[Os sublinhados e as palavras em maiúsculas são do original]
( I H S )
São Paulo, 9 de julho de 1936
Meu caro Dr. Alceu
Foi-me impossível vê-lo antes de partir, e tive uma contrariedade ao saber que o Sr. tomou o trabalho de ir à Estação Pedro II, para me acompanhar, às oito horas.
Por não ter encontrado passagens para o trem das oito, segui pelo Cruzeiro. E, com isto, perdi a oportunidade de abraçá-lo mais uma vez.
Senti muito não ter estado com os seus, em casa da Sra. sua Mãe, onde me é dispensado sempre um acolhimento tão agradável. Recomendo-me a todos, e manifesto o meu pesar por não ter podido cumprimentá-los.
Quanto ao Sr., também lhe agradeço as suas atenções e visitas, que o Sr. sabe que me são muito caras.
Há dois assuntos de que eu lhe deveria ter falado no Rio, e que venho tratar agora por carta.
Um deles, o mais importante, se relaciona com os recentes escândalos de anulações de casamentos.
Li nos jornais que está sendo realizado um Congresso de Direito Judiciário que, ao menos em S. Paulo, está tendo muito eco.
Uma vez que o Congresso está cogitando da reforma de nosso Direito Processual, ele poderia solicitar dos poderes públicos a alteração de uma das disposições mais tipicamente “século XIX” de nossa legislação.
Como o Sr. sabe, há curadores especiais, nomeados pelo Estado com gorda remuneração e funções permanentes, para zelar pelos bens de órfãos, de ausentes etc. Como se trata de dinheiro, a lei foi previdente, minuciosa e eficiente e, tanto quanto possível, os interesses financeiros das pessoas tuteladas pelo Estado estão amparados.
Com interesses morais, porém, o caso foi outro. Há também, em todos os processos de anulação de casamento, um curador para defender o vínculo matrimonial em nome do Estado. Mas esse curador não é um funcionário efetivo. É nomeado pelo juiz, ad hoc, e percebe uma pequena remuneração.
O resultado disto é que, enquanto os curadores do órfão são funcionários dotados de longo tirocínio, os curadores do vínculo são pequenos advogados à cata de biscates, sem grande experiência nem competência.
Ainda há pouco, deu-se em S. Paulo um fato que me impressionou. Tenho um jovem amigo, estreante na advocacia. Como é parente de um Desembargador da Corte de Apelação, pediu-lhe serviço. E o Desembargador, pessoa inteiramente “correta” e “respeitável”, resolveu nomear este marinheiro de primeiríssima água para exercer as funções de curador em um espinhosíssimo processo de anulação de um casal da nossa sociedade! É com gente assim que se defende o casamento! E isto em São Paulo! Imagine agora por todos os outros lugares!
O remédio seria que o Congresso Judiciário pedisse a criação de cargos de curadores do vínculo, equiparados em tudo (remuneração, nomeação efetiva e permanente etc.) aos curadores de órfãos. Essa nomeação poderia ser feita por escolha do governo sobre uma lista de 5 ou 6 nomes indicados pelas Ordens dos Advogados. Isto moralizaria as nomeações.
Argumentar-se-á talvez contra esta medida com a própria Constituição. Se ela estabelece a apelação ex ofício, pouco mal pode fazer a incompetência dos curadores.
Não é tal. O juiz ou a Corte de Apelação só podem julgar à vista do alegado e dito pelas partes ou pelas testemunhas. Em matéria espinhosa como seja esta, um interrogatório mal feito às testemunhas, peritos mal escolhidos, argumentação pouco inteligente, qualquer lapso enfim do curador pode acarretar uma situação tal que a ação de qualquer juiz, mesmo quando bem intencionado, ficaria tolhida.
A apelação ex oficio não basta por si só. Ninguém pretenderia que, por exemplo, as partes não precisam de advogado nos processos onde tal apelação se dá; porque não basta juiz para que se faça justiça, mas é também necessário o advogado. Ora, se assim é quanto a particulares, por que não será quanto ao Estado, de que o curador é um advogado?
Dir-se-á talvez que o assunto carece de importância e que, já que a Constituição estabelece a indissolubilidade do casamento, podemos dormir tranquilos.
A verdade é que as anulações continuam, e que, em S. Paulo, o divórcio vai penetrando nos costumes, a despeito da lei. E, quando o costume tiver consagrado o divórcio, que força humana será capaz de impedir que ele venha a ser permitido pela lei?
Aliás, bastaria que uma única família se salvasse, para que todos os esforços estivessem recompensados.
Um Santo – parece-me que Santo Inácio de Loyola – dizia que daria por bem empregados todos os esforços de sua vida, se com eles obtivesse somente o seguinte: que uma mulher pública deixasse de pecar por uma só noite, ainda que recaísse depois em pecado durante sua vida inteira, e viesse a perder sua alma! Tão grande o mal que há no pecado.
Passemos a outro assunto.
Um “Centro de Estudos Beato Azevedo”, dos nossos seminaristas em Roma, escreveu ao “Legionário” pedindo dados estatísticos sobre o Brasil, para divulgação lá.
É um pedido que tenho o maior interesse em atender, não só por considerar quem o faz, mas em virtude dos favores que o “Legionário” lhes vai provavelmente dever.
Não poderia o Sr. falar ao Ministro do Exterior, para lhe entregar tais dados – sobre todos os nossos assuntos – e que o Sr. nos remeteria?
Tenho vivo empenho em obter tais dados, e remetê-los daqui, com um ofício do “Legionário”. O Ministro não precisa saber que eu estou nisto. O ofício poderia até ser subscrito pelo José Pedro.
Se possível, peço-lhe que me obtenha isto com certa urgência.
Não estive no Rio com três amigos a quem lhe peço que abrace por mim: o Wagner, o Barreto e o Sucupira.
Pedindo-lhe desculpas pela extensão desta carta, abraça-o saudosamente em Nossa Senhora
Plinio
N.B. Mande resposta registrada, porque o correio anda péssimo.
Nota: Clique aqui para consultar a vasta correspondência entre o Prof. Plinio e Alceu de Amoroso LIma (Tristão de Athayde), de 1930-1939.