Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Sociedade orgânica V

Progresso neste “vale de lágrimas”, o sonho bom e o desejo do Céu

 

 

 

 

 

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferências do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

A sociedade orgânica pode atenuar muito a sensação de exílio nesta terra

Indo bem ao fundo das coisas, pode-se dizer que, como esta terra é de exílio, ela foi feita de maneira a não satisfazer inteiramente ao homem. Se satisfizesse, não seria propriamente um exílio, mas uma espécie de segunda pátria, apenas mais ordinária do que a pátria magnífica que Deus preparou no Paraíso. Não seria um exílio. Para ser um exílio, no sentido vigoroso da palavra, é preciso que o seja não só pela carência destes ou daqueles pormenores, mas sobretudo daquilo que é a nota da pátria. Ou seja, um conjunto que, apesar de muitas coisas defectivas, faz a pessoa se sentir em casa. É o que se observa também na família.

Quando a família é pelo menos potável, o que agrada nela não é tanto porque tem uma sala muito bonita, mas é porque forma um conjunto que vai bem com o conjunto de apetências que se tem, e por causa disso a pessoa se sente bem ali e “está em casa”. Propriamente estar “chez soi” [em casa] é ter uma consonância com um conjunto de imponderáveis.

Há um álbum extraordinário sobre a vida de castelo na França de hoje, com fotografias internas do “château” [castelo] e de como ali se vive. É muito bem feito e muito interessante. Por exemplo, há uma foto de “o castelão parte para a caça”: é um homem andando a cavalo na bruma, seguido por uma enorme matilha de cães. Ele vai sozinho caçar raposas...

Na sensação de exílio que essa terra nos dá, tem que haver um conjunto de vida que atenda aos desejos e às aspirações de uma pessoa, quando se trata de uma elucubração individual. Quando se trata de uma família, ela procura elaborar o conjunto do que quereria, ora comprando tal coisa, ora mandando arranjar tal outra etc. Não se trata de ficar mais rico, que é uma ambição de segundo plano. A questão verdadeira é encontrar o conjunto “gemütlich”, agradável, que satisfaz (MNF, 8/7/1992).

Acontece que esse conjunto não é apenas constituído por um grupo de móveis, de trajes e de casas, mas é também - e sobretudo - um conjunto de pessoas.

 

Acima, os pais e irmãs de Santa Teresinha do Menino Jesus (em pé, a segunda da esquerda para direita), e em baixo aspectos da casa onde moravam, os Buissonnets, em Lisieux

     

 

Quando a família é segundo Deus, segundo Nossa Senhora, ela tem o dom de formar um conjunto em que todos tenham o gosto pelo mesmo trato, pelas mesmas atitudes diante do sofrimento, pelas mesmas aspirações etc., parecido com o que seria o convívio dos bem-aventurados no Paraíso.

De modo geral — mas aí já seria preciso fazer restrições — acontece algo semelhante com outros grupos humanos. Por exemplo, em um clube “bien réussi” [bem montado, bem constituído], quando todos são alimentados pelas mesmas tradições, pela mesma educação, pelas relações ou pelos parentescos das famílias dos membros do clube entre si, formam um ambiente homogêneo segundo Deus e segundo Nossa Senhora, como se fosse uma grande família. É um modo de estar dentro da família, estando fora dela; é estar num círculo muito amplo conforme à família, mas que já não é ela, em que se podem respirar outras coisas.

Igualmente, uma sociedade orgânica toda constituída segundo Nosso Senhor e Nossa Senhora pode apresentar coisas que atenuem muito a sensação de exílio. A expressão francesa “chez soi” dá muito essa ideia (MNF, 8/7/1992).

Pode-se imaginar uma vida de acordo com o que se quereria segundo Deus. E constitui algo que ao mesmo tempo é uma realidade e uma irrealidade. Uma realidade porque pode existir, e houve tempo em que essas coisas em alguma medida existiram. Mas é também uma irrealidade porque, por mais que exista bem, nunca existe de modo tão perfeito quanto a pessoa quereria. Não é que entre uma queixa ou briga, mas como a pessoa está nesta terra, há sempre um certo abafamento que o convívio restrito produz. Há uma necessidade de arejamento, de expansão, de espaços psicológicos. É preciso haver um certo equilíbrio entre o fechado da família e o aberto dela, para ela se constituir bem.

As pessoas têm certas necessidades de alma a que devem dar atenção, não podem desprezá-las, pois constituem quase que um mundo irreal e ideal, para o qual elas estão continuamente caminhando (MNF, 8/7/1992)

Verdadeira atração para o Céu

Para se ter verdadeira atração para o Céu, deve-se compreender a Doutrina Católica a respeito como sendo capaz de proporcionar a super-realização disso. É preciso tomar a teologia católica verdadeira, tradicional, ortodoxa sobre o Céu, não circunscrita a certas modalidades da “heresia branca” [devoção sentimental adocicada, n.d.c.], mas muito mais dilatada. Não só a respeito do Céu empíreo, mas também das relações entre os bem-aventurados. Há algo que chamamos o ideal, para o qual se devem formar as crianças e fazê-las desabrochar nessa linha.

Para a formação espiritual, isto tem uma especial importância (MNF, 8/7/1992).

Devemos ver esta terra com uma insatisfação, que corresponde a uma apetência de um mundo realizável e não realizável neste “vale de lágrimas”. Na medida em que se faz o “rascunho” nessa terra, ter-se-á a “cópia passada a limpo” no Céu. Por sua natureza é realizável, e acabará sendo realizada no Céu. Nesta terra se tem a “maquete”, o “palácio” se tem no Céu.

Para se ter uma ideia exata do Céu, também é indispensável ter uma ideia quanto possível exata dos Anjos. E, pois, por conexão, dos santos: como  uma alma se santificou, mas aproximada dessa realidade terrena. O Céu não pode ser o oposto daquilo a que se aspirou de modo individual e coletivo. É uma forma de individual que pede o coletivo, e é uma forma de coletivo na qual o individual se realiza inteiramente. Não pode haver aí solução de continuidade.

A apetência, quando bem orientada e conduzida, tem ao mesmo tempo muito de individual e muito de coletivo. O indivíduo é sociável por natureza, e se não encontra a satisfação de si mesmo em algo de coletivo, o puro individual não lhe adianta de nada. A pessoa pode ter apetência do coletivo — por exemplo, de estar numa sociedade no Céu ou na terra —, mas o modo de encaixar-se nisso tem algo de estritamente individual, até de inefável, e é único para cada homem (MNF, 8/7/1992).

 

Sainte Chapelle (Paris), construída por São Luís IX, Rei de França

Se há uma época que conheceu o progresso, no sentido de melhoria contínua, andante — "gresso" quer dizer andar por, andar favorável a — foi a Idade Média. Em cada século da Idade Média vê-se realizar uma aspiração latente no século anterior. Há uma continuidade, que é um grande sonho que se vai realizando. Do românico para o gótico, e depois o gótico nas suas várias etapas, por exemplo. Na parte social, o aparecimento de instituições mais desenvolvidas — corporações, universidades, sociedades de comércio — foi um desabrochar daquela sociedade, que no início era meio caótica. Porém já nas sociedades de comércio entrou o bafo da Revolução (MNF, 8/7/1992).

Fantasias visando realizar o Céu na terra

Em certo momento nasce o mau sonho, que não é a realização dessa sociedade na virtude, mas é o sonho de realizá-la no vício. O processo é mais ou menos o seguinte: no Ancien Régime algumas coisas ainda são o sonho bom que se vai realizando; há uma certa melhora, que é cada vez mais débil, enquanto a piora vai se tornando cada vez mais truculenta; e acaba desfechando na Revolução Francesa, que foi um conflito entre os elementos que procuravam a melhora e os que queriam a piora (MNF, 8/7/1992).

O romantismo foi um dos artifícios mais terríveis concebidos pela Revolução. Antes dele o humanismo, no fim da Idade Média, foi o sonho romano. Houve também o sonho cartesiano. O racionalismo e o iluminismo são formas de sonho. O sonho típico do século XIX foi a vida romântica. Eu tomei conhecimento dela em formas relativamente inocentes de romantismo, como os livros do abade Schmidt, de Rosa von Tannenburg. Era o romantismo alemão para criança, com tudo quanto o alemão põe de inocente nessas coisas.

Por exemplo: Tannenburg — o castelo dos pinheiros. "Tanne" é aquele tipo de pinheiro de árvore de Natal. Imagina-se um castelo no alto de uma montanha, toda plantada com pinheiros. O castelo era gótico, visto como os do século passado consideravam o gótico. De repente o castelo é sitiado, e a família é dispersa. Rosália, que é menina, é mandada para um convento, onde não era entendida. O convento era perto do mar, onde se ouvia o rugido do elemento líquido que não dava gosto nem satisfação. Rosália consegue prender na patinha de um pombo-correio, que ela aprisionou e tratou com carinho, um recado para a irmã, que estava em outro lugar. Mas o pombo poderia ir a outros destinos, então ela escreveu: "Ó Rosalinda, minha irmã, ou outra pessoa que imagino ter um coração sensível, e que vai aqui recolher as minhas lágrimas, por favor não ria delas, respeite-as e queime este documento. Se entretanto seu coração for sensível e se enternecer com as minhas dores, guarde-o então em lugar sagrado. Eu não o saberei, mas um dia talvez um anjo me diga que este meu bilhete não foi extraviado. Alma desconhecida, eu te saúdo e te quero como quero a minha incomparável Rosalinda."

Depois vem o bilhete para a irmã: "Rosalinda, são seis da tarde e está soando o sino na abadia; as monjas cantam, lá fora os passarinhos pipilam, procurando um lugar onde se abrigar, a noite está baixando. O repouso, mas também a insegurança, vem baixando sobre os homens. Repouso e insegurança, ó minha Rosalinda, é o que me dá o convento onde eu estou, quanto repouso..."

É um mundo imaginado de modo inteiramente artificial, sem consulta séria às suas verdadeiras apetências, por alguém que buscou desvairadamente um Céu como não se deve procurar, continua a procurá-lo e não vai encontrá-lo. Mas ao mesmo tempo está viciado nessa busca, está inconformado em não o encontrar, e fica dando com a cabeça na parede a vida inteira, até morrer...

Uma explicitação que pega a fina ponta do romantismo vem daquilo que a teologia diz sobre a impossibilidade de qualquer criatura habitar numa outra, a não ser Deus habitar na alma humana ou num anjo. Por isso, na possessão, é impossível ao demônio habitar numa pessoa. Ele pode tomar conta do corpo, porém não pode habitar na alma. Pode atingir a sensibilidade, mas não pode passar para a inteligência nem para a vontade.

O romantismo é um erro, um defeito por onde a pessoa sonha que possa ser habitada por outra e habitar essa outra, o que é impossível. Além disso, esse outro para o qual o romântico abre a alma nunca existe. É uma ilusão, um desvio daquilo para o qual fomos criados, ou seja, sermos habitados por Deus. O romântico, no fundo, tira Deus e quer ser habitado por outro (MNF, 8/7/1992).

O romantismo tomou o ideal justo - esta tocha outrora acesa na alma do homem – apagou-o e acendeu a meta e a fantasia erradas. Depois de fantasiar muito, veio o senso prático, e na virada do século começou a era do progresso desordenado.

No fim do século XVIII houve uns progressos e uma virada completa de cultura. No século XIX, a mesma coisa: Exposição de Paris, a Torre Eiffel. Já era a ciência, mas ainda com o sentimentalismo, as duas coisas juntas. 

 

O mundo começou a ir a Paris, antes de começar propriamente o turismo. Mas na Exposição Universal em Paris já era um turismo sem o nome. O indivíduo que ia a Paris fazer turismo, depois começou a fazer turismo pelo mundo inteiro.

Todos os desvios começaram a se manifestar de modo prático. Já não era mais sonhar, mas viajar, ver, procurar o sonho por toda parte. Porém com uma característica: o sonho se apaga, e a nota prática prepondera completamente.

Surge Hollywood e aparece algo pior nessa evolução: o mundo comunista, em que a feiura domina. E por fim o aparecimento do demônio, o feio pelo feio (MNF, 8/7/1992). 

Educar para o sonho bom

“A Coroação da Virgem”, de “Les Très Riches Heures du Duc de Berry” (Fólio 60, entre 1412 e 1416, pelos irmãos Limbourg. Museu Condé, França - RG Ojéda / RMN / PD-US)

O normal seria que a doutrina católica a respeito do Céu fosse bem ensinada, e que desde o começo houvesse um sopro para orientar os espíritos. Isto seria de uma eficácia contra-revolucionária única. Infelizmente, o lado sonho, pulchrum, beleza, maravilhoso etc., habitualmente não era dado nos cursos de Catecismo. E onde apareciam eram em contos de fadas, que nada tinham a ver com a religião propriamente. Assim as almas eram desviadas da possibilidade de ter o sonho bom, e se tem o mundo revolucionário...

Pensar que o fenômeno revolucionário é só uma questão de diferenças de formas de governo, não está certo. É algo diferente. Não é tanto saber por que a monarquia é — segundo São Tomás — a melhor forma de governo, mas como ela se parece melhor com o sonho absoluto.

 

A Sala do Reino de Maria é uma sala-sonho que convida ao sonho bom, mas que pode ser pouco visitada... por isso mesmo. O próprio da Sala do Reino de Maria não é tanto para rezar, mas para se deixar envolver pelo ambiente e fazer oração de quietude. É uma oração muito mais elevada do que a vocal. Mas como não se acha que isso seja oração... É uma lástima! (MNF, 8/7/1992).

Sociedade orgânica e sociedade mecânica

A organicidade tem alguma coisa, posta por Deus, de insondável, de primeiro, de vivo, que o homem deve conhecer em si e até desenvolver. Não de modo artificial, mas vivo, fazendo com que aquela apetência boa se estimule ainda mais, viva ainda mais, seja para a pessoa uma fonte de deleite e de união com Deus, como para muitas pessoas o são as estrelas do céu, os astros, etc.

Este fundo magnífico e misterioso existe até nos animais. Há animais propensos para algumas coisas, outros propensos para outras, conforme a raça, a espécie, às vezes conforme o indivíduo. Vemos algo disso até nas plantas. Por exemplo, o heliotropismo do girassol. Ele tem um movimento que decorre de sua vida, e que é espontâneo. Se o girassol fosse capaz de compreender, procuraria analisá-lo para desenvolver o lado bom, de maneira a dar um arqui-girassol (SD, 19/3/1993).

O aperfeiçoamento do gênero humano está muito relacionado a isso. Consiste em procurar desenvolver as propensões boas, de modo temperante, mas autêntico, de maneira que as pessoas deem aquilo que possam dar.

O que é próprio ao organismo vivo é orgânico, de onde a palavra organicidade. Toda organicidade que existe em cada indivíduo gera uma série de movimentos e impulsos, que o homem deve conhecer, analisar e desenvolver. Neste sentido, ele é até certo ponto o servidor de si mesmo, procura ver o que há em si de autêntico, de verdadeiro, de bom, e procura desenvolvê-lo. Em sentido oposto, ele andará mal se procurar combater em si algumas coisas orgânicas, boas, legítimas, em favor de um projeto próprio.

Por exemplo, ele fará um raciocínio: "Eu tenho um gosto extraordinário pela escultura e pela pintura, e poderia ser um grande pintor ou escultor. Mas em minha época os grandes pintores e os grandes escultores não são nada em comparação com os grandes ricaços. Então vou abafar em mim a tendência para a escultura e a pintura, para onde todo o meu ser tende, para aprender a manusear o dinheiro e tornar-me um homem riquíssimo, porque desta maneira fico mais importante". Isto é um atentado que o indivíduo comete contra si mesmo. Ele se põe numa posição errada, que não vai com seu temperamento, para realizar uma ambição e dar vazão a uma vaidade, que são expressões do lado ruim de sua própria pessoa, e que, portanto, ele deve combater.

Podemos imaginar que no vale do rio tal haja uma população com muita aptidão para tocar certos instrumentos de uma fanfarra, e alguns dotados de determinadas vozes. Suponhamos que esse povo seja trabalhador, preservado da televisão, e nas suas horas vagas não tenha muito o que fazer. Na falta do que fazer, desenvolve a tendência a cantar e a tocar música. Isto para ele é orgânico, porque todo o seu organismo pede isto. Resultado: ao longo do vale do rio tal, os coros, as fanfarras etc. são numerosos e obedecem a um movimento profundo daquele povo (SD 19/3/1993).

Isto pode ser acentuado por aspectos materiais da região, pelo quadro em que ela se encontra. Há regiões que são muito risonhas, em que a vegetação comporta musgos de um verde claro encantador, em que as árvores dão frutas vermelhas, em que os pássaros cantam de uma determinada maneira, em que as quedas d’água têm um “brouissement” próprio da água quando cai de uma certa altura, mas não altura exagerada porque a região não tem grandes montanhas. A água cai quase cantando, pingando as suas gotas sobre a superfície líquida que encontra. Esse conjunto de aspectos risonhos do panorama foi posto por Deus quando criou o mundo. Deus criou essa harmonia entre os seres para que o homem a descobrisse, a amasse e se conformasse a ela. Além do mais, deu talento ao homem para tornar mais belo o que Ele já fizera de bonito. Deus quer que o homem complete assim a Sua obra. Isso faz com que ao longo daquela região a música, por exemplo, fique influenciada por disposições temperamentais e psicológicas, que são meio da região e meio fruto da obra do homem sobre a região.

Por exemplo, o belvedere. Em italiano, belvedere quer dizer um local de onde se podem ver coisas bonitas. Imaginemos um monte do alto do qual se vê um panorama muito bonito. Então ali se plantam algumas árvores bonitas, que constituem um quadro agradável, e se faz uma espécie de parapeito, para que as pessoas não rolem, mas que dá numa colunata também agradável de ver. Nesse belvedere se reúnem pessoas, aos domingos à noite, para cantar e tocar um certo tipo de música próprio da região. Tudo é meio nascido da espontaneidade, meio provocado pelo ambiente, meio feito da reflexão instintiva do homem — muitas vezes inculto — sobre o ambiente que o cerca. No conjunto, isso forma uma obra de cultura, que faz aquela região elaborar certo tipo de música, de roupa, e, conforme o caso, certo tipo de dança, que pode perfeitamente ser inocente. É um começo discreto de civilização, próprio àquela zona.

 

A banda de São Jorge durante o "Aufmarsch" (desfile) que precede o concerto em Brunico, em Bolzano, no Südtirol (Vermondo/Wikimedia)

Isto é profundamente simpático, brota agradavelmente do próprio jogo natural e honesto das coisas vividas por gente casta, que não se mete nas ardências e nas apetências desregradas da impureza, nem na bebedeira ou na glutonaria, mas faz tudo casta e ordenadamente. Isto se dirá que é a civilização do vale do rio tal, ou algo semelhante. É uma coisa espontânea, profundamente conforme à natureza e à obra de Deus.

Deus pode querer que a obra dEle seja melhorada pelo homem, e que dessa intervenção resulte algo melhor do que a espontaneidade. Mas o gênero humano, devido ao pecado original, pode fazer coisas tão desatinadas, que há muita possibilidade de essa intervenção não ser bem feita, e acabar saindo tolice. Pelo contrário, se deixar o jogo natural das coisas correr bem, elas tomam normalmente um rumo bom, que dispensa a técnica. Por exemplo, eu confio mais na água que chega limpa a Jaú do que nessa água “tratada”, filha de uma técnica malsã (“Santo do Dia”, 19/3/1993).

Planejamento estatal, ruína da sociedade orgânica

Vamos supor que um governo mande sociólogos para estudar a situação descrita acima, e eles cheguem à conclusão de que a música seria muito mais bonita se não fosse improvisada por artistas espontâneos do lugar, mas composta por músicos dos conservatórios dramáticos e musicais, inspirados em músicos famosos. E depois baixam um decreto estabelecendo que as roupas usadas na região não podem ser assim porque, digamos, consomem muito couro e devem ser de tais tecidos, que são muito bonitos de acordo com o que resolveu o departamento de arte da Secretaria de Estado dos Negócios da Cultura. E vem todo um plano de reforma daquela zona...

O que sai disso? Estraga a zona, porque ela perde sua naturalidade. Porque é como um automóvel a cujo motor a gasolina não chega. A vida torna-se artificial, imaginada de acordo com uma lógica que não toma em consideração os mistérios das apetências naturais e hereditárias das pessoas da região. Essa desconsideração produz as coisas artificiais dos dias de hoje...

Todos nós estamos de acordo em que uma das finalidades da TFP - desde que ela consiga influenciar uma região ou um Estado - é fazer voltar, tanto quanto possível, a naturalidade boa. Não se trata de cultivar a naturalidade errada, mas aquela razoável. Nós somos os entusiastas da sociedade orgânica (“Santo do Dia”, 19/3/1993).

Naquela região do rio tal, que tem músicos com trajes, partituras e danças próprios, compreende-se que um sociólogo dê alguma ideia bonita para melhorar aquilo. Mas se os sociólogos começam a mexer, um dará uma ideia bonita e vinte darão ideias forçadas, sem o contato com a realidade, e estragam a situação...

Do mesmo modo, se houvesse um enorme progresso material que desse aos homens a possibilidade de modificar a disposição das estrelas no céu, eles fariam um primeiro arranjo que poderia ser bonito, mas depois de cem anos o céu estaria um horror de mau gosto. É melhor deixar como Deus o fez.

O homem que anda com as suas próprias pernas caminha organicamente. Se anda de muletas, por mais esplêndidas que sejam, anda de modo artificial. Pode ser para ele um mal menor, mas o melhor é andar de modo natural. Vamos pôr as coisas como elas são, na sua boa ordem natural.

Os reis medievais tinham essa ideia da organicidade levada ao auge, mas os reis pós-medievais a foram perdendo. Eles intervinham nos municípios, nos grupos autônomos como faculdades, universidades, seminários, dioceses e tudo mais, mandando isto ou aquilo de acordo com ordens que um ministro qualquer, sentado na sua mesa de trabalho, inventava que era melhor (“Santo do Dia”, 19/3/1993).

Com a intervenção absolutista [do monarca], eram postas de lado as autoridades orgânicas, os nobres do lugar, nascidos com a história local, que tinham se tornado nobres porque foram pais e pequenos reis do lugar, e o foram porque mereceram ser. Quando houve invasão [nessa zona], [esses nobres locais] foram os primeiros a resistir, a organizar, a não perder a cabeça, a dar coragem a todo mundo, os primeiros a morrer por todo mundo. A família nobre era uma espécie de arqui-família, que espontaneamente conglomerava em torno de si as outras famílias para formarem um todo que constitui uma região, uma pequena cidade. Essa família foi posta de lado.

Luís XIV mandava funcionários precedidos de tocadores de cornetas, elegantíssimos, muito bem vestidos. Chegavam a cavalo e proclamavam: "Décret de sa majesté le roi. O rei mandou fazer assim, mandou fazer de tal jeito etc. Para quem desobedecer à sua majestade o rei, prisão de tanto a tanto tempo. Fica nomeado dirigente civil desta localidade o sr. tal, que assim faça obedecer a nossa vontade. Assinado: Luís, Rei". É até imponente, mas a comparação que eu dou com as muletas é bem esta. Os reis tiraram o apoio natural de si mesmos. As pernas deles eram os nobres locais. Puseram as administrações burocráticas, começou o mundo pesado, técnico, das repartições públicas, que deu nas estatais, debaixo de cujo peso geme todo o mundo, caído sob o peso da burocracia (“Santo do Dia”, 19/3/1993).

Avante

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