Auditório da Santa Sabedoria, 11 de outubro de 1969, Santo do Dia
A D V E R T Ê N C I A
Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.
Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
Eu tinha feito (o propósito) de fazer um Santo do Dia hoje a respeito de assuntos de Carlos Magno. É um grande assunto, já está preparado, eu vou procurar resumir o mais possível para não prejudicar muito o horário de deitar dos senhores.
Os senhores estão vendo aqui duas figuras de Carlos Magno. Uma é Carlos Magno com os trajes de coroação, pintado se não me engano por Dürer. E aqui é uma estátua de Carlos Magno em Metz ou em Aachen, não me lembro bem, que comemora a grande figura do imperador.
O Louis Veuillot, no “Les parfums de Rome” [Os perfumes de Roma], tem o seguinte comentário sobre Carlos Magno:
“Numa das câmaras do Vaticano eu vi a figura de Carlos Magno. Carlos Magnum, Romanae Ecclesiae ensis clypeusque – Carlos Magno, espada e escudo da Igreja Romana, da Igreja de Jesus Cristo.
“Eu posso dizer que essa inscrição à têmpera, feita num recanto do Vaticano, me fez compreender o que é a glória”.
Aqui é o estilo do Veuillot, quer dizer, era uma inscrição à têmpera, de segunda classe como pintura. Num recanto do Vaticano, mas o fato da figura de estar num recanto do Vaticano o fez compreender o que é a glória.
“As relações de Carlos Magno com o Papa Adriano são um episódio encantador da História. Elas dão bem a estatura de Carlos Magno porque se vê ali a sua humildade, um herói, um conquistador, um imperador humilde, eis o que escapa a todas as proporções humanas”.
Não sei se os Srs. entendem bem o pensamento: pode-se ser herói, pode-se ser um conquistador, isso está na proporção do grande homem. Ser um conquistador humilde e um herói humilde, isso escapa à proporção humana. A humildade acrescenta uma tal grandeza às grandezas anteriores, que a isto o homem não chega. É preciso a graça para isto. O simples esforço humano não chega para isso
“Carlos Magno, chegando às portas de Roma, depois de ter reposto São Pedro de posse de todo o seu território — São Pedro aqui é o Papa, sucessor de São Pedro — pediu ao Papa permissão para entrar na cidade. A primeira laje de pórfiro que se encontra na nave de São Pedro é aquela sobre a qual Carlos Magno se ajoelhou na entrada de São João de Latrão”.
Os senhores entendem aí a relação com o pensamento inicial dele. O fato histórico é esse: o imperador tinha restituído à cidade de Roma ao Papa, o Papa era o rei de Roma naquele tempo, mas o Papa tinha sido privado do reinado de Roma pelos inimigos da Igreja.
Carlos Magno derrota os inimigos da Igreja, fora dos muros de Roma. Depois de os ter derrotado, ele, em vez de entrar — porque todo conquistador naturalmente entra na cidade que ele tomou — em vez de entrar, ele manda humildemente pedir licença ao Papa para entrar na cidade. E o Papa dá licença, e ele então vai à catedral do Papa que é a Igreja de São João de Latrão.
A primeira coisa que ele faz no sólio de São João de Latrão é ajoelhar-se na primeira laje da igreja, logo na entrada, e oscular o chão sagrado da Igreja. Então essa laje foi conservada. Os senhores compreendem quanta humildade há neste gesto de um conquistador valoroso. E isto é que o Louis Veuillot diz muito bem que passa de longe a grandeza humana.
Agora, é interessante os senhores olharem um pouco a figura. Os senhores veem um homem que é um pouco ainda um bárbaro, hercúleo, a barba está longe de ser penteada e frisada como a de seu remoto sucessor, vamos dizer Luís XIII, por exemplo. Os senhores o veem como um patriarca, um homem senhor de si, dominador de todo o Ocidente. Este homem, nesta plenitude de poder, trata o Papa que, do ponto de vista material era nada para ele, trata o Papa com essa plenitude de respeito.
Por quê? Exatamente a humildade. O que é que tem aí de humildade? A humildade é a virtude pela qual cada um deve estar no papel que lhe compete, e em face do Papa que é o Vigário de Jesus Cristo na terra, pelo menos em situações normais, a posição é essa da veneração que Carlos Magno tomou. Aqui está a explicação da atitude de Carlos Magno, e do comentário do Louis Veuillot.
“Então o Papa Santo Adriano — porque Carlos Magno estava tratando com um Papa santo — o Papa Santo Adriano disse: ao excelentíssimo senhor nosso filho e compadre espiritual Carlos, rei dos francos e dos lombardos, patrício dos romanos, Adriano Papa”…
É uma carta do Papa para ele. Os Srs. vejam quanta beleza há neste tratamento.
“Ao muito excelente senhor…”
Não porque fosse senhor do Papa, ele é senhor dos outros, porque ninguém é senhor do Papa, o Papa só tem um Senhor e é o Senhor de todos os senhores, mais ninguém é senhor do Papa. Mas como ele era senhor de outros o Papa o trata de “senhor”.
“Ao muito excelente senhor, nosso filho e compadre espiritual…”
Os senhores veem que lindo jogo de situações, e como isto é dito com naturalidade.
“Carlos, rei dos francos e dos lombardos, patrício dos romanos, Adriano, Papa”.
O que era patrício dos romanos? Era um título de nobreza em Roma que o próprio Papa tinha dado a ele.
(Aparte: inaudível)
Eu tenho que é junto com ele, pai espiritual, quer dizer é pai de toda a Cristandade. O Carlos Magno é pai dessa comunidade espiritual da Cristandade na ordem temporal. E o Papa é na ordem espiritual. Tenho a impressão que é isso.
“Abençoamos a Deus quando deu-vos as vitórias que Ele vos fez ganhar, e como dos povos inimigos quantos foram por vós conduzidos à verdadeira fé da igreja católica”.
Carlos Magno era um grande guerreiro missionário. Ele entendia o seguinte: muito pouco ecumênico, ele achava que ninguém tem direito de tolher a liberdade dos missionários de Cristo, e que portanto se algum povo bárbaro proibia os missionários de Cristo de agirem, de pregarem a palavra, ele advertia, e se o povo bárbaro se obstinava, ele descia a espada. E ganhou com isso inúmeras batalhas.
Nem sempre ele foi tão prudente. Uma ocasião ele prendeu um número incalculável de germanos e mandou batizar tudo no Reno, compulsoriamente. E quem não quisesse, morria. Ele mandava matar. Mas recebeu uma advertência da Santa Sé, que não estava direito, porque não se tem o direito de obrigar uma pessoa a crer. É um ato pessoal que pode resultar de um bom argumento, pode resultar de muita oração, pode resultar de um belo exemplo, mas não pode resultar de uma coerção, de uma obrigação, evidentemente.
“Pela proteção de Deus e intervenção de apóstolos São Pedro e São Paulo, eis as cabeças curvadas diante de vós que sois o chefe. É a inspiração divina e vosso poder (que) conduzem toda a nação saxônia às fontes sagradas do batismo”.
Porque ele, por meios violentos levou toda a nação saxônia às fontes sagradas do batismo. Os processos dele eram processos muito experimentais, não é? Os saxões tinham – aliás, olhem para o jeitão dele enquanto eu conto, e os Srs. veem que é o que ele fez. Embora não sejam quadros copiados, ele não pousou, são obras de arte que datam séculos depois dele, essas obras, entretanto exprimem dele a ideia que se pode fazer dele através da história e da legenda.
Os saxões – que era uma parte do povo germânico, do povo alemão – acreditavam que havia um carvalho chamado Irminsul enorme, que deitava suas raízes até o centro da terra. E que esse carvalho era de efeito divino. No dia em que o carvalho fosse abatido o mundo se desagregava.
Então ele não teve dúvida. Mandou formar um quadrilátero com tropa, serrar o carvalho e agora: abateu ou não abateu? Então o deus de vocês é bobagem… Não é muito ecumênico, mas é concludente, não é muito ecumênico? Acreditam num ídolo? Está bom, joga isto no chão e agora: onde está o ídolo? Simplifica a tarefa, não é?
“O imperador Carlos Magno tinha mandado a sua corte o bom duque Guilherme, de Aquitânia, neto de Carlos Martel, um de seus valentes e de seus pares que em seu império eram quase reis. Guilherme em vinte batalhas tinha esmagado os sarracenos. Rico, magnífico, ornado de boa glória, ele reinava em Toulouse honrado pelos povos, estimado pelo imperador e amado por Deus”.
Os Srs. querem uma situação mais invejavelmente bem descrita? E depois vem de ponto em ponto. Ele reinava em Toulouse, que sempre foi uma grande cidade francesa, numa zona rica e importante. Ele reinava em Toulouse em que circunstâncias? Honrado pelos povos – vejam bem, não é essa popularidade populacheira de político que o povo debocha do Jânio Quadros, que tem como símbolo é a vassoura! Não é isso não. É honrado, tratado com veneração, com respeito pelo povo.
Bem, então, “…honrado pelos povos, dileto do imperador”: quer dizer, o imperador o queria bem, e “…amado por Deus”. Está acabado, são três pontos: o povo, o imperador e Deus: está completo, não tem mais nada que acrescentar, a pintura está perfeita!
“À sua chegada, o imperador o cumulou de carinhos e de louvores, e como na casa de Carlos Magno todo mundo se amava, todo mundo sentiu muita alegria com a chegada deste parente. Entretanto, o Duque Guilherme tinha uma angústia em seu coração: um dia, trêmulo, ele disse ao imperador: Senhor Carlos, meu pai…”
Notem que ele era meio sobrinho de Carlos Magno. “Senhor Carlos, meu pai” é muito bonito ver esta espécie de simplicidade com grandeza, porque o título “Senhor” quando dirigido a Carlos Magno toma uma elevação extraordinária, não é verdade? É diferente de “senhor fulano”, não é? É o “Senhor Carlos, o senhor dos senhores, o senhor por excelência”.
Mas, de outro lado, como ele diz aqui afetuosamente: “Senhor Carlos, meu pai, ouvi vosso soldado…”
Há coisa mais bonita, na hora de fazer uma súplica, dizer que “luta por vós, que é vosso, até na hora da morte? Eu vos trago aqui os mil perigos que eu sofri, nesse discurso eu os torno presentes a vós, ouvi-me em nome das dores que por vós eu sofri”.
Como isso é bonito! Como isso é equilibrado, não é?
Bem, então disse:
“Ouvi vosso soldado. Vós sabeis, senhor, quanto vos amo e quanto eu vos servi. Vós nos sois mais caro do que a vida e do que a luz…”
Por que é mais bonito dizer “vós me sois mais caro do que a vida e do que a luz”, do que dizer só “do que a vida”? A vida não traz consigo a luz? Por que fica mais bonito dizer mais caro do que a vida e do que a luz? É que dá ideia de uma vida luminosa, de uma vida cheia da claridade da virtude, de um valor espiritual excepcional. Então: vós me fez mais caro do que a vida e do que a luz.
“Eu estava a vosso lado nas batalhas e por toda a parte eu corri perigo por vossa pessoa, eu vos fiz um anteparo com o meu próprio corpo…”
É o caso [de dizer] que é um grande advogado esse homem, e eloquente. Ele sabia dizer a coisa!
“Mas agora os tempos das batalhas passaram e eu peço perdão e peço permissão para daqui por diante servir meu Rei eterno. Portanto, Senhor, meu amigo e meu pai, deixai-me ir porque desde há muito tempo meu voto é de deixar esse mundo e ir me trancar no mosteiro que eu construí no deserto por amor de vós”.
Quer dizer, ele construiu esse mosteiro com certeza para rezarem por Carlos Magno etc. Então, depois de ele ter dedicado a vida a Carlos Magno, ele vai dedicá-la a Deus, no mosteiro que ele mandou construir por fidelidade ao imperador.
Os Srs. estão vendo que isto é repassado por uma elevação de sentimentos que não se diria que existe mais hoje, é uma coisa que se evaporou.
“O bom imperador, surpreso, moveu um pouco o corpo e ficou alguns instantes sem voz…”
É que ele perdia um de seus melhores generais…
“Mas enfim, dando um grande suspiro…”
Agora vem a réplica do imperador, a gente parece ver na réplica o tom de voz cheio dele, cheio de inflexões, assim como um órgão quando dá o seu tom grande. Vejam isso:
“Duque Guilherme…”
É uma beleza, o modo de entrar, não é? Depois de tanta solenidade, o seguinte:
“Duque Guilherme, vós me transpassais o coração…”
Não é bonito?
“Certamente se vós me tivésseis preferido a um rei ou um imperador qualquer, eu o tomaria como injúria contra mim e eu contra este imperador eu levantaria o universo porque me roubou o Duque Guilherme…”
Vejam que bonito modo de elogiar o Duque Guilherme. Valia uma guerra mundial o Duque Guilherme.
“Mas vos impedir de deixar o meu exército para se tornar soldado do Rei dos Anjos, isto eu não o posso…”
Vejam como é lembrado a propósito o “Rei dos Anjos”, porque é o exército de Deus. Como é que se pode proibir alguém de deixar de pertencer ao exército dos homens, para ir pertencer ao exército de Deus? Não é possível, isso ele não pode.
“Eu vos, permito, portanto que vades e não vos peço senão uma coisa: é que aceiteis algum presente para ter uma lembrança da minha amizade.
“Tendo dito essas palavras ele se jogou ao pescoço do Duque Guilherme e chorou amargamente”.
Os Srs. estão vendo como é bonito. Um homem que venceu povos, e que na hora de se separar de seu general, daquele que foi o escudo dele na guerra, que levou o brado dele para frente, que venceu povos inteiros, aí ele chora. Não é mesmo a hora de chorar?…
“E o Duque Guilherme também se derreteu em lágrimas vendo chorar o seu próprio rei…”
É tão varonil, são de tal maneira lágrimas de homem, é tão grande isto, e tão sem megalice… porque normalmente o mega [orgulhoso], vendo que o imperador estava chorando por sua causa, estaria numa alegria tal que não chorava. Começava a olhar para a sala: “estão vendo que ele está chorando por mim? Que velhinho bom…” Quer dizer, eu sou bom, está compreendendo? O imperador reconhece; os Srs. não quiseram reconhecer até agora, olhem aí!… O grande Carlos Magno está me dando valor… Ele era incapaz de chorar nessa hora de megalice subindo verticalmente não sei até que delírio, não é?
“Mas reunindo todas as suas forças, ele disse ao imperador: que vossa alteza…”
Naquele tempo não se chamavam os reis de “alteza” e o rei de “majestade” porque o título de majestade era reservado somente a Deus.
“Que vossa Alteza não chore mais como também seu servidor. Se eu tivesse previsto essas lágrimas, eu confesso minha falta, eu teria fugido sem nem sequer saudar a vós”.
Vejam que beleza! Não é dizer que por vosso pranto eu não teria de servir a Deus, não. Deus me chama, quer sofrais, quer não sofrais, eu pertenço a Deus, mas eu teria evitado a cena que emociona a vossa nobre ancianidade. Eu teria fugido…
“Agora, pois, Senhor, para o meu maior bem e o vosso, começai vós mesmo. Despachai-me para junto do nosso Amo comum, não com tristeza mais com alegria cristã”.
Quer dizer, vamos nós nos alegrar agora, não é hora de entristecer, mandai-me agora junto Àquele que é tanto Amo seu quanto meu.
“Quanto aos tesouros que vós me ofereceis, eu agradeço, mas quero a pobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo, e se deixo tudo quanto é meu, como é que eu poderia tomar aquilo que é vosso? Entretanto se vos agrada absolutamente de oferecer a Deus alguma coisa em minha pessoa, eu vos peço um pedaço do Santo Lenho que vós recebeste em Jerusalém.”
Quer dizer, ele pede apenas um pedaço do Santo Lenho, como prêmio de toda uma vida de trabalho etc., ele só quer levar – nada de tesouros – um pedaço do Santo Lenho.
“…que vós recebeste em Jerusalém, um dia quando eu estava perto de vós. E o bom imperador Carlos ainda que fosse extremamente afeito a essa insigne relíquia, a deu imediatamente ao bom Duque Guilherme…”
O bom imperador Carlos e o bom Duque Guilherme… que relações, que atmosfera, que situação!
“Como testemunho de perpétua amizade, mais durável do que a vida, mais forte do que a morte. E tendo ainda chorado nos braços um do outro…”
Os medievais choravam muito, ouviu? Quem pensa que medieval era um calvinista frio, daqueles que decepam um dedo: só isso? Mucio Cevola [Muzio Scevola, cônsul romano, 140 AC – 82 AC], idiota, [que perdeu uma batalha e colocou seu braço] dentro do braseiro… isso não é coragem! O medieval não era assim, ele chorava, enfrentava a dor, mas chorava, nada de calvinismo acretinado.
Bem, então eles separaram, combinados de só se reverem no Céu. Não há mais linguagem humana, é o Céu, é Deus etc.
“O Duque Guilherme, humilde monge, coberto apenas de um simples burel, montado sobre um burro, ia levar o alimento aos operários do mosteiro que se tinham espalhado pelo campo”.
Eram em geral, monges eles próprios.
“Ele é hoje São Guilherme de Gellone”.
São Guilherme de Gellone, rogai por nós, fazei-nos semelhante a vós.
Acho que não há outra coisa para dizer.