Carta de Dr. Plinio para Alceu Amoroso Lima, 2 de agosto de 1937

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[Os sublinhados e as palavras em maiúsculas são do original]

 

( I H S )
São Paulo, 2 de agosto de 1937
Meu querido Dr. Alceu
Pela carta que o Sr. escreveu ao José Pedro, soube que o Sr., aliás com razão, ainda estava à espera da carta que, em meu último telegrama, lhe prometi. Há muito tempo que venho procurando alguma meia hora vaga para lhe mandar dizer o que penso sobre a atitude do [Ministro da Justiça de Getúlio Vargas] José Carlos [Macedo Soares, que soltou 308 presos envolvidos na Intentona Comunista de 1935]. Infelizmente, porém, só agora encontrei o tempo necessário para o fazer às pressas.
Sua primeira carta seguiu com grande atraso, pois que, tendo sido escrita no dia 29, só foi posta no correio no dia 10. Só no dia 13 é que eu a recebi. Exatamente naquela semana, o “Legionário” estava sendo impresso com grande antecedência, para poder ser distribuído no dia 16, sexta-feira, na Concentração Mariana de São Carlos. Por essa razão, e porque eu fui forçado a ir a S. Carlos para fazer uma conferência em um tríduo preparatório da Concentração, que começou exatamente no dia 13, não pude tirar toda a matéria que se iria publicar contra o José Carlos. Na “crônica das ideias e dos fatos”, havia uma referência bastante forte, que foi possível suprimir. Mas, nos “7 Dias em Revista”, ainda saiu uma indireta que não houve tempo para cancelar. Por essa razão é que não atendi ao seu pedido tão completamente como desejaria.
Regressando de S. Carlos no dia 16 à noite, recebi sua segunda carta, em que seu pedido era reforçado por outro que, como o Sr. sabe, pela fonte de onde provinha, constituía para mim uma ordem muito prezada e muito acatada. Como o sr. pode ter visto, nos números subsequentes não houve mais uma única referência ao José Carlos. É certo que tratamos mais uma vez da questão da repressão ao comunismo. Mas fizemo-lo sem pôr o José Carlos em jogo, e sem atacar o Governo.
À vista desses fatos, o Sr. bem pode ajuizar de meu empenho muito sincero em manter entre os católicos a maior uniformidade de linha de conduta, principalmente em questões em que a Autoridade está diretamente empenhada. Pode estar certo de que o “Legionário”, até nova ordem, continuará a observar o silêncio que lhe foi prescrito, e que acatará com afeto e veneração todas as determinações que vierem de nosso Cardeal [do Rio de Janeiro, Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra].
Isto posto, quero dizer-lhe o que penso sobre o assunto. Não tenho com isto o desejo de mudar seu ponto de vista, mas principalmente de me explicar sobre os móveis que levaram o “Legionário” a tomar a atitude que tomou.
Na sua primeira carta, o Sr. faz diversas considerações sobre a conduta do José Carlos que, francamente, não me persuadiram. O José Carlos presume ser, e quer parecer um político católico, credor de todo o apoio e de toda a confiança do elemento católico. Melhor do que ninguém, o sr. sabe que ele reivindica até com acrimonia esse direito, quando se chega na “hora H” da distribuição de tarefas… e de honrarias. Uma vez que é essa a posição em que ele se quer colocar, sua linha de conduta deve ser julgada de acordo com o que a moral católica prescreve de mais rigoroso. Certa tolerância que seria cabível no julgamento do geral dos homens que fazem política e politiquice no Brasil, não seria admissível no tocante ao José Carlos. Se, examinada pelo prisma de uma rigorosa moral política, a conduta do José Carlos merece aprovação, é dever de um jornalista católico aplaudi-la calorosamente. Se merece censura, é dever imperioso denunciá-la. Porque não convém, e é até absolutamente indispensável que a confiança da opinião católica não fique depositada em quem não é digno dela. Qualquer ilusão, nesse terreno, pode ocasionar um fracasso irremediável da atuação dos católicos na esfera política, esfera essa na qual, hoje mais do que nunca, os interesses da Igreja estão em jogo.
Um jornal católico que quisesse fazer apenas a crítica de ideias e de acontecimentos, sem descer até a crítica dos homens, a meu ver, deixaria de cumprir integralmente sua missão. Principalmente no Brasil, a política não é só de ideias, mas é de homens. Enquanto não se descer à observação dos homens, de sua conduta, de sua coerência, do valor de seus princípios, nunca se terá chegado a fazer obra politicamente útil. Quem executa as ideias são os homens. Se não conhecermos a sinceridade ou a coerência com que nossos homens estão dispostos a pôr em prática nossas ideias, estamos condenados a caminhar no escuro, submetendo-nos invariavelmente aos logros e às decepções que a política reserva para os que não abrem os olhos.
Desse ponto de partida, para a atitude que o “Legionário” assumiu, só há um passo. Nossa campanha não foi apenas contra o governo, mas visou mostrar qual foi, no caso, a atitude do José Carlos. Com isto, aplicamos um princípio que julgamos fundamental em matéria de jornalismo. E pensamos não ter havido excesso algum nessa aplicação, uma vez que não pusemos em dúvida a honorabilidade do José Carlos, e nem entramos para o terreno da descompostura, mas restringimos nossas apreciações ao único ponto que interessava: sua fraqueza e sua incoerência.
Isto, quanto ao princípio em que nos estribamos, estará errado? Teremos chegado, no rigor de sua aplicação, até à falta de caridade? Eu gostaria muito que o Sr. me dissesse francamente se pensa assim. Em todo o caso, salvo argumento em contrário que me convença, estou certo de que agimos com a maior correção possível.
Dirá o José Carlos que, sendo ele católico, não deveria ser atacado por um jornal católico. Quando ele moveu contra mim, pelo “Diário Carioca” [fundado no Rio de Janeiro em 17 de julho de 1928 por José Eduardo Macedo Soares e publicado até dezembro de 1965, n.d.c.], a longa campanha de ridículo de que ele foi, evidentemente, o inspirador, não ocorreu a ele que, sendo eu católico, ele deveria agir de modo diverso. Mais ainda: muitas vezes, o “Diário Carioca” atacou minhas crenças de tal forma, que chegou quase à blasfêmia. Entretanto, eu não protestei, o José Carlos não achou que deveria moderar a campanha, ou ressalvar pelo menos a Religião. E, que eu saiba, não houve uma única pessoa que julgasse conveniente aconselhar ao José Carlos uma mudança de rumos, durante os longos meses que essa campanha durou. É possível que, no fim, tenha havido alguma intervenção. Em todo o caso, ela só se deu ao cabo de longos meses, durante os quais nem o Sr. nem o Sr. Cardeal foram uma só vez importunados por mim com o pedido de uma “démarche” qualquer junto ao José Carlos. Nem mesmo eu lhes fiz a este respeito a mais leve ou remota insinuação.
À vista de tudo isto, meu querido Dr. Alceu, parece-me que o José Carlos deveria ser o último homem do mundo, a pedir sua interferência para fazer cessar in ovo (pois que, já antes do dia 29 de julho ele falou com o Sr. contra o “Legionário”) a série de apreciações que nos julgamos obrigados a fazer a respeito dele.
Para que o Sr. veja até que ponto, entretanto, os motivos pessoais não influíram em minha atitude para com o José Carlos, vou contar-lhe em confiança, e na mais absoluta sinceridade que sou capaz, o seguinte: eu estava quase resolvido a trabalhar ou ao menos a votar no José Carlos, caso ele fosse designado candidato da maioria, exatamente por achar que ele seria incapaz (apesar de todos os pesares) de ter um gesto de fraqueza ou de tolerância para com o comunismo. Cheguei a comunicar essa tendência a diversos amigos, para levá-los a agirem assim. E só dei o assunto por encerrado, quando a candidatura do José Carlos se tornou inviável. Isto tudo, eu o fiz sem que, nem o Sr. Arcebispo nem o Sr. D. José [Gaspar de Affonseca e Silva, bispo auxiliar de São Paulo, n.d.c.] me falassem sequer uma única vez em sentido favorável ao José Carlos, e sem obedecer à influência de quem quer que seja. Por aí o sr. vê que não são alguns velhos ressentimentos, para os quais não há lugar no coração de um católico, que me moveram a pôr em foco o José Carlos na campanha que o “Legionário” promoveu.
Creia o sr. sinceramente, que perdoo de todo o coração tudo o que o José Carlos me fez de injusto, e que peço a Deus ardentemente que também me perdoe a mim o que eu, talvez, tenha feito de excessivamente severo a ele. Não tenho contra ele o menor ressentimento. Mas tudo isto não pode empanar a segurança de minhas convicções sobre as atitudes dele. E essas convicções são muitíssimo desfavoráveis ao José Carlos. E, francamente, os seus argumentos não foram capazes de demoverem dessa convicção.
Em primeiro lugar, não creio, e tenho inúmeras razões para não crer na sinceridade e veracidade das afirmações do José Carlos. E, por isto, recebo com todas as reservas a informação que o Sr. reproduzia em sua carta, e que provavelmente procede dele, informação essa segundo a qual o Governo estaria ameaçado de um golpe político ou talvez militar, se não suspendesse o estado de guerra. Desde que o Getúlio está à testa do Governo, esse pretexto tem sido fartamente explorado. Sempre que lhe convém fazer alguma coisa, põe ele na cena uma meia dúzia de “tenentes” com ou sem farda, que lhe servem de pretexto. Assim, ele finge ceder a violências fictícias e não se incompatibiliza com as pessoas que seu gesto deveria normalmente descontentar. No que diz respeito a S. Paulo, essa tática foi tão escandalosamente explorada, que não me causa nem sequer uma sombra de impressão o perigo com que o José Carlos, ou alguém por ele, terá procurado justificar-se perante o Sr. e o Sr. Cardeal. Se o Governo não tivesse querido suspender o estado de guerra, isso lhe teria sido possível.
Admitamos, porém, que a maioria parlamentar, que se manifestara precária por ocasião da eleição do Pedro Aleixo, ameaçasse divorciar-se do governo na questão do estado de guerra. Qual seria o remédio: suspender o estado de guerra, expondo o Brasil à propaganda comunista e ao destino do México? Ou escolher um candidato mais do agrado de todos, mesmo com sacrifício do favorito presidencial? Assim consolidada a maioria, não é certo que esta votaria a prorrogação do estado de guerra? E ainda que fosse necessário entrar em combinação com o próprio Armando Sales, não seria esse o dever do governo? Evidentemente, sim.
Mas o que fez o José Carlos? Em primeiro lugar, trata de se candidatar. Chora, depois, com lágrimas copiosas e importunas, seu insucesso, queixando-se, como eu sei seguramente, da ingratidão do Getúlio aos seus amigos, a todas as horas do dia. Depois, aceita de ser o Ministro da Justiça de um homem que, para fazer politiquice pessoal, vai consentir em suspender o estado de guerra e em expor o Brasil às garras dos comunistas.
E depois diz o José Carlos que, suspenso o estado de guerra, não tinha remédio senão soltar os comunistas! Que novidade! E por que o consentiu ele em ser o executor da política nefastíssima em virtude da qual o estado de guerra deve  ser suspenso?
Para lhe provar que a conduta do José Carlos foi incorreta, basta que o Sr. faça uma introspecção: no lugar dele, agiria o Sr. como ele agiu?
Examinemos, agora, o aspecto militar da questão. Teria havido uma pressão militar? Os militares não pediram o apressamento dos julgamentos. Não se opuseram à condenação de Prestes. Haveriam eles, depois disto, de impor a soltura de meia dúzia de civis, ou de militares pouco relacionados no Exército? É pouco provável. Em todo o caso, a proclamação do Ministro da Guerra, em que o José Carlos sofreu a censura do seu próprio colega, parece provar o contrário.
E o caso dos professores de Direito? Acha o sr. que o José Carlos ainda terá pretextos a alegar para evitar a reintegração do homem cuja culpabilidade o sr. está certíssimo, e sobre cujas convicções comunistas já falamos?
E os presos que embarcaram dando vivas à Rússia? Do Rio e da Bahia, as agências telegráficas noticiaram que os presos se proclamaram comunistas, pelos hinos que cantavam. Achará o José Carlos que essa gente não merece ser reconduzida ao xadrez? Francamente, não me posso persuadir disto.
Por essa torrente de argumentos que deixei escapar, e que são por demais longos e áridos, penso que o Sr. poderá avaliar até que ponto me pareceu conveniente atacar a linha de conduta do José Carlos.
Alguém poderá dizer que a violência ou ao menos a veemência nunca é um processo adequado para se persuadir uma pessoa. Que o José Carlos não alteraria sua conduta à vista de nossas críticas. E que, portanto, essas o irritaram e foram só contraproducentes.
Entretanto, repito mais uma vez que não quis persuadir o José Carlos, o que seria totalmente inútil porque eu o conheço bem, mas que tão somente quis informar bem a opinião católica.
Em uma conferência que o Sr. fez, o sr. citou minha afirmação de que a obediência só é legítima quando fazemos aquilo que nos ordenam nossos superiores, conquanto estejamos em desacordo. O sr. bem pode ver que pratiquei obediência legítima e da mais legítima. Porque, francamente, eu estou em desacordo com sua opinião.
Evidentemente, porém, acho que as medidas tomadas para que a prisão de Prestes fosse benigna e humana foram muito louváveis.
*    *    *
Envio-lhe um discurso proferido pelo Dr. Justino Maria Pinheiro, Juiz de Direito da Comarca de São Carlos, na Concentração Mariana daquela cidade. O Sr. D. Gastão [Liberal Pinto, bispo de São Carlos, n.d.c.] pede-lhe que a publique na “Ordem”.
Gostei imensamente de seu artigo sobre a tendência absorvente do espírito de partido. Interpreto-o como esclarecimento ao Plinio Salgado, bem como aos que procurar atrelar a Igreja ao carro do Armando ou do José Américo. Transcreverei no “Legionário” seu artigo na íntegra, isto é, sem mutilações que possam parecer enquadrá-lo exclusivamente dentro da atitude que o “Legionário” julgou dever assumir perante o Integralismo.
Aguardo com muito prazer sua visita a São Paulo. Combinaremos oportunamente a duração – que o Sr. sabe que desejamos longa – e o programa.
Desejando-lhe boa viagem, e recomendando-me aos seus, abraço-o cordialmente em Nossa Senhora.
Plinio
Nota [escrita à mão, sob a data, na primeira página]: Quanto à Liga, não recebi as instruções de que o Sr. me falou. Peço-lhe que m´as envie quanto antes, porque até mesmo para o “Legionário” poderão ser interessantes como auxílio para sua orientação.

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Nota: Clique aqui para consultar a vasta correspondência entre o Prof. Plinio e Alceu de Amoroso LIma (Tristão de Athayde), de 1930-1939.

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