A comunidade dos Estados segundo as normas de Pio XII

Catolicismo, Nº 43 – Julho de 1954, págs. 5 e 6

Plinio Corrêa de Oliveira

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Continuamos (1) hoje nossos comentários sobre a importantíssima alocução Santo Padre aos participantes do 5º Congresso Nacional da União dos Juristas Católicos Italianos (2).

A respeito da constituição de um organismo internacional abrangendo grupos de Nações, e possivelmente todos os países do globo, o Santo Padre Pio XII enunciou alguns princípios que assim se poderiam resumir:

a) – Há um fato evidente: dia a dia “crescem em extensão e profundidade” as relações entre pessoas de povos diferentes, mais ainda, entre esses próprios povos. A técnica contribuiu para criar tal situação. Este entretanto é essencialmente um fato natural, decorrente de “ação mais penetrante de uma lei imanente de desenvolvimento”. Em si, esta lei, por isso que natural, é reta. Daí decorre que “em lugar de a reprimir, deve-se favorecê-la e promovê-la”.

b) – Os Estados integrantes dos novos organismos internacionais continuarão soberanos. Esses organismos são verdadeiras associações livres, de Estados independentes, análogos no plano do Direito Internacional ao que são as simples sociedades de pessoas naturais ou físicas, no campo do Direito Privado.

c) – A regra fundamental dessas comunidades é a observância da lei natural nas relações internacionais. A Comunidade dos Estados terá por certo seu Direito Positivo. Mas este não será arbitrário, e terá por missão “definir mais exatamente as exigências da natureza e adaptá-las às circunstâncias concretas”.

d) – Além disto, a Comunidade das Nações poderá “adotar por meio de uma convenção que, livremente contraída, se torna obrigatória, outras disposições dirigidas sempre ao fim da comunidade”. Isto desde que – como ficou dito – tais disposições não contrariem as leis da natureza, que são leis do Criador.

e) – Esta atribuição legislativa da Comunidade das Nações é incompatível com a concepção de soberania de Hegel e do Positivismo jurídico absoluto. Mas respeita a soberania retamente entendida de cada Estado. A verdadeira soberania significa “autarquia e competência exclusiva com relação às coisas e ao espaço, conforme a substância e a forma de atividade”, sem “dependência do ordenamento jurídico próprio de qualquer outro Estado”. Mas esta soberania não exclui que ao Estado seja “negada a faculdade de agir arbitrariamente e sem atenção para com outros Estados”. É óbvio que, sem prejuízo de sua independência, e pela própria força natural das coisas, “todo Estado é sujeito imediatamente ao Direito Internacional”.

f) – Povos e indivíduos tem em si diversas tendências inatas que facilmente chegam ao exagero, e que por isso mesmo criam o risco de perturbar as relações internacionais. Este risco é acentuado pela diversidade de religiões. Entre os povos e os Estados a constituírem a Comunidade das Nações haverá católicos, acatólicos, ateus. Como resolver os problemas daí decorrentes?

A comunidade de Estados e República Universal

No momento, paremos aqui.

Antes da alocução de Pio XII, o problema Comunidade dos Estados estava intimamente ligado – pelo menos na prática – ao da República Universal.

Como se sabe, numerosos pensadores e políticos influentes têm propugnado com insistência sempre maior, pela formação de grupos de Estados fundidos ou quase fundidos entre si, e tem preconizado que tais grupos constituiriam um primeiro passo para a realização de um só Estado em toda a terra, no qual se amalgamariam, dissolveriam e fundiriam todos os países.

As condições políticas oriundas da última guerra favoreciam singularmente este plano, pois criavam – pelo menos na aparência – uma alternativa cruel: ou a realização de super-Estados absorventes para resistir ao Leviatan  soviético, ou a capitulação diante do comunismo. Em boa parte, o drama da CED nasce deste problema.

Em outra ordem de idéias, começou a aparecer como evidente para numerosas pessoas que um novo conflito internacional acarretará o fim da civilização, e quiçá da humanidade. Assim, pareceu-lhes que todos os sacrifícios seriam pequenos para evitar um tal desfecho. E nada se lhes afigurava mais racional, mais eficaz, mais definitivo neste ramo, do que suprimir todos os governos, todas as fronteiras, todas as pátrias, e estabelecer a República Universal.

As circunstâncias conferiam assim forma, cor e vida em nossos dias, às cogitações dos revolucionários que, particularmente desde o século passado, vêm sonhando com o moloch de uma república universal, laica, socialista, igualitária, o plano bem conhecido das seitas secretas, que ontem ainda parecia quimérico aos espíritos “realistas”.

Nos meios católicos, muitos pensadores e estudiosos se tem preocupado com o assunto. E a generalidade deles se dividia em duas tendências. Uns, atraídos pelos aspectos filantrópicos e pacifistas da sonhada República Universal, pactuavam com ela segundo algum dos mil modos com que se pode pactuar com algo, desde a adesão declarada, até a aprovação tácita, ou a aceitação muito resignada, do fato consumado. Outros, entretanto, reagiam. Não que lhes parecesse ilegítimo ou inconcebível um organismo supra-nacional, cada vez mais fortemente reclamado pelas crescentes facilidades de comunicação entre os povos. Em seu espírito estava bem viva pelo contrário a admiração pela Cristandade e o Sacro Império. Mas parecia-lhes que os partidários da República Universal eram imensamente poderosos, e de outro lado a única resistência ponderável que tinham diante de si eram certos particularismos, explicáveis muitas vezes, exagerados e estreitos outras, mas em todo o caso muito vivazes. Qualquer passo que se desse no rumo da formação de blocos internacionais, embora fosse legítimo em suas modalidades iniciais, amorteceria esses particularismos, e em última análise reduziria as resistências psicológicas – imensamente mais importantes do que se pensa – que se opunham à realização do audacioso plano das seitas. Como se vê, havia a maior adesão à idéia de um organismo internacional que respeitasse e até defendesse a soberania de cada povo. Mas uma grave objeção estratégica contra a oportunidade desta medida. Objeção sábia, objeção criteriosa, objeção justa, inspirada na análise sagaz do horizonte político como ele se apresentava. Em tese, uma comunidade internacional seria excelente. Concretamente, e para evitar o mal maior da República Universal, era preferível esperar.

Condenado o sonho das seitas

A Alocução do Santo Padre Pio XII aos juristas católicos da Itália veio alterar inteiramente este horizonte, nele introduzindo um elemento novo de substancial importância. Assim, a tática, cujo mérito está em sua adequação aos fatos, também tem de mudar.

Esta modificação, poderíamos enunciá-la assim:

a) – Pio XII declarou guerra formalmente, à concepção da República Universal que as seitas querem impor. Seu discurso torna bem claro o princípio – já ensinado pela Igreja, mas olvidado por muitos – de que a existência de Estados soberanos é conforme ao Direito Natural, e a comunidade dos Estados não deve atentar contra essa soberania;

b) – Ele se mostra resolvido a guiar o curso natural e justo dos acontecimentos, favorecendo a criação da Comunidade das Nações, e fazendo para isto todos os esforços necessários. Mas ao mesmo tempo circunscreve o âmbito desse organismo, e estabelece as condições em que ele pode contar com o apoio da Igreja.

Esta intervenção doutrinária e diplomática do Santo Padre – já pronunciada quiçá, discretamente, em alocução anterior – destrói o primitivo quadro. Frente a frente há hoje em dia mais do que somente os partidários da República Universal e os particularismos, excessos entre os quais só cabia – taticamente – aos elementos moderados favorecer o mal menor, que era certamente o particularismo. Na liça está agora a Santa Sé, a guiar com seu prestígio, sua força, sua sabedoria, o poder das graças de Deus, os esforços em prol de uma solução equilibrada: nem particularismos exagerados, nem República Universal, mas particularismos legítimos, Estados soberanos e irmãos, sujeitos ao Direito Natural no seio de uma sociedade.

O problema se simplifica pois enormemente, para os verdadeiros católicos. Trata-se para eles, não mais de escolher entre um mal menor e um mal maior, mas de agir e rezar a fim de que a atuação importantíssima do Sumo Pontífice produza para a maior glória de Deus todos os frutos que seu coração amorosíssimo deseja.

A comunidade das nações e a Religião

Comentadores superficiais exultaram com a alocução pontifícia, vendo nela uma tomada de posição a favor do “Estado vitalmente cristão” sonhado pelo sr. Jacques Maritain. Tal Estado admitiria em pé de igualdade a Igreja e todas as seitas. Ele alicerçaria o seu Direito, não sobre a Revelação – pois este é o ponto de divergência entre as várias religiões – mas sobre a lei natural, conhecida pela mera luz da razão, e, pois, aceitável pelos fiéis de todos os credos.

Ora, dizem eles, o Santo Padre concebe precisamente assim a Comunidade das Nações. Ela não se estruturaria sobre a base da Fé, como outrora a Cristandade e o Sacro Império, mas sobre a base da lei natural. Ela não teria religião oficial, mas seria eqüidistante em relação a todas. Ficaria pois demonstrada a legitimidade de um estado de coisas tal.

Singular mentalidade

É incompreensível que católicos cheguem a tais conclusões e com elas se alegrem.

Quando se ama algo ou alguém – pessoa, instituição, doutrina – deseja-se-lhe todo o bem, toda a honra, toda a glória. Isto é verdadeiro a fortiori com Deus e sua Igreja. Se na ordem das possibilidades teóricas se pode pensar numa sociedade internacional em que todas as nações, convertidas a Cristo Senhor Nosso, reconheçam seu reinado e tomem como pedra fundamental de seu Direito – no campo internacional e interno – a Santa Igreja, a atitude do católico zeloso consiste em anelar com todas as veras da alma esta situação, e aceitar pesaroso qualquer outra. Pesaroso, sim: é bem este o termo. Pois o lugar próprio a Cristo Rei é o trono, e qualquer outra situação que se lhe atribua é falsa, ilegítima, imprópria. Pode haver circunstâncias que levem o católico zeloso a aceitar para a Igreja outra situação. Ele a aceitará, pois o contrário seria estulto. Mas esta aceitação comportará três ressalvas:

a) – ele deplorará profundamente as circunstâncias concretas que o forçam a aceitar essa situação;

b) – ele conservará o anelo ardente da situação normal;

c) – ele agirá com toda a diligência para [que] as circunstâncias que lhes impõem a situação anormal sejam removidas.

Ora, tem-se a impressão de que muitos espíritos se portam de modo diametralmente oposto diante da dura contingência em que estão os católicos neste mundo em que a maioria ainda não é católica:

a) – referem-se sem o menor pesar, à divisão religiosa trágica que pesa sobre a Cristandade desde Phocio e Lutero, e que é a causa essencial de todos os nossos males;

b) – encaram uma sociedade nacional ou internacional baseada na Fé católica como um cárcere ou uma masmorra, da qual se sentem felizes em ter fugido para o ar fresco e leve do interconfessionalismo liberal;

c) – vivem euforicamente nessa atmosfera, sem qualquer pesar pelo lugar secundário em que fica colocada a Igreja;

d) – não desejam trabalhar para voltar à ordem de coisas anterior.

A verdadeira questão

É preciso fixar bem a importância do que aqui fica dito. O ponto de divergência entre nós e tais católicos não é este:

a) – nós consideramos como legítima só a tese de um Estado oficialmente católico;

b) – eles aceitam a tese, mas admitem também a hipótese de uma ordem de coisas que imponha uma atitude não oficialmente católica para o Estado.

O ponto de divergência é este:

a) – Nós admitimos claramente a tese. Eles a negam, ou quando não, são muito confusos e reticentes a respeito dela.

b) – Nós admitimos como eles a hipótese. Nós, com pesar profundo, eles com entusiasmo.

c) – Vigente a situação criada pela hipótese, queremos manter bem vivo entre os católicos o conhecimento e o amor à tese, e desejamos fazer todo o possível para que lhe corresponda à realidade. Eles calam a tese, ou a ela se referem sem zelo. Vivem bem no domínio da indiferença de Estado. Nada fazem para difundir a tese e levar o mundo a ela.

A atitude do Vigário de Cristo

Qual das duas posições é aprovada pela alocução pontifícia? Tem-se vontade de sorrir. Pois quem pode duvidar dos sentimentos de um Papa a este respeito? Quem pode duvidar de que Pio XII deplore com todas as veras de sua alma a divisão religiosa do mundo, máxime a existência de uma tão imensa ditadura atéia por detrás da cortina de ferro? Quem pode duvidar de que ele deseje a conversão de todos os povos à única Igreja de Jesus Cristo, e de que no dia em que tal se der ele quererá ver a Revelação como base do Direito? Em tudo quanto o Papa ensina e faz, isto é implícito e explicito de todos os modos.

Em sua alocução, Pio XII, à vista da situação contingente de divisão religiosa, e da existência de povos ateus, aceita a idéia de uma sociedade internacional baseada no Direito Natural, e sem posição confessional oficial.

Mas onde está dito ou insinuado que essa situação lhe agrada, lhe causa júbilo? Onde está afirmado que ele a reputa a situação ideal? Onde está dito que ele renuncia à situação ideal?

E onde, pois, os títulos para o júbilo maritainista?

O Santo Padre Pio XII agiu no caso como qualquer Papa da Idade Média, o que aliás é normal porque Pedro é sempre Pedro.

A Cristandade medieval viveu sempre em guerra de legítima defesa contra bárbaros e sarracenos. Se uns e outros não nos tivessem atacado, se não tivessem violado nossas fronteiras, tivessem permitido aos missionários evangelizar em suas terras, e tivessem respeitado os Lugares Santos, se tivessem observado a moral natural, em suas relações com a Cristandade, não teria havido as Cruzadas.

Se os ateus, hereges e cismáticos de hoje quiserem agir assim – levados quiçá pelo medo de uma hecatombe mundial – porque fazer contra eles uma Cruzada?

*   *   *

E assim nos fica só, para analisar, a tomada de posição do Sumo Pontífice em face do problema da liberdade religiosa no interior de cada Estado, inclusive dos Estados ateus.

Fá-lo-emos em próximo número, não sem tocar em outra questão. Falando em “Lei imanente de desenvolvimento”, e em “tendências inatas”, o Santo Padre canonizou o evolucionismo?

Notas:

(1) O primeiro artigo desta série, subordinado ao título de “Desfazendo explorações maritainistas“, foi publicado no número 42, Junho de 1954

(2) Publicada em “CATOLICISMO”, número citado.

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