( I H S )
São Paulo, 8 – VIII – 1938
Meu caro Dr. Alceu
Infelizmente, minha viagem forçada a Pirapora privou-me de abraçá-lo quando de sua rápida passagem por São Paulo. Consolo-me fazendo-o agora, e reservando a esperança de poder vê-lo pessoalmente em breve.
Minha viagem a Pirapora foi determinada pelo fato de se realizarem ali nos dias 4, 5, 6 e 7 de agosto os festejos em louvor do Senhor Bom Jesus, representado por uma velha e curiosa imagem encontrada em um rio próximo, em circunstâncias interessantes, e realmente muito dignas de nota. A grande massa de povo que, para ali, costuma afluir, faz súplicas para obter toda a sorte de graças, e, em reconhecimento pelos favores alcançados, deixa fotografias, muletas, objetos de cera etc., em uma sala especial, denominada “Casa dos Milagres”, como em Aparecida.
Com o correr do tempo, a devoção popular foi sofrendo sucessivas deformações, até degenerar em festas exclusivamente profanas, das quais a procissão com a imagem do Senhor Bom Jesus, e as Missas solenes rezadas diariamente não passavam de pretextos. Ultimamente, os negros mais baixos de todo o Estado [de São Paulo] afluíam para ali em grande número, realizando durante as noites inteiras diversos sambas. Quase todos estavam embriagados durante as danças, e muitos caíam de tão ébrios, durante a noite, pelas praças e ruas. A dança durava, como disse, noites a fio, às vezes debaixo da garoa gélida de agosto, seguindo-se daí doenças sem número, porque as negras se apresentavam em indumentária mais do que parcimoniosa. O número de mulheres perdidas da mais baixa classe de S. Paulo, que para ali afluía a fim de montar casas, era extraordinário, e calculava-se em 15 a 20 mil os forasteiros vindos de todos os lados e até de Minas Gerais.
Além da grande ofensa a Deus, que tais festas constituíam necessariamente, o Sr. pode imaginar o ótimo pretexto para a propaganda protestante, que elas forneciam.
O Sr. Arcebispo nomeou-me, então, tesoureiro de uma velhíssima e carunchadíssima confraria ali existente, o que me conferia poderes para pôr e dispor no lugar, onde quase tudo pertence ao Santuário. E lá fui eu, com soldados do Exército e da Força Pública, pôr tudo em ordem. Francamente, nunca imaginei em minha vida que o apostolado me levasse a fazer uma coisa deste estilo, o papel de uma espécie de delegado para pôr em ordem uma […gente?] desenfreada, e no entanto remida por Nosso Senhor.
Seria longo narrar tudo quanto vi de pitoresco e de interessante, e quantas observações sobre a psicologia popular se podem fazer nessas ocasiões. O próprio samba, cuja realização impedi totalmente, deveria ser interessante sob muitos pontos de vista.
Graças a Deus, tudo correu bem. Impedi todas as imoralidades, e coloquei tudo nos “eixos”, como era desejo do Sr. Arcebispo [de São Paulo]. E, com isto, um velhíssimo abuso fica definitivamente eliminado.
Sei que o Mario de Andrade e a gente da Sociedade de Etnografia e Folclore que aqui existe, me julgará um perfeito cretino porque eliminei o samba. Resta, porém, saber se aqueles pobres negros foram criados para diverti-los ou para louvar e servir a Deus. Mas esta é uma linguagem que eles são incapazes de compreender.
Sou forçado a interromper a carta, como de costume, para ir trabalhar. Abraço-o saudosamente, e me recomendo aos seus.
Plinio
Nota: Clique aqui para consultar a vasta correspondência entre o Prof. Plinio e Alceu de Amoroso LIma (Tristão de Athayde), de 1930-1939.