Cardeal Merry del Val: domínio da alma sobre o corpo, contrário da “espontaneidade” da IV Revolução

Santo do Dia, 29 de novembro de 1975, Sábado

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério tradicional da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

 

[O cardeal Merry Del Val era um homem de grande valor e logo] desde o início de seu pontificado São Pio X soube distinguir e o soube elevar. Ele era um simples Monsenhor da Cúria Romana; São Pio X o soube elevar à alta categoria de Secretário de Estado, e de Cardeal. E há um processo de canonização do Cardeal Merry del Val, que, como tantas outras coisas excelentes, naturalmente está parado, não vai para a frente.

Mas para se ter pensado nos bons tempos da Igreja na canonização dele, os senhores compreendem bem que deve ser uma pessoa de grande valor, como aliás, os contemporâneos dele reconhecem que ele era.

Para sabermos pormenores sobre a ascendência dele, que explicam a figura dele, os srs. devem saber que ele é, por parte de pai, irlandês e por parte da mãe, espanhol. Merry é o nome irlandês; e Del Val é o nome espanhol. Mas tanto o pai quanto a mãe, de uma muito boa aristocracia europeia. Seus pais tinham relações sociais muito altas, eram ricos, dispunham de recursos e que deram a ele uma excelente educação.

Ele, muito cedo, entrou no que nos bons tempos da Igreja se chamava o “Colégio dos Nobres”, que era o colégio onde se ensinava a percorrer a carreira diplomática da Santa Sé.

Os senhores sabem que os embaixadores dos Papas chamam-se Núncios Apostólicos. Núncio, em latim, é uma palavra que quer dizer enviado; apostólico, porque é enviado pelo sucessor dos apóstolos. É assim que se chama o embaixador do Papa. E ele era Núncio Apostólico.

Os senhores o veem aí com a indumentária de Cardeal, e com a cruz peitoral de Arcebispo.

A indumentária de Cardeal o que é? É essa calota, que se chama solidéu. Por que solidéu? A palavra é uma só, mas ela se decompõe em duas palavras latinas: “soli Deo”. Quer dizer, é só em presença do Santíssimo Sacramento que o Cardeal, ou o Bispo, tira essa calota. Mas como ele era Cardeal, ele usava uma calota de seda e vermelha. Era púrpura. E de seda chamalotada. O que vem a ser chamalotada? Os senhores estão vendo esses traços de luz na calota; eles traços dependem da posição da seda. Quando é uma seda de tipo boa qualidade, ela toma, eu diria erradamente, essas fosforescências, que lhe dão uma beleza especial.

A batina é preta, mas com debruns vermelhos, não roxo, como usa Dom Mayer como Bispo, mas vermelhos. Aí os senhores têm a explicação essencial da figura do cardeal Merry del Val.

Os srs. estão vendo que ele representa aí um homem entre cinquenta e tantos e sessenta e tantos anos. O cabelo já está branco, mas as sobrancelhas ainda estão escuras.

O que ele tem de hierático? O que aí pode ser chamado hierático?

Talvez só os mais penetrantes, os mais psicológicos dentre os senhores notarão o seguinte: a cabeça está carregada pelo pescoço numa atitude que é ao mesmo tempo uma atitude comum, que não chamaria a atenção de uma pessoa desprevenida, mas com uma atitude que eu agora, chamando a atenção, os senhores percebem que concorre para dar um certo ar de mando a ele. Não sei percebem que ele tem um certo ar de mando; e que esse ar de mando vem de duas coisas: a posição da cabeça e a direção do olhar.

Por que a posição da cabeça? Imaginem os senhores que ele tivesse a cabeça para o ar. É ou não é verdade que a posição de mando perderia inteiramente? Imaginem que ele estivesse com a cabeça inclinada para um lado, ou para o outro: não perderia muito também? Imaginem a cabeça para a frente: a posição de mando não perderia? A gente tem a impressão de que a musculatura do pescoço carrega o peso da cabeça com desenvoltura, com linha, com categoria.

Ele é de um tempo em que nas boas famílias, quando o menino não tinha uma boa impostação para carregar a cabeça, sabem o que faziam? Amarravam livros pesados, pelo queixo, na cabeça, e mandavam o menino carregar o livro. É instintivo da cabeça que quando ela tem um peso em cima ela se levanta, para o peso não se tornar mais forte, não ficar pior. Então, na hora de desamarrar o livro, a cabeça fica numa posição ereta, numa posição nobre, numa posição habituada a olhar as coisas de cima.

Agora passo para o olhar. Não sei se percebem que o olhar dele olha todas as coisas muito de cima. Não é um olhar que está posto em qualquer coisa, mas está posto num certo ponto indefinido, num certo ponto indeterminado. É um olhar que tem muita vida, é um olhar inteligente e, sobretudo, um belo olhar, de uma pessoa de virtude, de espírito de fé; a gente tem a impressão de que ele está olhando qualquer coisa de transcendente, de metafísico, de sobrenatural. É o olhar de quem está habituado a meditar.

Os senhores notarão, talvez, um contraste entre o olhar, que é cheio de vida, e o resto da fisionomia. Talvez notem que o rosto é completamente impassível. Não tem nada que se move. O rosto está completamente imóvel, não há a contração de um músculo; se os srs. apagassem esse olhar, os senhores não entenderiam nada do que ele está pensando. Bastaria os srs. terem o olhar, para os senhores entenderem tudo, de tal maneira o rosto se associa pouco à vida do olhar. A vida toda está no olhar.

Isto está claro para todos? Ou parece um pouco subjetivo para provar? Levantem o braço para quem está claro.

Aí os senhores têm a aplicação dos princípios de uma velha escola, que diz que quando um homem é um diplomata, quando o homem é um político, quando o homem tem graves responsabilidades, ele deve saber fazer uma cara em que não transparece nada; ele deve saber ser impenetrável.

Quando o homem é bem educado, se ele não está na intimidade, ele deve ser reservado.

E os srs. notam o resultado curioso disso: como todo homem é um ser social, tende a comunicar-se, quando ele não pode se comunicar pelos jeitos e trejeitos da boca, e pelos meneios da cabeça etc., ele acaba se comunicando pelo olhar. E essa suma discreção do rosto leva a pessoa a ter um olhar muito expressivo.

Então, os srs. têm exatamente o contrário dessa fisionomia, os srs.  têm em tantas fisionomias modernas que os srs. conhecem hoje. Falam com uma voz dengosa, pastosa; quando vão falar empurram a boca para um lado, empurram para outro, meneiam com a cabeça, dizem expressões como “sabe, não é?” e quanta outra bobagem. No fundo, olhem para o olhar deles: não exprime nada. Cara ultra movediça, olhar vazio.

Ora, o melhor espelho e mais nobre da alma é o olhar. O rosto,  exatamente, nas ocasiões que não são de intimidade, deve tender à impassibilidade. Por exemplo, se uma pessoa está de automóvel andando na rua, deve fazer um rosto impassível. O contrário é fazer papel de bobo: olha, vê qualquer coisa, ri… Não tem propósito. O auge do horror é falar sozinho, ou dar risada sozinho. É o auge do disparate, do despropósito.

Pelo contrário, se a pessoa domina o rosto, o olhar fica expressivo. Os srs. dirão: “Mas, Dr. Plinio, então não lucrou nada. A pessoa é diplomata, não quer mostrar o que é, mas o olhar mostra…”

O olhar mostra muito menos do que o rosto. São poucas as pessoas que sabem interpretar um olhar; são muitas as pessoas que sabem interpretar um rosto.

Então, os srs. têm aqui o que? Os srs. abstraem do olhar, os srs. têm um homem que está representando um papel: o papel é o de um gentil-homem de nascença, Cardeal e a primeira pessoa, abaixo de São Pio X, no governo da Igreja universal. O resultado os senhores notarão: a dignidade, a reserva, a distinção; ele não está externando as suas próprias impressões, ele é hierático, ele é impassível, exceto no olhar. No olhar está toda a vida dele.

Essa impassibilidade em que a pessoa exprime a atitude própria ao cargo e não a atitude própria à sua própria alma, é uma forma de hieraticismo, é uma das modalidades de hieraticismo.

Que uma pessoa chegue a ser tão altamente hierática, isso se chama civilização. A pessoa é muito civilizada quando ela acaba aprendendo a ter esse porte e ter essa atitude. Essa é a pessoa hierática.

Os senhores podem facilmente encaixar essa descrição do personagem hierático nas descrições que fiz anteriormente.

Isso choca a tese moderna de que todo mundo deve ser “espontâneo”. Os macacos são muito espontâneos… até – se os senhores quiserem – representam o delírio da espontaneidade. Mas essa não é a posição da pessoa que sabe se dominar.

A pessoa que sabe se dominar, será expressiva quando está na intimidade, mas discreta e distintamente, sempre representando o seu próprio papel.

Tem mais ainda [outras fotos]?

[Aparte: Dr. Plinio, tem vários slides…]

É, não podemos ir até o fim porque a reunião já está muito longa…

Eu depois direi aos senhores aonde quero chegar com essa descrição do hierático. Eu já entrei em alguma coisa do prático, hoje, mostrando a diferença entre o hierático e o moderno.

Eu pretendo mostrar aos srs. depois, pela confrontação com o moderno, que houve tempo em que mesmo os homens de condição modesta tinham qualquer coisa de hierático, sobretudo quando eles representavam ou quando eles eram dotados de uma grande vocação. Eles tinham uma atitude, tinham uma posição que era o embebimento da vocação e da missão dentro deles. E com isso, a transparência muito mais do dever a ser cumprido e do ideal a serviço do qual esse dever deveria ser cumprido, do que a transparência das características individuais.

Isso exatamente é o contrário da tendência moderna, e é o contrário da IV  Revolução: é o domínio da alma sobre o corpo. Na alma, o domínio da razão sobre a vontade. Na razão, o domínio da fé sobre a inteligência: a ordem perfeita. Quando esta ordem existe, o homem toma naturalmente uma posição hierática.

(Aparte)

Notei que o hierático existia em confronto ou em contradição com o contrário do hierático. Lembro-me de que minha governante e minha Mãe me habituaram a atitudes muito compostas, corretas etc.

Quando entrei para o colégio, notava nos meus colegas exatamente o contrário. Mas eu percebia que enquanto as velhas atitudes e maneiras que eu tinha aprendido exprimiam um modo de ser da alma, exprimiam uma ordem da alma que tinha como reflexo a ordem do corpo, pelo contrário, neles, o modo moderno que tinham exprimia uma desordem da alma. E não se tratava uma questão apenas de maneiras e de etiqueta, mas como todas as questões de maneiras e de etiqueta, havia por detrás uma questão de modo de ser, uma escola espiritual. Aí comecei a entender como o hierático era superior ao modo de ser revolucionário, que estava se afirmando cada vez mais no meu tempo.

Por exemplo, eu tinha aprendido que ao se encontrar na rua com alguma pessoa conhecida, qualquer que fosse a idade, era preciso tirar o chapéu. Todos andavam de chapéu naquele tempo, inclusive as crianças. Isso desde que não fosse o famoso chapéu de palha. Chapéu de feltro ou quepe, suspendia-se completamente ao se encontrar uma pessoa conhecida. Isso devia ser feito também diante das igrejas e quando passasse um enterro, por respeito ao morto. Qualquer que fosse o morto, por mais pobre que fosse o acompanhamento do enterro, parava-se de andar e deixar passar o esquife, com o chapéu na mão. Passado o esquife, a gente se cobria e continuava a andar.

Entro para o colégio. Dias depois, vou a um lugar central na cidade, e como São Paulo ainda era pequena, como é natural, encontro um grande número de colegas. O triângulo das Ruas Direita, São Bento, 15 de Novembro era o centro da vida da cidade naquele tempo. Passa um colega, eu tiro o chapéu; eles não tiravam o chapéu, respondendo somente pondo a mão na aba do chapéu. E percebi que entre si também faziam isso. Então percebi que aquela cortesia de tirar o chapéu morrera, como morrera todo um modo de tratar o outro, mas que era todo um modo de ser, que era feito do respeito de si mesmo, do respeito do outro, e da boa vontade, da cordialidade. Mas com uma pitada de desconfiança, querendo dizer: – “Não se ponha de íntimo, porque eu te quero conhecer melhor”…

Ora, isso é a posição normal e ordenada do homem perante a vida: não dar intimidade antes de conhecer bem, é claro.

O respeito? Mas o que torna a vida agradável é o respeito. Uma vida sem respeito é infernal. Os senhores são tão mais moços do que eu. Notarão que a cada um dos senhores eu trato com todo o respeito que tenha cabimento para a idade que os senhores têm. Tenho certeza de que nunca faltei ao respeito a nenhum dos senhores. Pode ser até na hora de fazer uma correção, ou indicar uma coisa que não está bem, o respeito está presente.

Depois, essa boa vontade, por onde se tem uma boa intenção. Quer dizer, se ele estiver bem intencionado também, desejo tocar as nossas relações de um modo cordial, agradável, afável. Porque eu desejo o bem dele, e ele deve desejar o meu bem. Portanto, vamos conviver de um modo agradável. Isso se exprime em atitudes que – forçando um pouco a palavra – eu estou aqui chamando de hieráticas. O contrário do hierático seria o debandado, as familiaridades excessivas, e tudo o mais que se queira.

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Nota: Clique aqui para a “Ladainha da Humildade”, composta pelo Cardeal Merry del Val.

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