia. E não entrei em discussão com ele. Assim, a conversa correu cordialmente, agradavelmente, mas sempre com essa nota de ressalva [81].

A certa altura entrou a esposa, a Princesa Regina de Saxe-Meiningen, pertencente a uma daquelas antigas casas soberanas de pequenos Estados alemães, e cuja aparência era de pessoa inteiramente digna de estar casada com ele. Dama muito jovem ainda, e de aspecto régio magnífico!

Era uma princesa que poderíamos ver descer, num conto de fadas, de uma carruagem. Uma princesa, enfim, que estaria bem num traje de princesa medieval. Delicada, muito atenciosa para com ele, embora fosse sua esposa, tratando-o discretamente como uma imperatriz trata um imperador.

Em relação a mim ela se mostrou muito amável, muito gentil.

E passamos para a sala de jantar, onde a conversa continuou.

Terminado o almoço, voltamos para o salão e conversamos um pouco mais. Depois levantei-me, ele me acompanhou até o portão. Estava terminado meu contato com o arquiduque Otto de Habsburgo.

8. Conversa com o Príncipe Xavier de Bourbon-Parma

Digo agora uma palavra dos meus dois longos encontros com o Príncipe Xavier de Bourbon-Parma, tio do Arquiduque Otto, e irmão da Imperatriz Zita, a qual era viúva do Imperador Carlos da Áustria.

O primeiro encontro com ele foi em Paris*.

* Ele era Duque de Parma e Piacenza, por isso chamado Francisco Xavier de Borbón y Parma de Bragança (1889-1977). Foi o chefe da Casa de Bourbon-Parma e pretendente carlista ao trono de Espanha entre 1952-1975.

Participou da Primeira Grande Guerra como oficial de artilharia do exército belga, combatendo nas frentes belga, francesa e inglesa. Igualmente como coronel de artilharia belga, lutou contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial, sendo preso na França pela Gestapo por ter participado da Resistência. Ficou encarcerado em Clermont-Ferrand, sendo depois transferido sucessivamente para o campo de extermínio Schirmeck-Natzweiler na Alsácia, depois para Dachau e por fim Prax, no Tirol, onde foi libertado em 1945 pelas tropas norte-americanas.

Após uma série de vaivéns políticos ligados ao trono da Espanha, foi expulso do país pelo caudillo Francisco Franco. Em 1975 abdicou em favor de seu filho, Carlos Hugo de Bourbon-Parma, vindo a falecer na Suíça dois anos depois, à idade de 87 anos.

Era uma personalidade que tinha passado pelas mais diversas vicissitudes e eu já tinha lido muito a seu respeito e de seus dois irmãos, mais célebres do que ele: o Príncipe Sixto de Bourbon-Parma e a imperatriz Zita, da Áustria.

O Príncipe Sixto, o mais velho, tinha idéias direitistas e por causa disso era odiado pela esquerda francesa.

Xavier e Sixto haviam participado de uma das jogadas políticas mais importantes da I Guerra Mundial.

A Áustria era aliada da Alemanha contra a França e a Inglaterra. E quando a Alemanha começou a perder a guerra, a Imperatriz Zita julgou necessário salvar o trono dos Habsburgos da destruição.

Ela chamou os seus dois irmãos, Sixto e Xavier, e incumbiu-os de irem secretamente à França propor ao governo do presidente Poincaré uma paz em separado. O pivô das negociações era o Príncipe Sixto.

A proposta foi levada a Georges Clemenceau, então presidente do Conselho de Ministros da França. Era tão vantajosa para a França, que Clemenceau teve que fingir adesão à proposta e escreveu encaminhando os dois príncipes para o Rei da Inglaterra, Jorge V.

Eles de fato foram recebidos por Jorge V e pela Queen Mary, e expuseram a tal proposta. Jorge V gostou muito e o plano começou a ser realizado nos bastidores.

Mas a certa altura o plano se divulgou. Ondas de estudantes esquerdistas saíram pelas ruas de Viena vaiando o Príncipe Sixto com o refrão “Sixtus, das ist du”, quer dizer, “Sixto, quem é você”, o seu plano foi divulgado.

Hoje os historiadores estão de acordo que foi uma verdadeira tragédia o fracasso dessa proposta, porque a Europa não teria o nazismo se o plano dos Príncipes Sixto e Xavier tivesse sido levado a bom termo.

Morreu o Príncipe Sixto, ficou só o Príncipe Xavier, e o Príncipe Xavier era o representante de todas as tradições e o pretendente carlista ao trono da Espanha.

*   *   *

Eu tinha uma carta do chefe carlista espanhol, Don Manuel Fal Conde, apresentando-me a ele. Telefonei e ele mandou dizer-me que viria me visitar.

Quando ele chegou ao hotel, o porteiro o anunciou com a maior naturalidade. Desci, levei-o para um salão isolado e iniciamos a nossa conversa.

Ele me contou fatos da vida dele e eu contei um pouco da minha. Ele tinha participado de acontecimentos da história universal e eu tinha uma certa participação na história da Igreja no Brasil.

Um dos fatos pungentes que ele me narrou foi sua prisão em campos de concentração nazista, onde teve uma inflamação dentro do ouvido que lhe trazia uma dor terrível e deitava pus. Por causa, disto foi recolhido na enfermaria.

Então ele me narrou esta cena lancinante.

Ele estava gemendo à noite na enfermaria e não havia médico alemão que o tratasse, quando se aproximou dele um prisioneiro judeu e, falando bem baixinho, disse:

— Esta sua inflamação, do jeito que está, pode resultar em gangrena e o senhor morrer. A saída é lhe fazer um furo com uma tesourinha, que eu desinfetarei em uma vela às ocultas das autoridades. É a única possibilidade de viver. Mas não tenho anestésico e terei que furar fundo. Se Vossa Alteza tem a resistência de não dar um grito nem gemer até ao fim da noite, então eu faço a operação. Se Vossa Alteza não me garantir isto, eu não poderei fazer, pois eu não só morrerei, mas um mundo de pessoas a quem eu faço bem aqui ficará privada de meu auxílio. Vossa Alteza aceita ou não aceita?

Ele disse: “Aceito, pode fazer”.

Ele: “Não basta, de manhã Vossa Alteza tem que fingir que passou bem a noite e cumprir o dia normal, porque do contrário desconfiam de qualquer coisa”.

Ele aceitou. Disse-me que foi uma coisa terrível. Ele pôs a ponta do travesseiro dentro da boca e a encheu completamente, de maneira a não escapar um só gemido. E o médico trabalhou dentro do ouvido dele, extirpando o que era preciso extirpar, e ele lutando contra a dor, sem gemer, sem anestésico, até a luz começar de manhã a filtrar pela janela.

*   *   *

Quando chegou a minha vez de falar, pensei com meus botões: “Em vez de falar de meus atos, para ele saber quem eu sou, vou falar de nossas idéias”.

E desenvolvi para ele aquilo que futuramente seria a tese do livro Revolução e Contra-Revolução.

Em certo momento da exposição, ele me disse:

— Sou obrigado a interromper, porque tenho um compromisso para a hora do jantar.

Convidei-o para jantar e ele disse que não, por causa desse compromisso, e acrescentou:

Se o senhor permitir, depois do jantar volto, porque eu queria que o senhor acabasse a sua exposição.

Às horas tantas ele apareceu e continuamos a conversar. Foi uma conversa de umas cinco-seis horas ao todo.

Ele me ouvia atentamente. E na saída ele me apertou a mão e disse:

Que pena eu não ter conhecido o senhor antes! Muitas coisas se teriam passado de modo diferente.

*   *   *

Como ele ia a Roma, marcamos um encontro no apartamento da Duquesa de Sorrento Bracciano.

Mas tive a oportunidade de dizer a ele o seguinte:

— Príncipe, permita-me dizer-lhe uma coisa. Sou da América do Sul e portanto não conheço a Europa como Vossa Alteza. Mas tenho muito receio de que Vossa Alteza, dentro de pouco tempo, seja sabotado no Vaticano e não consiga mais nenhuma espécie de audiência e de entrada, por causa do progressismo que vai entrando.

Ele não tinha idéia do problema. E nos despedimos.

*   *   *

Viajo pela Alemanha, por uma porção de outros lugares, e por fim volto a Roma.

Procuro por ele na casa dessa Duquesa e não havia notícias. Como não sabia onde achá-lo, retomei minha agenda.

Um dia, andando pelas ruas de Roma, encontro-me com ele, com fisionomia acabrunhada.

— Como vai, Príncipe?

— Como vai, Professor. Olhe, não tive coragem de marcar encontro com o senhor.

— Mas por que, Príncipe?

— Estou completamente aniquilado. O que o senhor predisse me aconteceu. Cheguei aqui e encontrei o terreno completamente minado de progressismo, sem futuro, sem nada. Amanhã vou viajar.

Ele estava realmente acabrunhado.

*   *   *

Muitos anos depois, já na década de 1960, esteve um filho dele aqui no Brasil. Veio procurar Dom Bertrand, porque são primos. Visitou a sede da rua Pará, conversamos um pouquinho e eu não disse ao filho que tinha conhecido o pai dele.

A certa altura o filho me diz:

— Papai conhece o senhor.

— É verdade, eu tive o prazer de estar com ele em Paris em 1950.

— É, e o meu pai tem o seu livro Revolução e Contra-Revolução na biblioteca.

Era um vago eco daquela conversa que nós havíamos tido [82].

9. Visita a Paray-le-Monial

Ainda na França, estive em Paray-le-Monial.

Paray-le-Monial é o lugar famoso onde está o convento da Visitação, em que Santa Margarida Maria Alacoque recebeu as revelações do Sagrado Coração de Jesus.

Nave da Basílica de Paray-le-Monial

Durante a Missa, enquanto eu rezava, mecanicamente os meus olhos foram se pousando na igreja. E eu fui saisi, me senti tomado pela igreja.

O tamanho, o tipo de pedra, os arcos, não sei que imponderáveis havia ali que me prendiam a atenção. E eu procurando afastar a idéia, para prestar atenção na Missa. Mas a impressão me voltava: “Isto aqui não é uma igreja paroquial qualquer: é um monumento muito sério, muito importante, uma coisa magnífica”.

Chegamos ao fim da Missa e eu saí com um enlevo enfático pela igreja.

Recentemente alguém me disse que esta igreja tinha pertencido a Cluny.

Eu havia esbarrado em Paray-le-Monial e, sem perceber que era um prédio de Cluny, o que ali havia de resto de Idade Média em mim palpitou [83].

*   *   *

Saindo dessa minha visita ao convento, deparei com uma pequena livraria com todas as aparências de livraria católica.

Divisei à distância uns cartõezinhos com iluminuras, muito bem arranjadinhos. Julgando que neles estivessem contidas frases de Santa Margarida Maria Alacoque para o uso dos fiéis, veio-me a idéia de, sendo Dª Lucilia fervorosa devota do Sagrado Coração de Jesus, comprar uma coleção desses cartões e levar para ela.

Qual não foi a minha surpresa quando, aproximando-me da livraria, vi que esses cartões continham pensamentos de Voltaire, de Diderot, de D’Alembert. Ou seja, dos mestres da impiedade francesa do tempo do Iluminismo. E que eram vendidos sob a aparência de santinhos do Sagrado Coração de Jesus. Eu me retirei horrorizado e não mais pus os pés lá [84].

Capítulo V

Alemanha: o príncipe Alberto da Baviera

Eu havia conhecido no Brasil o Príncipe Alberto da Baviera e mantinha relações de amizade com ele [85].

Castelo de Berg, ao lado do lago Lago Starnberger em postal do séc. XIX

Em 1950 ele esteve no Brasil e, sabendo que eu ia à Europa naquele ano, disse-me:

— Faço questão de que o senhor vá visitar meu castelo, e vá conhecer a minha esposa e os meus filhos. Eu tenho todo empenho nisto.

E então fui.

Chegando ao aeroporto de Munique, eu o vi ainda em ruínas devido à guerra [86]. Eles haviam reconstruído somente a pista de avião, a qual era mais excelente do que a de antes da guerra. A Alemanha estava exaurida e não havia possibilidade econômica de reconstruir o prédio do aeroporto [87].

Chegando lá, telefonei para a esposa do Príncipe Alberto, a Princesa Marita [88]. Ela me recebeu muito bem, jantei lá e pousei uma noite no Castelo de Berg.

O castelo era o próprio lugar onde o Rei Luís II da Baviera morrera misteriosamente. No lago, uma cruz assinalava o lugar onde o cadáver dele havia aparecido, não se sabendo se foi assassinato ou suicídio. Um lugar histórico, portanto [89].

Capítulo VI

Roma

Nesta viagem, alcancei o Vaticano antes da reforma conciliar. E ia lá com o espírito repassado de emoção e de veneração.

É a postura natural do fiel que vai à colina suprema do mundo, à colina do Vaticano, no sentido figurativo da palavra incomparavelmente mais alta do que o Himalaia, mais alta do que as estrelas e, se se pudesse dizer, a colina cujo píncaro toca no Céu [90].

1. Canonização de Santa Joana de Valois

A primeira canonização a que assisti foi a de Santa Joana de Valois, filha do Rei Luís XI da França*.

* Ela foi canonizada no dia 28 de maio de 1950.

Vista da cerimônia de canonização de Santa Joana de Valois assistida pelo Prof. Plinio

Vimos chegar os membros da Família Real da França, hoje destronada, mas gozando ainda de um grande prestígio. Os homens estavam de casaca e as princesas em grande traje de gala. Tomaram lugar do lado do Evangelho, que é mais honroso do que o lado da Epístola: é reservado aos príncipes.

Em certo momento ouço do lado do povo, palmas, palmas, palmas, e vejo entrar, despertando um interesse visível em todo mundo, um chefe tribal africano, uma espécie de rei.

O Vaticano, pai de todo o mundo, querendo atribuir a ele uma honra cabível, tinha reservado, entre os fiéis, um pequeno trono todo dourado, e com cadeiras para os assessores dele se sentarem também.

De maneira que ele não se confundia com o povo, mas não se confundia com os príncipes. E estava contentíssimo!

Ele entrou com uma coroa de madeira pintada de ouro. Mas era uma coisa a ser vista com muita simpatia do ponto de vista da Fé, porque significava uma penetração da Igreja, um desejo materno de civilizar, incorporar a si.

Foi uma tempestade de aplausos. Ele sabia se comportar. Sentou-se dignamente no trono dele.

Tenho a impressão de que esse homem, se não era católico, caminhou um passo na linha da conversão. Ele se sentiu querido, amado, não é apesar de ser negro, mas por ser negro. E convidado a sentar-se em um lugar condigno, que não era igual ao dos outros príncipes, mas um lugar muito melhor do que o da maior parte dos brancos que estavam dentro da Basílica, e usando aquela coroa de madeira que o deixava dignificado.

É a mão de mãe com que a Igreja toca essas coisas todas. Acho magnífico! [91]

2. Audiência com Monsenhor Montini

Mons. Montini junto ao Papa Pio XII, durante os anos que serviu junto à Secretaria de Estado

Duas semanas depois de assistir a essa canonização, tive uma audiência com Monsenhor Montini.

Estávamos em 1950, um ano apenas de distância do recebimento da carta assinada por Monsenhor Montini, felicitando-me em nome de Pio XII a respeito do meu livro.

Indo a Roma era normal, era curial que eu fosse visitá-lo e apresentar minhas homenagens. Dom Mayer estava em Roma e queria ir também. E fomos juntos.

Monsenhor Montini, junto com Monsenhor Tardini, era então Substituto da Secretaria de Estado do Papa Pio XII, o maior dignitário incumbido da política do Vaticano. Pois, após a morte do Cardeal Maglione, Pio XII não teve mais Secretário de Estado, mas dois Substitutos de Secretário de Estado: Monsenhor Montini (futuro Paulo VI) e Monsenhor Tardini* [92].

* Monsenhor Tardini, cujo nome completo era Domenico Tardini (1888-1961), fora nomeado Substituto de Secretário de Estado por Pio XII em 1944. Em 1958, João XXIII o elevou ao cardinalato e deu-lhe o cargo de Secretário de Estado.

Sobre ele, Dr. Plinio ouviu de Monsenhor Antonio De Angelis, conselheiro universitário eclesiástico da Unione Internazionale Pro Deo e de orientação francamente favorável às inovações, a referência de que era um homem de direita e monarquista. Já o Monsenhor Montini, dizia o mesmo Monsenhor De Angelis, era "mais compreensivo diante dos novos problemas".

Monsenhor De Angelis ainda achava que "a revolução ainda não se fez propriamente: está-se fazendo. Pois as revoluções na Igreja não se fazem com bombas, de um momento para outro e com grandes encenações. Não... na Igreja tudo se faz devagar, aos poucos. Vai-se passo a passo conseguindo isso dessa pessoa, convencendo aquele de que tal coisa é necessária. É aos poucos, por conversas... com o tempo..." (Relatório sobre essa conversa, realizada dia 9/7/52, redigido por um membro do grupo da Martim Francisco que havia acompanhado Dr. Plinio na viagem à Europa de 1952).

Uma audiência com Monsenhor Montini era muito difícil de se obter. Mas, nesta ocasião, foi só pedir pelo telefone ao seu secretário, que ele a concedeu [93].

*   *   *

Pode-se dizer que essa visita a Monsenhor Montini foi o último episódio da história do Em Defesa da Ação Católica [94].

As audiências do Vaticano vão de nove horas da manhã até ao meio-dia ou uma hora. A nossa audiência estava marcada para o fim [95].

Eu entreguei ao secretário o meu cartão e ele veio logo com uma resposta muito amável: “Monsenhor Montini manda dizer que está atendendo a uma pessoa de fora do país que terá de viajar, e revendo um material. A audiência vai ser forçosamente grande, mas se o senhor tiver tempo de esperar, ele ainda o atenderá”.

Eu disse que esperaria, e Dom Mayer junto comigo.

*   *   *

Passei por uma dificuldade muito grande nessa espera. Entrou um Cardeal alto, um pouco magro. Esse Cardeal também pediu para falar com Monsenhor Montini.

E o secretário disse a ele:

— Doutor Plinio Corrêa de Oliveira, que está aqui, chegou antes de Vossa Eminência. E em princípio poderá ser recebido antes de Vossa Eminência. Mas se Doutor Plinio tiver essa gentileza, Vossa Eminência passa na frente.

Era uma coisa que eu não podia recusar.

Ele, que não me tinha visto ainda, olhou para mim e disse com um acento português carregadíssimo:

— Mas, então o senhor é “brasilairo”?

— Sim, senhor, sou.

— Eu sou de tal lugar assim (uma das numerosas colônias que Portugal possuía). Então me dá cá um abraço, porque falamos a mesma língua.

Eu me levantei, nos abraçamos e ele disse:

— Minha audiência é curta, de maneira que o senhor vai perder pouco tempo por minha causa. Mas, enquanto não sou atendido, vamos conversando.

— Oh! Eminência, quanto prazer.

Sentei-me. O homem, muito amável, começou a conversar. Mas ele tinha um acento português tão carregado, que eu não conseguia entender o que ele dizia. E ele falava, falava, falava, e eu tendo que fingir que estava entendendo para não ser indelicado. De fato não entendia uma palavra [96].

E eu muito mal à vontade, porque de repente ele poderia me perguntar: “O que é que o senhor diz a respeito de tudo isso?”.

Afinal, o homem que estava com Monsenhor Montini saiu e fizeram entrar o Cardeal. Eu respirei [97].

O Cardeal demorou um pouco e eu pensei: “Monsenhor Montini vai dizer que já bateu a hora do almoço, que eu volte outro dia”.

Mas veio o camareiro [98] e disse que Monsenhor Montini, sabendo da grande amizade entre Dom Mayer e eu, propunha nos receber juntos, a não ser que cada um de nós tivesse algo particular para expor a ele.

Achamos curioso que ele soubesse da grande amizade que nos ligava. Aliás, encontrei o Vaticano muito mais informado a nosso respeito do que poderia imaginar. Dissemos que sim e entramos juntos.

*   *   *

Monsenhor Montini era uma pessoa ereta como uma espada. Um prumo de engenharia não seria mais retilíneo do que era ele. Seco, magro, com um nariz muito avançado, olhos pequenos e penetrantes, olhando tudo e indagando tudo. Lábios muito finos e cortantes, e muito desejo de ser afável, de ser amável [99]. E ele nos recebeu muito amavelmente [100].

Dom Mayer disse que tinha ido fazer uma homenagem. Eu disse mais ou menos a mesma coisa [101].

Depois de cumprimentar o Sr. Bispo, voltou-se para mim:

Professor, quero que saiba que a carta que lhe escrevi não foi mero documento de civilidade. Cada um de seus termos foi pesado atentamente. Tenho prazer de o declarar aqui, em presença do Sr. Dom Mayer [102].

Ele então começou a falar das imensas possibilidades do Brasil, teceu elogios ao Itamaraty, dizendo que era um dos primeiros ministérios de relações exteriores do mundo e de grande classe, comentou sobre as saídas diplomáticas de categoria que dava. Ele encheu o tempo elogiando o Itamaraty [103].

Percebi que ele não estava querendo conversar sobre a briga contra a Ação Católica, e eu não queria forçá-lo. Mas percebi também que ele estava querendo ser amável comigo [104].

Nisto, um relojinho colocado na lareira da sala bateu uma hora. E então fizemos um movimento de ir embora.

Em tese, deveríamos esperar ele nos despedir, porque ele era a autoridade maior. Mas manda o bom senso que se atenue o protocolo em certas circunstâncias. E dissemos:

— Excelência, já está muito adiantada sua hora, o relógio está batendo.

— Não, não, espere mais um pouco.

Afinal de contas, ele deixou a conversa correr um pouquinho mais, mas a certa altura ele mesmo deu uma entrada de bom diplomata, como quem diz: “Se vocês agora pedirem para sair, é hora”.

Então pedimos para sair [105].

Por fim, cessada a audiência, deu-nos medalhas comemorativas do jubileu episcopal de Pio XII [106]. Eu agradeci e aí disse a ele:

— Excelência, antes de ir embora queria lhe pedir um favor. Vai haver por esses dias uma canonização, a de São Vicente Strambi, e eu gostaria muito de assistir. E queria pedir um convite, para mim e para quatro companheiros”.

Dom Mayer não precisava, porque Bispo entra no cortejo do Papa.

Ele me disse: “Pois não. Em que hotel o senhor está?”

Eu disse: “Hotel Ambassatori”, hotel muito conhecido de Roma.

Ele não pediu para escrever meu nome, nem nada: “Pois não”.

Dois ou três dias depois aparece no meu hotel um estafeta do Vaticano com cinco convites (honra excepcional) para assistir à canonização da tribuna do corpo diplomático [107].

3. Canonização de São Vicente Strambi

No dia da canonização para a qual tínhamos convite, chegamos bem antes da cerimônia começar [108]. Fomos colocados a uma certa distância de uma dama da aristocracia espanhola, com seu traje de gala, aquela mantilha presa ao cabelo com um pente alto de tartaruga.

Julgamo-nos bem instalados e nos dispusemos a assistir à cerimônia.

De repente, vejo um daqueles nobres da Câmara Papal, gola de renda ao sistema de Filipe II, roupa de veludo preto e ornamentos de prata, olhando-me e caminhando em minha direção.

Eu pensei: “Comigo não há de ser essa história. Eu não conheço este homem e sobretudo ele não me conhece”.

Quando chegou a certa distância, o homem faz uma vênia, e eu também faço uma vênia para ele. E ele diz:

Sua Excelência Monsenhor Montini manifestou-se preocupado pelo fato de o senhor Professor não estar bem colocado para assistir à canonização como conviria, nem o seu amigo. Então, manda-lhe oferecer dois lugares embaixo, que estão vagos, na primeira fila”.

Eu disse: “Onde está Monsenhor Montini, para agradecer?”

Ele disse: “Atrás”.

Olhei para trás, estava ele reto, teso, com dois olhos em mim. Eu fiz uma reverência, ele fez um pequeno cumprimento e fomos, o Dr. Adolpho Lindenberg e eu, para a primeira fila.

Ali, do meu lado direito, estava o embaixador do Egito, com um fez vermelho encimado por um pompom; e à minha esquerda, Dr. Adolpho.

*   *   *

Começa a cerimônia de canonização.

Tocam os sinos da Basílica de São Pedro, sinos de bronze, com categoria e majestade. Tocam lentamente, mas expelem vibrações que criam a impressão de que vão mover as estrelas e o mundo. Em certo momento, todo o carrilhão está tocando.

Quando os sinos param, ouve-se de longe o som das trombetas. São as duzentas ou trezentas trombetas de prata desenhadas por Michelangelo, que anunciam o cortejo do Papa que vem chegando. As portas de bronze da igreja de São Pedro se abrem e começa a entrar o cortejo [109].

O Papa vinha na Sedia Gestatoria, toda de marfim, com incrustações de prata. E ao seu lado, dignitários carregando os flabelli, leques de pluma enormes, e a Guarda Nobre com couraça, a Guarda Suíça, a Guarda Palatina [110].

Era um cortejo lindíssimo, mas também longuíssimo, porque pelo protocolo da Igreja os inferiores vêm na frente e os superiores vêm atrás. Primeiro, eclesiásticos de uma ordem menor. Depois, os superiores gerais das Ordens religiosas. Em seguida o famoso papa negro, quer dizer, o superior geral dos jesuítas. Encerrando, os Bispos, Arcebispos, Cardeais [111].

Por fim entrava o Papa, sob uma tempestade de aplausos na Basílica. O povo se ajoelhava.

Nisto, no alto da cúpula da igreja de São Pedro, onde há uma frisa, ouve-se um coro majestoso que canta: “Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam, et portae inferi non praevalebunt adversus eam” — Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra Ela”.

Isto, mais os sinos, mais as trombetas, mais o coro, mais os aplausos do povo, o Papa muito ereto e dando bênção de um lado e do outro, formava um espetáculo verdadeiramente inesquecível, uma coisa extraordinária.

Quando o Papa passou pela tribuna do corpo diplomático, ajoelhamo-nos. Os diplomatas de países não católicos, como o nosso vizinho egípcio, faziam uma profunda vênia como diante de um monarca que passa [112].

O Papa — alto, esguio, com mãos muito brancas, compridas, pareciam feitas de marfim — desce da Sedia Gestatória, vai de tiara ao seu trono e senta-se.

Começa a Missa, que se desenrola com pompa. Chegado o momento da Consagração, o Papa levanta-se do trono, vai até ao altar da Confissão debaixo das colunas de Bernini, depõe a tiara, coloca a mitra, tira-a em seguida e assiste à consagração de cabeça descoberta.

Na hora da Consagração, da frisa da cúpula de São Pedro as trombetas de prata tocam. A impressão era de um toque de anjos tocando no Céu.

Aí notei lágrimas que escorriam dos olhos do embaixador do Egito. Ele não estava chorando, mas lacrimejava abundantemente. Eu desviei imediatamente o rosto, para ele se sentir à vontade e não se sentir observado [113].

Depois da Consagração, silêncio enorme na igreja, porque o Santíssimo estava presente, seguem-se as orações. O Papa volta para o trono, depois comunga.

Por fim, volta-se e dá a bênção ao povo.

Aí, nova explosão de alegria e toque de fanfarras [114].

*   *   *

Antes de o Papa se levantar para sair, realiza-se um rito arcaico, datado dos primeiros tempos de Roma após a Igreja sair das catacumbas.

Dois dignitários eclesiásticos aproximam-se, um trazendo uma gaiola com três pombinhos vivos, e o outro um saquinho de pano muito comum, contendo moedas de ouro.

Fizeram uma reverência e foram oferecer o pagamento dos cônegos da igreja de São Pedro ao Papa, como óbulo da Missa que havia sido celebrada.

E cantavam: “Pro Missa bene cantata!” — Reverência. Depois: “Pro Missa bene cantata!” — Reverência. Faziam isso por uma terceira vez e apresentavam o pagamento.

Tudo terminado, Dr. Adolpho e eu tomamos o automóvel e fomos para o nosso hotel, com o coração e a cabeça transbordando de impressões [115].

4. Último encontro com Monsenhor Montini

Antes de ir embora de Roma, impunha-se que eu deveria fazer a Monsenhor Montini uma visita de despedida. Eu não poderia deixar de ter para com ele todos os graus e formas de cortesia correspondentes ao que ele havia tido comigo.

Fui ao Vaticano numa hora em que não havia expediente, mas que se toleraria a um estrangeiro que não conhece os horários fosse fazer uma visita.

O Vaticano estava completamente aberto, entrava quem quisesse. Eram mais ou menos sete horas da noite.

Subi por uma escada mandada construir por Pio IX, pela qual se chega ao Pátio de São Dâmaso e por onde habitualmente entravam os visitantes. Era uma escada que tirava o fôlego.

No Pátio de São Dâmaso tomei o elevador e disse ao ascensorista que queria falar com Monsenhor Montini. Ele me respondeu que só subindo para ver. Subi.

Lá chegando, encontrei, um pouco cochilando, um velho porteiro. Perguntei por Monsenhor Montini: “Non è”, não está.

- Ah! “non è”, que pena etc.

Dei a ele o meu cartão e ainda uma gratificação, pedindo-lhe para entregar depois a Monsenhor Montini.

Quando saí, começo a ouvir de repente barulho de água. Eram faxineiros que começavam a lavar uma das galerias do Pátio de São Dâmaso, toda ela coberta, no teto, com pinturas de Rafael. Qualquer centímetro daquela galeria era inapreciável.

Mas eu estava pensando em tudo, menos em Rafael... Havia uma certa penumbra, quase não se via nada.

Com aquela água ensaboada, eu tomando cuidado para não cair. Ia andando no meio daquele aguaceiro, quando meus olhos se pousam instintivamente no fundo do corredor.

E o que é que vejo? Um prelado magro, ereto, com um grande chapéu preto, envolto numa capa e pulando também por cima da água. Era Monsenhor Montini.

Aproximei-me dele: “Monsenhor, vim exatamente fazer uma visita de despedida a Vossa Excelência etc. etc.”

Ele cortou:

- Oh! Professor, que surpresa! Eu não encontro o senhor onde esperava, e encontro onde não esperava.

- Mas como, Monsenhor?

Ele disse:

- Houve agora uma homenagem ao Senhor Cardeal de São Paulo na embaixada do Brasil, e eu esperava encontrar o senhor nessa homenagem. E não esperava encontrar o senhor a esta hora aqui, tão deserto o Vaticano!

Respondi:

- Oh! Monsenhor, imagine! Se eu soubesse que Vossa Excelência estava lá. Não pude comparecer à homenagem (não expliquei a ele porquê) e vim empregar bem o meu tempo aqui, despedindo-me de Vossa Excelência.

Mas a água da faxina estava vindo de tal maneira, que não era mais possível demorarmo-nos ali: o dilúvio vinha de todos os lados. Trocamos algumas palavra amáveis, ele me desejou boa viagem, e nunca mais nos vimos na vida.

Esse foi o meu último encontro com Monsenhor Montini, futuro Paulo VI [116].

5. Conversa com o postulador do processo de canonização de Dom Vital

Em Roma fui visitar os capuchinhos, e disse que queria falar com o padre promotor da canonização de Dom Vital.

Era um padre alemão, mas falava o português com extraordinária fluência.

Perguntei a ele:

— Eu queria saber como está esse processo.

— Ah! esse processo... Nos anuários ele está na lista das canonizações possíveis, mas é desses nomes que colocamos por formalidade. Todos sabemos que ele nunca será canonizado.

— Mas, Frei, por que não será? É possível saber?

— Muito simples: é que todas as pessoas do tempo de Dom Vital já morreram, e não há, portanto, possibilidade de colher testemunhos a respeito da vida dele. E então o processo não pode andar, é um processo morto.

Era uma explicação inaceitável! Absolutamente não é verdade que só se canoniza com base em depoimentos de pessoas vivas. Às vezes canonizam-se pessoas que morreram há séculos. Santa Joana D’Arc foi uma delas, outra foi Santa Beatriz da Silva*. E quantíssimos outros santos estão nessas condições também! [117]

* Santa Beatriz da Silva (Campo Maior, 1424-1492), nascida D ª Beatriz de Menezes da Silva, de rara beleza, foi uma nobre portuguesa descendente de reis e neta de Dom Pedro de Menezes, senhor de grande influência. Com a ajuda da rainha de Espanha Isabel, a Católica, fundou a Ordem da Imaculada Conceição (concepcionistas). Foi elevada à honra dos altares somente no século XX, por Pio XI.

6. Audiências com o Padre Leiber e outros jesuítas

O Padre Mariaux dispunha de um grupo de amigos jesuítas inteligentes, cultos, muito adversários do nazismo, que eu tinha muita vontade de conhecer.

Acabei por visitá-los a todos em Roma: Padre Robert Leiber, Padre Gustav Gundlach [118], bem como — antes de visitar Pio XII — uma série de Monsenhores muito chegados ao Papa, aos quais eu entregara um relato dos assuntos atinentes à Ação Católica [119].

Padre Leiber era um sacerdote de origem austríaca. Ele tomava ares de um homem comum, mas bastava conversar com ele para se dar conta do contrário [120].

Ótimo historiador, havia colaborado para a confecção de um dos volumes de uma das maiores coleções sobre a História da Igreja, que é a de Ludwig von Pastor [121]. Além disso, era pregador de retiros e diretor espiritual do Papa Pio XII, tendo muita influência e facilidade de acesso junto ao Pontífice [122].

Eu me lembro de minha emoção quando procurei o Padre Leiber e me disseram que ele estava pregando retiro numa casa de freiras no monte tal em Roma.

Fui lá e disse:

— Quero falar com o Padre Leiber.

— Está pregando retiro. Se o senhor puder esperar, quando ele sair, ele lhe atenderá.

Aguardei e, quando ele entrou na sala, eu disse:

— Padre Leiber, eu sou Plinio Corrêa de Oliveira.

E fui puxando do bolso uma carta de apresentação.

Ele me disse:

— Oh! Professor, agradeço a carta de apresentação, mas nos últimos dias tive nada menos de seis cartas de personagens vários da Europa anunciando-me que o senhor viria me visitar e me recomendando dar bastante tempo ao senhor. O que o senhor quer?

Era o céu aberto [123].

A fisionomia dele, pelos imponderáveis, me dizia: “Eu vou tomar um ar de quem não tem pressa. Mas me entenda, eu estou apressado”.

Então eu fui direto ao ponto:

— Padre Leiber, tem isso assim, a situação no Brasil é esta.

Ele ouvia. No fim me disse:

— Veja Professor, tudo isso que o senhor me disse é muito importante e muito concludente. É natural que, morando há tanto tempo em Roma, eu conheça a pessoa a quem interessa tomar contato com tudo isto. Portanto, se o senhor trouxe boa documentação, demonstrando tudo quanto me disse, é só me entregar, e passado algum tempo faça-me uma visitinha na Gregoriana*. Aqui está o meu cartão”.

* A Pontifícia Universidade Gregoriana, a famosa Gregoriana, é um centro de estudos teológicos e filosóficos localizado em Roma. É a sucessora do Colégio Romano, fundado em 1551 por Santo Inácio de Loyola.

E escreveu nesse cartão os seus horários.

Eu agradeci, pedi desculpa por ter tomado o tempo dele e despedi-me.

Ele: “Mein Professor, até logo”.

*   *   *

Depois tive vários outros encontros com o Padre Leiber, inclusive em minha posterior visita à Europa, em 1952.

Ele, jeitosamente, falando por alto sobre assuntos na aparência banais, dava a entender uma porção de coisas:

— Conversei com mais de um amigo (certamente um desses amigos era Pio XII), examinamos seus documentos, foram tidos como muito importantes para a História da Igreja.

Ele também dizia:

— Não faltarão ocasiões para agir, haverá oportunidade, contaram-me que o Santo Padre está preocupado, de repente documentos dele poderão esclarecer.

De fato, Pio XII lançou depois algumas encíclicas nesse sentido. Mas ele dizia tudo em linguagem por assim dizer criptografada, que eu devia entender e não tentar furar nenhuma vez [124].

Num desses encontros, ele comentou:

— O Sr. deu-me um material muito rico.

Eu disse:

— Rico demais, não, Padre?

Padre Leiber:

— Mas muito significativo. Haveria naturalmente muito que dizer do relatório, mas acentuo o lado moral inteiramente incompatível com a doutrina da Igreja. O relatório apresenta uma imagem fiel da situação religiosa no Brasil.

E, apontando para o relatório:

— Esta coleção será muito apreciada na Secretaria de Estado [125].

7. Conversa com o Padre Gundlach

Quando eu ainda estava aqui no Brasil, o Padre Mariaux havia deixado escapar que o Padre Gundlach [126] foi quem redigiu as minutas dos famosos discursos de Pio XII à Nobreza romana, e também de um texto clássico do mesmo Papa a respeito da sociedade orgânica [127].

A partir dessa informação, resolvi conhecer o Padre Gundlach quando fosse à Europa. E em 1952 apresentou-se a ocasião.

Imaginando que, como bom alemão, o Padre Gundlach gostasse de fumar charuto, comprei em São Paulo alguns charutos baianos muito finos e bons.

Os charutos baianos gozavam então de fama mundial. Cada charuto era vendido numa espécie de tubo de celulóide transparente e meio azulado. Para fumar esse charuto, vinha junto uma limazinha com a qual a pessoa serrava a ponta.

*   *   *

O encontro com ele deu-se da seguinte forma.

Estava eu conversando com o Padre Leiber, quando aproximou-se um outro padre que percebi tratar-se do Padre Gundlach [128].

Era ele um alemão não tão grande como o Padre Mariaux, mas também de grande estatura [129].

Ele se apresentou, a conversa se generalizou e tomou animação. Em certo momento eu disse ao Padre Gundlach:

— Diga-me, Padre, o senhor é quem faz as minutas de certos discursos de Pio XII, não é?

— Fazia até há pouco, porque o Padre Leiber e eu saímos dessas funções (quer dizer, tinham sido substituídos) [130].

Os discursos de Pio XII minutados pelo Padre Gundlach têm trechos que são verdadeiras obras-primas.

No fim da conversa eu disse:

— Padre Gundlach, aqui estão uns charutos da Bahia, o senhor fumará e vai gostar [131].

Ficou muito contente. Estabelecemos muito boas relações [132]. E fui embora.

Eu estava longe de pensar que iria tirar partido desses discursos de Pio XII muitos anos depois, no meu livro Nobreza e elites tradicionais análogas, baseado justamente nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana [133].

8. Audiência com Monsenhor Luigi Valentini

Outra personalidade com quem falei durante essas minhas viagens à Europa na década de 50 foi Monsenhor Valentini, encarregado dos assuntos brasileiros no Vaticano.

Levei para ele uma série de recortes de jornais mostrando os erros da Ação Católica. Eram os recortes que tínhamos fotografado na sede da Martim Francisco, creio que durante um ano, para depois levar para a Santa Sé [134].

Durante a entrevista, eu manuseava aquele maço de material documentando os erros e desvios da Ação Católica e do Movimento Litúrgico, mostrando para ele o que tinham de heterodoxo [135].

Ele se impressionou muito, e deu a acolhida a mais favorável possível [136].

Capítulo VII

Proveito das viagens à Europa

1. Compreensão do vulto total da crise da Igreja

As viagens de 1950 e 1952 foram muito informativas do ambiente europeu, abria muito os horizontes, mas infelizmente não abria caminho. Elas aprofundaram a nossa noção da crise universal na Igreja.

Tínhamos até então uma noção dessa crise circunscrita ao Brasil. Sabíamos que o foco vinha da Europa. Mas achávamos que eram apenas algumas congregações religiosas más, que mandavam seus missionários para os vários países espalhando o erro. E que no Brasil essa má semeadura havia vingado especialmente. Não tínhamos razão para achar que a crise na Europa era da proporção do que víamos no Brasil.

Foi na viagem de 1952, sobretudo, que nos compenetramos de que se tratava de uma crise universal, com raízes em outras crises mais antigas.

Aquele plano primeiro que eu tinha — de trabalhar para extinguir esse mal no Brasil e repor a boa ordem como ela era no começo de nossa ação no apostolado católico — eu vi que não era mais possível, era preciso cancelar.

Então, impunha-se uma mudança completa de tática, que teríamos levado pelo menos dez anos para compreender se não fossem essas viagens de 1950 e 1952. Isto porque a infiltração do progressismo na Europa era ainda muito mais velada do que no Brasil [137].

2. Compreensão do futuro latino-americano da Contra-Revolução

Na Europa vimos pessoas de direita, mas não propriamente gente jovem dessa tendência.

As que encontramos — salvo honrosas exceções — eram divididas entre si, desanimadas e a maior parte com a idéia de que era preciso fazer concessões à Revolução para continuar a sobreviver. Nós não queríamos concessões, por estarmos convictos de que a Revolução deve ser combatida de frente e de corpo inteiro.

Por outro lado, nessa viagem tivemos todas as portas abertas, entramos onde quisemos, fomos recebidos com cortesia, amavelmente [138].

Formamos, é verdade, uma rede de bons amigos, de boas relações em quase todos os países da Europa. Gente que pensava mais ou menos como nós e que continuou com relações amistosas. Gente a quem nós devemos grande parte da repercussão das nossas obras no Exterior, porque as mandávamos para essas pessoas, e elas em geral promoviam traduções.

Isto é o que explica haver tantas traduções em língua espanhola, italiana, francesa, alemã, das nossas obras. Esta rede de relações e de simpatias estabelecida em vários países, com o passar do tempo deu origem ao setor que internamente chamamos a Comissão do Exterior [139].

Foi também ao longo dessas viagens que fui compreendendo que o futuro da Contra-Revolução estava mais na América do que na Europa.

Na Europa havia tanta tradição fanada, tanta coisa murcha, que era difícil fazer caminhar essa tradição naquele continente.

Pelo contrário, na América ela poderia caminhar.

Essa tarefa de fazer ressurgir o fogo da Contra-Revolução num continente onde a tradição antiga quase não teve vigência, deixava bem claro que isto era mais uma obra da graça do que dos homens, porque se fosse obra dos homens teria nascido na Europa*.

* Algo de muito parecido havia sido dito por Santo Antonio Maria Claret, numa carta ao Padre José Xifré datada de 16 de novembro de 1869 sobre a América Latina:

“Na América há um campo muito grande e muito fecundo e com o tempo subirão ao céu mais almas da América do que da Europa. Esta parte do mundo é como uma vinha velha, que já não dá muito fruto, ao passo que a América é vinha jovem [...] Eu já estou velho [...]. Se não fosse isto, voaria para lá” (cfr. Santo Antonio Maria Claret, Escritos Autobiográficos, BAC, Madri, 1981, edição preparada por Maria Viñas e Jesus Bermejo).

O fato de o espírito das tradições européias renascer mais vigoroso na América do que na Europa é o paradoxo dos paradoxos. Eu confio que Nossa Senhora não excluirá as nações européias do ósculo d’Ela. Mas o bem que Ela fará para a Europa terá nascido a partir da América. Está sendo esta a história da Contra-Revolução na Europa [140].


NOTAS

[1] SD 17/6/89.

[2] SD 7/7/73.

[3] SD 28/7/73.

[4] SD 14/4/79 — Em carta ao Padre José Antonio Labúru Olascoaga, SJ, datada de 25 de março de 1950, Dr. Plinio traçava o programa de sua viagem: "Escrevo-lhe muito rapidamente para lhe comunicar que no dia 16 de abril devo partir para a Europa com três amigos, pousando em Madri no dia 18, com destino a Paris e finalmente Roma. Disponho de 4 dias de permanência na Espanha, durante os quais eu teria o maior empenho em me encontrar com V. Revma.".

[5] SD 22/3/80.

[6] SD 28/7/73.

[7] SD 22/3/80.

[8] SD 28/7/73.

[9] SD 22/3/80.

[10] SD 28/7/73.

[11] SD 22/3/80.

[12] CSN 18/9/93.

[13] SD 28/7/73.

[14] Palavrinha EANS 11/6/82.

[15] SD 28/7/73.

[16] SD 22/3/80.

[17] SD 29/3/80 e SD 28/7/73.

[18] SD 28/7/73.

[19] SD 29/3/80.

[20] SD 28/7/73.

[21] SD 29/3/80.

[22] SD 25/8/73.

[23] SD 29/3/80.

[24] Anotações 29/7/52.

[25] SD 29/3/80.

[26] SD 9/10/87.

[27] Almoço Rua Alagoas 5/6/82.

[28] SD 9/10/87.

[29] Almoço Rua Alagoas 5/6/82.

[30] SD 9/10/87.

[31] CSN 21/1/84.

[32] SD 9/10/87.

[33] Almoço Rua Alagoas 5/6/82.

[34] SD 9/10/87.

[35] Almoço Rua Alagoas 5/6/82 e Anotações 29/7/52.

[36] SD 9/10/87.

[37] Almoço Rua Alagoas 5/6/82.

[38] — A condenação ao nazismo e sua ideologia racista foi feita através da encíclica Mit brennender Sorge (Com profunda preocupação), de 14 de março de 1937.

[39] Almoço Rua Alagoas 5/6/82.

[40] Palavrinha 11/9/94.

[41] SD 9/10/87.

[42] SD 30/10/94.

[43] Chá 5/7/92.

[44] SD 30/10/94.

[45] SD 29/3/80.

[46] CSN 20/10/84.

[47] SD 31/3/73.

[48] RR 19/11/88.

[49] Despacho com os franceses 31/7/90.

[50] SD 20/10/73.

[51] RR 21/9/92.

[52] SD 20/10/73.

[53] SD 28/7/73.

[54] SD 20/10/73.

[55] SD 26/4/80.

[56] SD 20/10/73.

[57] SD 26/4/80.

[58] SD 20/10/73.

[59] SD 26/4/80.

[60] Jantar EANS 7/6/82.

[61] SD 28/7/73.

[62] SD 20/10/73.

[63] SD 28/7/73.

[64] SD 20/10/73.

[65] SD 28/7/73.

[66] SD 20/10/73.

[67] SD 28/7/73.

[68] SD 14/6/80.

[69] SD 28/7/73.

[70] SD 14/6/80.

[71] SD 28/7/73.

[72] SD 14/6/80.

[73] SD 28/7/73.

[74] SD 14/6/80.

[75] SD 28/7/73.

[76] SD 14/6/80.

[77] SD 28/7/73.

[78] SD 14/6/80.

[79] SD 14/6/80 e SD 27/10/73.

[80] Despachinho 13/6/88.

[81] SD 14/6/80 — O Professor Roberto de Mattei diz em sua obra biográfica de Plinio Corrêa de Oliveira, O Cruzado do Século XX, que o Arquiduque Otto de Habsburgo “pelas suas opções políticas acabou por decepcionar as esperanças de muitos contra-revolucionários”.

[82] SD 20/10/73.

[83] RR 1/11/80.

[84] RR 13/6/92.

[85] — Alberto Leopoldo Fernando Miguel (3 de maio de 1905 — 8 de julho de 1996), duque da Baviera, da Francônia e Suábia, conde palatino do Reno, filho do príncipe herdeiro Rodolfo da Baviera e de sua primeira esposa, a duquesa Maria Gabriela da Baviera. Seu avô paterno foi Luís III, o último rei da Baviera, deposto em 1918. A Casa de Wittelsbach a que pertencia era contrária ao regime nazista, e Alberto levou a sua família para Sárvár, em Vas, Hungria, no ano de 1940. Em outubro de 1944, quando a Alemanha ocupou a Hungria, os Wittelsbach foram presos e enviados para o campo de concentração de Sachsenhausen. Em abril de 1945, foram removidos para Dachau, sendo afinal libertados pelo exército norte-americano. Alberto tornou-se o chefe da família real bávara com a morte de seu pai, em 2 de agosto de 1955.

[86] SD 27/10/73.

[87] SD 26/4/80.

[88] — Maria Francisca Juliana Joana Draskovich von Trakostjan (1904-1969).

[89] SD 27/10/73.

[90] RR 13/4/91.

[91] Palavrinha 22/3/92.

[92] SD 31/3/73.

[93] Palavrinha 26/2/89.

[94] SD 16/6/73.

[95] SD 31/3/73.

[96] Chá 15/11/94.

[97] Palavrinha 22/3/92.

[98] Palavrinha 26/2/89.

[99] SD 31/3/73.

[100] Palavrinha 26/2/89.

[101] SD 31/3/73.

[103] SD 31/3/73.

[104] Palavrinha 26/2/89.

[105] Palavrinha 26/2/89 e SD 31/3/73.

[107] Palavrinha 26/2/89 e SD 31/3/73.

[108] — A canonização de São Vicente Maria Strambi realizou-se no dia 11 de junho de 1950. Ele era da Congregação dos Passionistas. Bispo de Macerata e Tolentino, foi confessor do Papa Leão XII, oferecendo sua vida por esse Pontífice. Sua festa comemora-se no dia 24 de setembro.

[109] Palavrinha 26/2/89.

[110] SD 31/3/73.

[111] Palavrinha 26/2/89.

[112] SD 31/3/73.

[113] Palavrinha 22/3/92.

[114] — Lendo essa descrição da belíssima cerimônia, feita por Dr. Plinio muitos anos depois de ocorrida, pedimos a um sacerdote especialista em liturgia, o Padre William Barker, da Fraternidade Sacerdotal São Pedro e atualmente Vigário da paróquia da Santíssima Trindade dos Peregrinos em Roma, que fizesse um comentário a respeito. Eis o que ele comentou:

“Penso que se trata de uma Missa celebrada por um outro (certamente algum Cardeal) com o Sumo Pontífice assistindo. Assim se fazia na grande maioria dos casos, pois o Pontífice, mesmo celebrando a Missa privada mais ou menos todos os dias, costumava celebrar a solene somente três vezes por ano, praticamente no Natal, Páscoa e na festa de São Pedro e São Paulo.

“Neste tipo de Missa solene (ou Pontifical) à qual assistia o Papa, este último segue tudo de seu Trono, exceto no momento (grosso modo) da Consagração, durante a qual vem propriamente colocar-se diante do altar, e se ajoelha para assistir à Consagração, depois do quê, volta para o trono para a seqüencia e fim da Missa.

“No que diz respeito à comunhão, não tenho notícia de que o Papa comungasse quando assistia à Missa deste modo, mas o costume pode ter sido um pouco flutuante durante o século XX, neste ponto. De qualquer modo, quando o Papa comungava numa missa que ele próprio celebrava, o fazia, de fato, no trono (a comunhão no trono, mesmo do celebrante, era um particular privilégio papal). Portanto, segundo me parece, se fossem dar a comunhão ao Papa durante uma Missa à qual ele assistia, lhe dariam, mesmo nesse caso, no trono”.

[115] Palavrinha 26/2/89.

[116] SD 31/3/73.

[117] SD 4/5/94.

[118] SD 17/6/89.

[119] SD 16/6/73.

[120] SD 17/6/89 e SD 14/4/79.

[121] Almoço EANS 16/6/82.

[122] SD 17/6/89.

[123] SD 16/6/73.

[124] SD 14/4/79.

[125] Anotações 29/7/52, conversa Padre Leiber em 14∕7∕52.

[126] Jantar EANS 9/8/93 — Padre Gustav Gundlach, S.J. (1892-1963) já havia colaborado na redação da encíclica Quadragesimo Anno (1931), de Pio XI, bem como de diversas encíclicas da época de Pio XII. De 1939 a 1958, ele foi um dos conselheiros mais próximos do Papa (cfr. www.catholicculture.org/culture/library/view.cfm?recnum=4744).

No já citado relatório sobre conversa com Monsenhor Antonio De Angelis, este declarou que "o mal de muitos documentos pontifícios sobre assuntos sociais está em que são inspirados pelo Padre Gundlach, jesuíta conservador" (v. relatório sobre a viagem de Dr. Plinio à Europa, 9/7/52).

[127] SD 17/6/89.

[128] Jantar EANS 9/8/93.

[129] Despacho 6/11/91.

[130] — Esta afirmação inseria-se em um quadro assim descrito por Monsenhor Antonio De Angelis, na já citada conversa no dia 9 de julho de 1952: "Hoje nós estamos no período da penetração concreta da revolução nos diversos setores particulares do domínio da Igreja. O Papa está de acordo com essas inovações que aos poucos vão se concretizando, e aos poucos têm levado a revolução para todos os campos”. [...] Deu a entender que, “em grossas linhas, hoje já não há resistência à penetração dos novos princípios. Entre os Cardeais, é verdade que há alguns velhos conservadores... Mas são pouco numerosos e são homens de pouca influência. Entre esses conservadores está, por exemplo, o Cardeal Canali [...] Os novos princípios já penetraram inteiramente [...] Veja-se o que aconteceu com a Pro Deo: suas primeiras publicações, levadas sempre ao Papa, voltavam por ele anotadas com grifos vermelhos sobre todas as expressões novas. Aos poucos a coisa foi mudando, os grifos do Papa foram escasseando, e agora a Universidade é entusiasticamente aplaudida pela Santa Sé".

[131] Jantar EANS 9/8/93.

[132] SD 17/6/89.

[133] Jantar EANS 9/8/93.

[134] SD 16/6/73.

[135] Jantar 14/1/92.

[136] SD 16/6/73 — Entre os dignitários ainda não citados, e com os quais Dr. Plinio manteve contato nessas duas idas à Europa na década de 1950, vale a pena destacar: Monsenhor Casaroli (posteriormente Secretário de Estado do Vaticano sob Paulo VI), em 16 de julho de 1952; e Monsenhor Roberto Ronca (Bispo de Pompéia, homem de confiança de Pio XII e fundador da Unione Nazionale Civiltà Italica), em 18 de julho de 1952.

[137] Conversa 30/9/88.

[138] SD 17/6/89.

[139] SD 14/7/73.

[140] SD 20/10/73.