Reforma Agrária - Questão de Consciência


Secção II

Opiniões socializantes que preparam o ambiente para a "Reforma Agrária": exposição e análise

Proposição 12

 

Impugnada

O justo valor de um imóvel rural, para efeito de desapropriação, é representado pelo custo histórico. Este se constitui pelo preço de aquisição do imóvel, somado à importância aplicada em benfeitorias, ao valor de todos os tributos pagos desde a aquisição, e aos juros razoáveis sobre o montante dessa quantia global.

Desde que a indenização corresponda ao custo histórico, o proprietário será reembolsado de tudo quanto tiver posto na fazenda, e mais os juros. Considerada em si mesma, a valorização da terra é devida, não ao que o proprietário tiver posto lá, mas ao progresso geral da sociedade. Essa valorização pertencerá, pois, de direito, não ao proprietário, mas à sociedade, ou seja, ao Estado.

Afirmada

Entre os fatores a serem considerados na avaliação do que o proprietário terá aplicado em sua fazenda, é preciso incluir não só o capital representado pelo preço de aquisição, pelas benfeitorias, pelos impostos pagos etc., mas também o trabalho: este último, em concreto, quase não pode ser avaliado devidamente, em muitas situações.

Mas, ainda que se tomassem em conta na desapropriação todos estes fatores, não serviriam eles de critério suficiente para o cômputo da justa indenização. Com efeito, circunstâncias múltiplas podem conferir ao imóvel um valor superior ao que se estabelecesse com base naqueles fatores. Por tudo isso, o justo preço da desapropriação deve ser normalmente o valor de venda da terra, incluída neste a valorização.

O princípio do custo histórico é, pois, injusto. Acresce que, em conseqüência da inflação, a indenização fixada com base nele poderá ser irrisória.

 

Comentário

 

1 – Ressaibo de igualitarismo

A proposição impugnada tem um ressaibo de igualitarismo. Ela revela uma antipatia contra a perspectiva de alguém, que já é proprietário, se enriquecer ainda mais. E esta antipatia é agravada pelo fato de que tal enriquecimento não resultaria só de trabalho do beneficiário: cair-lhe-ia nas mãos, sem mais, como se fora uma herança ou um tesouro encontrado na terra. O complexo contra a herança (176) aparece aqui com outro aspecto.

2 – Valorização por fato fortuito

Ora, segundo a ordem estabelecida pela Providência, há muitas circunstâncias em que um imóvel rural cresce legitimamente de valor sem esforço de seu proprietário, e com pleno direito para este de se beneficiar inteiramente de tal valorização. Como reciprocamente há circunstâncias em que, independente de culpa do proprietário, um imóvel rural pode depreciar-se sem que caiba a este qualquer direito a indenização.

Assim, a introdução do plantio do café no Brasil, por Melo Palheta, acarretou a valorização de muitas terras, mesmo incultas, pelo simples fato de poderem servir para a nova cultura. A quem compete o direito a essa valorização? Ao Estado, que nada fizera para isto, e que ele também, aliás, lucraria enormemente com a implantação da cafeicultura? A Palheta, cuja ação digna de aplauso nenhuma proporção podia ter com a imensa, a incalculável fortuna que lhe adviria na hipótese, um tanto infantil, de ele se beneficiar com todas estas valorizações?

É óbvio que, dando-se na terra o fenômeno da valorização, é ao proprietário que ele deve beneficiar.

Do mesmo modo, quando na terra se opera uma desvalorização (terremoto, inundação, rio que muda de curso, erosão etc.), é ao proprietário, e só a ele, que cabe suportá-la. Assim como "resperit domino", segundo o Direito Romano, assim também "res fructificat domino", conforme afirma o mesmo Direito.

3 – Valorização por fato do Estado ou da sociedade

Estas considerações se aplicam também aos casos em que uma obra pública, uma rodovia por exemplo, valoriza as terras marginais ou próximas. Ou quando um grande estabelecimento particular, instalando-se num imóvel, produz nas cercanias o mesmo efeito. É um fato fortuito bom, cuja vantagem pertence legitimamente aos proprietários das terras sobre as quais ele se reflete.

Isto não impede que, na primeira hipótese, o Estado cobre dos beneficiários uma taxa de melhoria. Mas esta deve ter o caráter e o vulto de uma contribuição para o bem comum, e especialmente de uma proporcionada participação nos gastos com obra tão vantajosa. Nunca pode ter o sentido e a proporção de uma restituição da valorização ocorrida.

4 – Valorização por progresso coletivo

Pode dar-se que a valorização de um imóvel rural decorra, não tanto de uma obra determinada, mas de todo um progresso multiforme e coeso do corpo social inteiro. Assim, consideradas em seu conjunto, as terras do Estado de São Paulo vêm tendo uma valorização que resulta do progresso de toda a economia paulista.

Ora, poder-se-ia argumentar, tal progresso tem como causa geral e profunda o trabalho de todos os habitantes do Estado. Esse trabalho vem beneficiar o proprietário da terra sem justa causa, máxime quando esta é inculta. Em conseqüência, a valorização deve ser do Estado, encarnação da comunidade operosa, e não do proprietário, sobretudo quando este é inativo.

Estas alegações contrariam o princípio de senso comum, consagrado pelo Direito Romano na já citada máxima: "res fructificat domino", a qual preside a todo o assunto.

A não aplicar tal máxima, cai-se em erro manifesto. Ampliando a tese de que a valorização de um imóvel rural pertence sempre ao Estado, facilmente perceberíamos o que ela tem de absurdo. Pois, se o proprietário rural deve devolver toda a vantagem que lhe vem de sua pertencença a certa região, então o mesmo devem fazer todos os outros que, a qualquer título, do Estado se beneficiam: industriais favorecidos com barreiras alfandegárias, populações inteiras espiritualmente enriquecidas pela simples ação de presença de grandes instituições culturais etc., etc.

Sem esquecer que muitos desses benefícios nem sequer são suscetíveis de uma adequada avaliação econômica, cumpre salientar que essa concepção estabelece uma dissociação monstruosa entre o Estado e os particulares. Os interesses destes nada teriam de comum com os daquele. Ser-lhes-iam até contrários. O Estado seria indiferente ao interesse dos indivíduos. Só trabalharia para si. E cobraria avidamente, até o último ceitil, o bem que aos indivíduos acidentalmente fizesse.

Ora, a verdade é o contrário. O Estado tem por fim o bem comum. E o bem comum está numa indissociável conexão com o bem de todos os particulares. Quando, pois, o Estado beneficia a estes, cumpre seu dever. O mesmo que se diz do Estado, diga-se também da sociedade.

E a valorização de todas as terras de uma região, beneficiando individualmente cada proprietário, de fato é também uma vantagem para o bem comum.

5 – O bem particular e o bem comum

Uma rápida noção do bem comum facilitará a compreensão deste ponto.

O bem comum de um corpo vivo consiste em que cada órgão funcione retamente e todos cooperem para o bem-estar geral do corpo.

O bem comum assim entendido exige que cada órgão:

– receba do corpo todo o necessário para subsistir e trabalhar normalmente;

– preste ao corpo o serviço específico, inerente à natureza e fins peculiares de dito órgão.

Daí decorre, por analogia, que as pessoas, as famílias e as classes sociais, desiguais entre si como os órgãos do corpo, têm direito a receber da sociedade e do Estado o apoio proporcionado, de que carecem para subsistir e agir; e devem, por sua vez, atuar em benefício da sociedade e do Estado na medida do necessário e de acordo com a situação respectiva.

Esta formulação afirma o princípio da reciprocidade de serviços entre o Estado ou a sociedade e as pessoas, famílias ou classes. Mas também inclui o princípio da desigualdade proporcional de vantagens e ônus. Os que são maiores dentro da sociedade ou do Estado são os que dela ou dele mais recebem e por ela ou ele mais devem fazer. Mas, por sua vez, porque são os esteios principais do Estado ou da sociedade, devem ser por esta e por aquele particularmente honrados e protegidos. É uma exigência do instinto de conservação. Assim, por exemplo, a sobrevivência de uma família benemérita, ou de um patrimônio particularmente fecundo, deve ser vista pelo Estado ou pela sociedade com um desvelo que vá além da dedicação adequada aos assuntos congêneres correntes. Durante a guerra, deve-se proteger, na medida do possível, a existência de todos os cidadãos. Entretanto, a vida do chefe de Estado, dos ministros, dos generais, que são o esteio da resistência, deve merecer uma proteção toda especial. Em outros termos, há interesses particulares legítimos que representam um papel funcional de primeira grandeza para o bem comum. É este o caso dos proprietários, já que a propriedade é uma das bases da família, da sociedade, do Estado e da civilização.

Em suma, o bem comum na sociedade, no Estado, como no corpo vivo, embora não seja o conjunto dos bens particulares, existe em função destes bens, cuja conservação, interação harmoniosa e desenvolvimento propicia.

6 – Os direitos dos indigentes

Mas, dirá alguém, segundo esta concepção a sociedade e o Estado deveriam interessar-se somente pelos grandes, ou quando muito pelos médios. Pouco ou nenhum interesse deveriam ter pelos pequenos. Se o fim do Estado e da sociedade é o bem comum, por que haveriam eles de cuidar, por exemplo, dos indigentes?

A questão, apresentada assim, realmente deixa ver que, quando a sociedade e o Estado cuidam do indigente, atendem próxima e principalmente ao bem deste. Mas o bem comum visa ao bem de todos os membros da sociedade e do Estado. Como o bem comum do organismo inclui o de todas as células. E assim como o corpo todo é solidário para a preservação de qualquer célula, e se move para proteger as mais necessitadas, o Estado e a sociedade devem ter um empenho efetivo em proporcionar a cada membro as condições normais de existência e aperfeiçoamento.

Se o bem comum pede que o Estado e a sociedade dêem mais aos mais necessitados, pede também que eles apoiem proporcionalmente os que, a títulos diversos, podem ser tidos como esteios da sociedade e do Estado.

7 – Aplicação dos princípios

Justo é, pois, que os proprietários rurais se beneficiem com a valorização que decorre do progresso social. Este é o ensinamento tradicional da Igreja, que consagra o princípio de que a valorização da terra pertence sempre ao proprietário, e deve normalmente ser computada ao quantum da indenização em caso de desapropriação.


Nota:

(176) Cfr. Proposição 15.


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