Carta Pastoral Considerações a propósito da aplicação dos Documentos promulgados pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, 19 de março de 1966

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Da coletânea “Por um Cristianismo Autêntico” (Editora Vera Cruz, São Paulo, 1971, pág. 269-300)
Aspectos poucos estudados da crise religiosa contemporânea: heresias larvadas e difusas – sua relação com as correntes paracomunistas, como o esquerdismo democristão.

 

Índice
Apresentação
In memoriam
I – Finalidade do Concílio: renovação, adaptação e ecumenismo
Hierarquia dos fins. Primazia da renovação espiritual
Igreja militante
Atual estratégia do inimigo
A adaptação e o crescimento da Igreja
Renovação e crescimento
Os erros atuais. O relativismo
II – Dogmas, preceitos, costumes
Importância do ambiente
A heresia difusa
Convergência entre a heresia difusa e a mentalidade do homem atual
Neomodernismo
O papel dos modernistas na heresia difusa
O papel dos meios de comunicação social
III – “Salvo direito particular, mantenha-se o uso do latim nos ritos latinos”
Importância da parte disciplinar
O canto gregoriano
O canto religioso popular
Piedade e vida comunitária
Socialismo na Igreja
Vida comunitária e direção espiritual
Culto dos Santos, imagens e relíquias
Razão do culto dos Santos
IV – Pontos de doutrina definidos
Ecumenismo
Normas de ação
Conclusão
*     *     *
Padres da Diocese externaram o desejo de ter, por escrito, um comentário do Prelado diocesano sobre os Documentos da quarta e última fase do Concílio Ecumênico Vaticano II. Esperavam que o Bispo lhes enviasse uma Pastoral a respeito, como o fizera ao apresentar a Constituição da Sagrada Liturgia e o Decreto sobre os instrumentos de comunicação social, promulgados na segunda fase conciliar (1), e ao explanar, na Instrução Pastoral sobre a Igreja (2), a Constituição Dogmática “Lumen Gentium”, cuja discussão concluiu-se na terceira fase do grande Sínodo, e que trata do assunto central deste Concílio Ecumênico.
Acontece que, neste último período conciliar, foram promulgados nada menos que onze Documentos (3), cada um merecedor de estudo especial, e, no entanto, sintetizados todos na Constituição “Lumen Gentium”. Assim, de um lado, torna-se quase impossível tratar de todos eles em uma Carta Pastoral; de outra parte, os seus princípios gerais foram já expostos na Instrução Pastoral sobre a Igreja.
Não obstante, o término do Concílio nos convida a refletir sobre sua natureza e finalidade, pois será assim fácil compreender os Documentos promulgados, sem incidir em interpretações errôneas e perigosas. Pensamos que semelhante reflexão será de grande utilidade para a formação católica e para a eficácia de um apostolado de afervoramento cristão e de expansão do Reinado de Deus no mundo, obrigações que incumbem a todo fiel.
Enviamos, pois, esta Nossa palavra de orientação aos Nossos caríssimos Cooperadores e amados filhos. Cremos com ela atender à justa expectativa que Nos foi manifestada, e cumprir, outrossim, Nosso grave dever de Pai e Pastor das ovelhas que o Vigário de Cristo dignou-Se confiar à Nossa vigilância.
In memoriam
Antes, porém, de entrar no assunto, prestemos a homenagem sentida de Nossa saudade, porquanto, ainda desta vez ao voltarmos do Concílio, houve por bem a Divina Providência provar-Nos com seus desígnios misteriosos. Não encontramos mais entre nós Nosso caríssimo Padre Gabriel Wyn, dos Padres Redentoristas de Campos, a quem nossa cidade e nosso povo devem, além da magnífica igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e do espaçoso convento anexo, a direção prudente nos casos difíceis e a edificação de todas as horas.
Também abriu um vazio na vida católica de Campos a ausência da Revda. Irmã Marta Falabella, das Pequenas Irmãs da Divina Providência, e da Irmã Teresa Maritano, diretora do Ginásio e Escola Normal Nossa Senhora Auxiliadora de nossa cidade, ambas chamadas por Deus para o prêmio eterno. Irmã Marta tem no Céu a recompensa de seu zelo oculto, votado à obra catequética no bairro do Turf, e Irmã Teresa, além da construção da capela do colégio, que se tornou uma das maiores igrejas de Campos, leva no seu ativo das contas derradeiras a direção maternal dispensada às alunas das Irmãs.
Se lamentamos a perda desses entes com toda a verdade queridos, temos a certeza de que na Eternidade não esquecerão esta terra e esta gente que eles tanto amaram.
I
Finalidade do Concílio: renovação, adaptação e ecumenismo
Para compreender o Concílio Ecumênico Vaticano II, é preciso, antes de tudo, ter presente a razão por que foi ele convocado pelo Santo Padre João XXIII, de saudosa memória, e continuado pelo atual Papa, gloriosamente reinante, Paulo VI.
Segundo o pensamento de João XXIII, o Concílio não tinha por escopo fixar algum ponto controverso da doutrina católica. Sua razão de ser era outra. Sua missão era promover um afervoramento da vida cristã, mediante uma adesão mais plena e mais intensa à verdade revelada, esplendidamente exposta, sobretudo pelos Concílios de Trento e do Vaticano I. Em segundo lugar, deveria o Concílio empenhar-se por que essa doutrina, sem a menor mutilação, fosse estudada e explanada segundo as exigências de nossos tempos. Como fruto do esforço conciliar, esperava o Papa promover aquela unidade colimada por Deus Nosso Senhor, que deseja a salvação de todos os homens, mediante a adesão à verdade revelada.
Já na sua primeira Encíclica, fala João XXIII sobre a finalidade e as esperanças do Concílio. Exprime-se, no entanto, como aliás era de esperar, de modo mais explícito na Alocução com que inaugurou o grande Sínodo em 11 de outubro de 1962. Eis o tópico de sua oração referente mais diretamente ao escopo do Concílio: “O objeto essencial deste Concílio não é a discussão sobre este ou aquele artigo da doutrina fundamental da Igreja […]. De fato, para tais discussões, não havia mister um Concílio. Presentemente, o necessário é que toda a doutrina da Igreja, sem mutilação, transmitida com aquela exatidão que aparece esplendidamente sobretudo nos conceitos e na exposição com que a redigiram os Concílios de Trento e do Vaticano I, seja, nos nossos tempos, por todos aceita com adesão nova, calma e serena; é necessário que, como almejam ardentemente todos os sinceros fautores do Cristianismo católico e apostólico, a mesma doutrina seja conhecida mais ampla e mais profundamente, de maneira a formar as almas, impregnando-as plenamente; é preciso que esta doutrina, certa e inelutável, à qual se deve obsequiosa obediência, seja investigada e exposta do modo que nossos tempos exigem […]. Sem o auxílio da doutrina revelada, na sua integridade, não podem os homens realizar uma firme e perfeita união das almas, união à qual está ligada a paz verdadeira e a salvação eterna” (AAS 54, pp. 791-793).
Enfim, a Constituição sobre a Liturgia, primeiro Documento conciliar promulgado, no seu parágrafo inicial recorda a pluriforme meta do Sagrado Sínodo: afervoramento da vida cristã entre os fiéis; melhor adaptação às necessidades de nossa época, das instituições passíveis de mudança; fomento de tudo quanto possa contribuir para a união de todos os cristãos; revigoramento de tudo quanto possa conduzir todos os homens ao seio da Igreja (cf. AAS 56, p. 97).
Hierarquia dos fins. Primazia da renovação espiritual
Entre os fins propostos ao Concílio Ecumênico Vaticano II, há uma hierarquia. João XXIII enunciou-o claramente desde sua primeira Encíclica, “Ad Petri Cathedram” (AAS 51, p. 511). O fim primordial, base e fundamento das demais, é a renovação íntima do fiel, segundo o espírito e o exemplo de Jesus Cristo. De fato, qualquer adaptação da Igreja aos tempos modernos só pode ser concebida, e frutuosamente realizada, se proceder de uma renovação espiritual, segundo os moldes fixados pelo Divino Mestre. Qualquer outra adaptação não terá o cunho da autenticidade cristã.
Pôde, por isso, Paulo VI declarar que a renovação da vida individual, doméstica e social constituiu o “único escopo do Concílio” (Motu próprio “Mirificus Eventus” – ed. Typ. Vat., 1965, p. 3); e essa renovação, ele a entende como uma mudança íntima, mediante a virtude da penitência, a frequência dos Sacramentos, o exercício das demais virtudes cristãs, graças ao influxo sobrenatural haurido no Sacrifício e na Mesa eucarísticos, a vontade firme de imitar a Jesus Cristo crucificado, e o zelo pela dilatação do Reino de Deus (ib., pp. 4-5).
Igreja militante
Não obstante, a meta precípua do Concílio, e fundamento de qualquer adaptação autêntica, vai sendo relegada ao olvido. Acentua-se mais o “aggiornamento”, a adaptação aos tempos atuais, e o ecumenismo, o empenho pela união de todos os que se gloriam do nome cristão.
Em semelhante fato, percebemos a presença do inimigo de Jesus Cristo, da Igreja, das almas, o demônio que ronda à procura de quem devorar (cf. 1 Ped. 5, 8) e anda pelo mundo para perder as almas (cf. oração a São Miguel ordenada por Leão XIII para depois das Missas rezadas).
A ação do príncipe deste mundo (cf. Jo. 14, 30), caríssimos filhos, não pensemos se tenha retraído em face da realização do concílio Ecumênico. Antes, pelo contrário. Vendo a Igreja que se arregimenta novamente, e se lança à luta, com maior ardor, na realização da vontade de seu Divino Fundador, revigora ele também suas hostes, torna-se mais perspicaz, mais astuto, redobra seus ardilosos manejos para impedir o triunfo dAquele que veio à terra para vencê-lo (cf. Jo. 16, 33).
Infelizmente, um dos grandes perigos que ameaçam a salvação das almas e a paz no mundo é o empalidecimento da fé na existência do demônio, ou a negação, pura e simples, de que haja anjos maus. Podemos considerar como grande vitória de Lúcifer o ter conseguido que a sociedade atual o ignore: os fiéis por tibieza e apego às comodidades da vida, os demais por se deixarem empolgar por uma concepção materialista da existência. Em tais condições, tem o inimigo do gênero humano uma liberdade de ação desconhecida nos tempos passados, de fé viva e ardente. Não sem motivo, João XXIII, entre os artigos do Sínodo Romano, consignou um (art. 237) que recomenda tenham os fiéis presente que o demônio, príncipe deste mundo, está continuamente agindo no sentido de perder as almas, e de estorvar a dilatação do Reinado de Jesus Cristo, já que de todo não pode impedi-lo.
Atual estratégia do inimigo
Estamos, portanto, empenhados numa luta desigual que, com a realização do Concílio Vaticano II, passou a ser ainda mais árdua. Com efeito, nesta batalha, para vencer, é preciso não perder de vista os ardis com que age o inimigo. À semelhança das quintas-colunas, é no interior que ele procura minar a resistência da Igreja. No caso atual, intenta fomentar largamente o programa traçado pelo Concílio, esvaziando-lhe, porém, o conteúdo. É o que ele faz, enaltecendo uma adaptação dos fiéis aos tempos presentes, desligada de sua imprescindível base, a renovação interna da vida cristã, e empenhando-se por que a Igreja se ajuste inteiramente ao modo de pensar e ser do mundo de hoje.
A advertência é do Santo Padre gloriosamente reinante. De fato, Paulo VI, na Alocução de 18 de novembro do ano findo, pronunciada em sessão pública do Concílio, observou que a adaptação aos nossos tempos, tão desejada por João XXIII, e meta conciliar, está sendo tomada num sentido que importaria na negação da obra de Jesus Cristo. Eis suas palavras: “É este o tempo da verdadeira adaptação, preconizada por Nosso Predecessor, de veneranda memória, João XXIII, que a esta palavra não queria certamente atribuir o significado que alguns pretendem dar-lhe, como se fosse lícito considerar de acordo com os princípios do “relativismo”, e segundo a mente profana, tudo na Igreja de Deus: dogmas, leis, estruturas, tradições. Pelo contrário, com seu engenho agudo e firme, tinha ele [João XXIII] o sentido da estabilidade doutrinária e estrutural da Igreja, de tal forma que fazia dessa estabilidade o fundamento de seu pensamento e de sua ação” (“Osservatore Romano”, edição de 19 de novembro de 1965, p. 1, col. 7).
O trecho citado mostra como o Papa está preocupado com o esvaziamento da meta conciliar. E notemos, caríssimos filhos, que o Santo Padre não fala na possibilidade de uma falsa compreensão do tão almejado “aggiornamento”; mas chama a atenção sobre a existência de uma falsa interpretação do Concílio, como se a Igreja tivesse renunciado à imutabilidade de sua doutrina, de sua estrutura fundamental, do valor salvífico de suas tradições, para se lançar no mar revolto da evolução que desvaira os homens de hoje, e lhes faz crer que nada, absolutamente nada, há de perene e eterno que se imponha ao espírito humano.
A adaptação e o crescimento da Igreja
A adaptação aos nossos tempos indica certamente uma novidade na maneira de agir da Igreja, um crescimento do Corpo Místico de Cristo; não, porém, uma renúncia ao passado, ou uma mudança radical. A Igreja, de fato, é um organismo vivo, cuja alma é o Espírito Santo. Ela cresce como todo organismo vivo. Mas não muda. É como o ser animado, que se enriquece com os anos porque sua natureza se desdobra em novas manifestações de vida, conservado, porém, sempre a mesma natureza, a mesma essência. Assim, a doutrina e os preceitos confiados por Jesus Cristo à Igreja, e, como decorrência deles, a parte fundamental de seu modo de ser, consignado nas suas tradições. Podem, doutrina, preceitos, tradições, usos, no decurso do tempo, ostentar aspectos antes desconhecidos. Esses aspectos, no entanto, não podem, nem mesmo implicitamente, negar a doutrina ou contradizer a moral que constituem o Depósito sagrado entregue à guarda vigilante e infalível da Igreja. Mais. Julgar que possa haver uma doutrina moderna, catolicamente autêntica, que não floresça da tradição, como os ramos surgem do tronco, é ter da Igreja uma noção falsa, e rebaixar as grandezas dos mistérios de Deus às misérias das flutuações humanas.
A doutrina do crescimento orgânico da Igreja faz parte da tradição católica. Foi ela admiravelmente exposta por São Vicente de Lerins, no século V, no seu “Commonitorium” (n.° 28), e a expressão do Lerinense se tornou clássica. Repetida em todos os tratados sobre a Igreja, foi consagrada no Concílio Ecumênico Vaticano I (ses. III, cap. 4). Paulo VI, como não poderia deixar de ser, mantém-se fiel à mesma tradição. Diríamos até que o atual Pontífice se mostra muito preocupado por que ela se conserva intacta no mundo conturbado de hoje. O Papa do diálogo com toda sorte de pessoas, para lucrar todos a Cristo (cf. 1 Cor. 9, 19), teme que semelhante atitude apostólica venha a ser mal compreendida. Assim, na sua primeira Encíclica “Ecclesiam Suam”, especialmente na segunda parte, que trata da renovação da Igreja, retorna ele várias vezes sobre este ponto: a adaptação da Igreja ao mundo de hoje deve fazer-se não por uma acomodação ao modo de ser, agir e pensar hodiernos, mas por uma fidelidade maior à austeridade cristã, pregada por Jesus Cristo. Só a imitação fiel do Divino Salvador poderá tornar o cristão capaz de assimilar o que de bom se possa encontrar no mundo atual (cf. AAS 56, p. 626 ss.).
Idêntica preocupação de aliar a adaptação da Igreja ao mundo hodierno à renovação interior, pela assimilação dos exemplos de Jesus Cristo, Paulo VI a exprimiu na Alocução de 18 de novembro que acima citamos. Nela diz o Papa como entende o “aggiornamento”: “Nós pensamos – assim o Santo Padre – que a nova psicologia da Igreja deve desenvolver-se nesta linha: Clero e fiéis encontrarão magnífico trabalho espiritual a que se entregue para a renovação da vida e da ação, segundo Cristo Senhor Nosso. E para a realização desse trabalho, convidamos os Nossos Irmãos e os Nossos filhos: aqueles que amam a Cristo e à Igreja, para que, em união íntima conosco, façam profissão da verdade, segundo a doutrina que Jesus Cristo e os Apóstolos nos transmitiram. Acrescentem a essa profissão o zelo pela disciplina eclesiástica e pela união profunda e cordial que nos confirme como membros do Corpo Místico de Cristo” (“Oss. Rom.” Cit., p. 2, col. 1).
Renovação e crescimento
Com a renovação profunda da vida cristã, alia-se frutuosamente o esforço por assimilar, na tradição católica, o que de bom haja no modo de ser do homem de hoje. Foi assim, assimilando o que era possível de integrar-se na vida cristã, que a Igreja agiu ao evangelizar os povos bárbaros, e, mais recentemente, as nações ainda pagãs. É assim que Ela ostenta sua inesgotável vitalidade, seu crescimento, sua capacidade de purificar e animar a sociedade em cujo seio se encontra.
Missão que não é fácil, pois a Igreja está envolvida, “como por ondas de um mar”, pelas transformações contínuas que afetam os pensamentos e o íntimo das almas, e lhe criam uma ameaça capaz de pôr em perigo a solidez da sua própria estrutura (cf. Enc. “Ecclesiam Suam” – AAS 56, p. 618). Esses mesmos fatos levam muita gente a abraçar opiniões as mais singulares, como se a Igreja devesse abandonar sua missão, e adotar modos de vida de todo novos e inesperados (cf. loc. Cit.). Deve, pois, o fiel premunir-se contra semelhante tentação, empenhando-se quotidianamente por uma fidelidade sempre maior à doutrina, ao espírito e aos exemplos do Divino Salvador, mantendo viva no coração a exortação de São Paulo: “Não vos conformeis com este mundo, mas reformai-vos pela renovação do vosso espírito, para que saibais aquilatar qual a vontade de Deus, o que é bom, o que Lhe agrada e o que é perfeito” (Rom. 12, 21).
Não nos iludamos. São os santos que reformam o mundo. Condição indispensável para qualquer adaptação católica autêntica é a renovação, a reforma de vida, segundo o Divino Crucificado. Pregamos, dizia São Paulo, “Jesus Cristo crucificado, para os eleitos, quer sejam judeus, quer gregos [isto é, de qualquer nação ou categoria social], poder e sabedoria de Deus” (1 Cor. 1, 23-24). Para o indivíduo, como para a sociedade.
Tendes, portanto, caríssimos filhos, na ordem prática das coisas, como fazer para vos tornardes aptos à realização dos fins colimados pelo Concílio Vaticano II. Trata-se de uma empresa árdua, como podeis ver pelas advertências do Santo Padre e do Apóstolo, que acima recordamos. Aliás, já o Divino Mestre nos premunia contra ilusões de uma salvação fácil, ao declarar que o “caminho da vida é apertado” e que “sua porta é estreita” e “poucos por ela entram” (Mat. 7, 14).
O Decreto “Apostolicam Actuositatem”, sobre o apostolado dos leigos, promulgado no Concílio, afirma que “em nossos tempos grassam gravíssimos erros que se empenham por destrur pela raiz a Religião, a ordem moral e a própria sociedade humana: hac nostra aetate (…) gravissimi grassantur errores qui religionem, ordinem moralem et ipsam societatem humanam evertere nituntur” (cap. II, n. 6, ad finem).
Os erros atuais. O relativismo
Quais são esses gravíssimos erros?
O Santo Padre, na Alocução de 18 de novembro, falou do “relativismo”. Já na Encíclica “Ecclesiam Suam” salientara o mesmo perigo a que estavam expostos os fiéis no mundo atual.
Podemos dizer que o relativismo é uma das características do modo de pensar do homem moderno, de maneira a constituir uma verdadeira tentação para os católicos entregues ao apostolado na sociedade de hoje.
De fato, um dos dogmas da ciência e da filosofia dominantes é a evolução. Tudo marcha para frente, sem meta determinada, porém, e sem continuidade com o passado; antes, firmando os novos passos sobre os destroços do que precedeu. Como diz o Papa, nada se admite de imutável e permanente.
II
Dogmas, preceitos, costumes
Objetos visados pelo ímpeto destruidor do relativismo são, nas palavras do Santo Padre, os dogmas, as leis e as tradições católicas. Podemos ver nessa enumeração, a indicação dos graus sucessivos de ação corrosiva a que a filosofia moderna submete o edifício secular da Igreja de Cristo.
A Igreja, com efeito, é um todo, uno e orgânico, cuja vida está inteiramente na dependência das verdades da Fé. São os dogmas que fundamentam a Moral, que constituem a razão de ser das leis, dos preceitos. Estes, sempre na mesma linha de coerência, dão origem aos hábitos, costumes, tradições. De sorte que toda a estrutura da formação católica envolve três elementos: a fé, ou seja, as verdades reveladas docilmente aceitas; os preceitos impostos por essas verdades, seriamente praticados; e os costumes, a maneira de ser e agir decorrente desses preceitos.
O Divino Mestre ilustrou esta doutrina, comparando o fiel ao homem que construiu sobre a rocha. Sua casa resistiu aos ventos e às tormentas porque estava firmada sobre a palavra de Deus vivida na existência quotidiana: “Aquele que ouve as minhas palavras e as põe em prática é semelhante a um homem prudente que edificou sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, vieram as enchentes, sopraram os ventos e investiram contra aquela casa; ela, porém, não caiu, porque estava edificada sobre a rocha” (Mat. 7, 24-25). Ao contrário, o homem que abandona os princípios, as ideias, as verdades da Fé, fica entregue ao sabor das paixões que, como areia movediça, causam a ruína do edifício sobre elas construído: “Mas, aquele que ouve as minhas palavras e não as põe em prática é semelhante a um homem insensato que construiu sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, vieram as enchentes, sopraram os ventos e investiram contra aquela casa, e ela caiu e grande foi a sua ruína” (Mat. 7, 26-27).
São os dogmas o fundamento da vida cristã. Esvaziado seu conteúdo pelo relativismo da filosofia moderna, desarticula-se a Moral. Não havendo solidez nos princípios, as normas do comportamento ficam sujeitas aos caprichos das paixões. E estas criam o ambiente à sua imagem e semelhança.
Importância do ambiente
Como há uma articulação lógica entre os elementos constitutivos da mentalidade católica, pode-se, através de um, conhecer os outros. Assim, a fé na Providencia gera o desapego dos bens terrenos; a maneira como se apresenta um fiel manifesta a convicção íntima de sua dignidade de filho de Deus ; a condescendência maior ou menor com os usos e costumes sensuais da sociedade de hoje denuncia o grau de apreço em que a pessoa tem a santa virtude ; como a flutuação, sem motivo e sem resistência, ao sabor da moda é sinal de carência de convicções, de falta de personalidade.
No conjunto dos elementos constitutivos da formação católica, não há dúvida de que o dogma tem primazia. Na ordem prática, no entanto, especialmente no apostolado, a maneira de ser, de apresentar-se, de agir tem singular importância.
A Escritura nos diz que «pelo semblante se reconhece um homem, pelo seu aspeto se reconhece um sábio. As vestes do carpo, o riso dos dentes e o modo de andar de um homem fazem-no conhecer » (Ecli. 19, 26-27) (4). Se é pelas vestes, pelo sorriso, pelo andar, que se conhece o homem sensato, é igualmente pelo seu modo de ser que ele irradiará em torno de si um ambiente sensato. A maneira habitual de ser vem a constituir o elemento mais eficaz para fazer triunfar urna idéia, para levá-la a impregnar uma sociedade, sem que esta as vezes o perceba.
São esses hábitos, ao lado de outras pequeninas coisas, que criam o ambiente propício para germinar a semente de urna doutrina. Há muitos anos atrás, houve em São Paulo uma exposição de arte moderna que constituiu um êxito singular para seus promotores, pelo número de visitas e vendas com que contou. Salientava, na ocasião, um comentarista que a exposição tivera um êxito social muito maior do que o comercial. Pois muita gente de tradição levou para casa quadros dos pintores modernos. Não, evidentemente, para jogar num porão. Sim, para expor. Onde? Numa sala adornada já como retrato a óleo de algum antepassado. com a nobreza e a austeridade dos antigos. Depois de algum tempo, a dona da casa perceberá a impossibilidade de manter juntas duas pinturas tão discordantes. E… o antepassado se aposentará no porão. A sala, com isso, terá mudado de ambiente. Passará a permitir o que antes a censura muda da austeridade antiga, irradiada do retrato do velho chefe de família tornava inadmissível (5).
Ninguém negará valor a essa conclusão. São as pequeninas coisas que criam os ambientes. Não somente as inanimadas, como no exemplo acima. mas principalmente a maneira de ser das pessoas que ou se conformam com o ambiente em que vivem, ou contribuem para formar um ambiente novo. A sabedoria antiga resumia esse mundo de imponderáveis no famoso adágio: « Verba volant, exempla trahunt ».
A heresia difusa
É desnecessário observar que o “príncipe deste mundo” tem disso conhecimento perfeito, e podemos adiantar que é através dos ambientes que ele exerce seu domínio sobre seu principado, especialmente nos dias que correm.
De fato, o tempo das heresias claras passou. Elas fizeram o mal que o semeador da cizânia desejava causar: dividiram o campo do Pai de família. Trata-se agora de infeccionar a parte sadia. É preciso agir com astúcia. Não ostentar o horrendo da face; mas dissimulá-la, de sorte que não seja desde logo percebida. É o que ele obtém por meio da heresia difusa, que sem concretizar-se em proposições explícitas está subjacente e operante na maneira de ser do comum dos homens de hoje, e, através da sociedade, infiltra-se nos meios católicos.
É patente que a heresia difusa, que impregna o ambiente moderno, torna ainda mais árdua e quase neutraliza a ação da Igreja. Por isso mesmo que difusa, é difícil precisá-la em contornos bem definidos que facultem desfechar sobre ela o argumento claro que convence a inteligência, e move a vontade a detestá-la. E hoje, um pacifismo generalizado, no qual há uma idiossincrasia não somente com relação às guerras sangrentas, mas a qualquer divergência mais pontiaguda, enseja, em larga escala, o alastramento da heresia difusa, que é atualmente o maior obstáculo à implantação do Reino de Jesus Cristo na sociedade. Cremos não errar vendo uma alusão à heresia difusa no trecho da Encíclica “Ecclesiam Suam”, em que o Papa descreve a Igreja envolta como que por ondas do mar que Lhe põem em perigo as próprias estruturas, e levam muita gente a pensar que Ela deva abandonar sua missão, para se ajustar a modos de ser bizarros, de todo inesperados (cf. AAS, 56 pp. 617-618).
Convergência entre a heresia difusa e a mentalidade do homem atual
A existência da heresia difusa, e sua concordância com a mentalidade do homem de hoje, são atestadas por teólogos das correntes mais diversas, e, por isso mesmo, autônomos entre si.
Assim, o boletim da “Fraternité de la Très Sainte Vierge”, que se publica em Atenas, na Grécia, no seu número de setembro de 1962 nos fala da “ampla vaga de HERESIA DIFUSA na Igreja”, que teria “aumentado muito nos últimos anos”, como fruto de um desejo desordenado de “intermináveis adaptações de linguagem e conceitos aos critérios naturalistas  históricos, à relatividade fundamental da filosofia profana”, as quais terminaram na formação de uma mentalidade errônea, que, “sem atacar DIRETAMENTE AS FÓRMULAS DOGMÁTICAS, tende a transformar o mistério da Encarnação e da Igreja, e a desviar a esperança da Eternidade para a história” (apud “Sanctifier”, outubro de 1965, pp. 6-7 – grifos nossos). Mais adiante continua o mesmo boletim: “Esta aliança no erro, que surge em todos os campos, prova que não se trata de uma questão de ideias, mas de um impulso de alforria de quebra de grilhões, de um desejo de liberdade profana e de um desejo de reconciliação, a qualquer preço, com a natureza corrompida, mas sem a cruz; foi este impulso de revolta que permitiu a invasão geral do evolucionismo e do relativismo que terminam por introduzir na Igreja uma espécie de fenomenologia cristã” (ib., p. 7).
Os mesmos conceitos, a mesma verificação da heresia larvada e de uma concordância entre essa espécie de heresia e as aspirações do homem moderno vamos encontrar expressos de modo mais explícito, num teólogo reconhecido como dos meios progressistas. Karl Rahner, jesuíta alemão, na sua obra “Was ist Haeresie”, assim descreve a situação da Igreja em face do mundo moderno: “…O homem de hoje vive em um espaço existencial (…) determinado por atitudes, doutrinas, tendências que devem ser qualificadas como heréticas, contrastando com a doutrina evangélica. Não é preciso que toda essa massa herética, de que o espaço existencial de todo homem está influenciado, chegue necessariamente à objetivar-se em proposições teoréticas. Semelhante cripto-heresia está viva mesmo na Igreja (…). Esse tipo de heresia (que não tem necessidade, para existir, de ser tematicamente explícito) pode encontrar-se em todos os membros, mesmo nos representantes da direção hierárquica”. Significa Rahner com estas palavras que o que o veneno da heresia larvada é tão subtil que pode infiltrar-se mesmo nos membros da Hierarquia Eclesiástica. Continua o teólogo jesuíta: “O caráter implícito da heresia latente entre os próprios membros da Igreja encontra um estranho aliado no homem de hoje” (6).
Neomodernismo
Iguais considerações levaram o teólogo suíço, Cardeal da Santa Igreja, Charles Journet a escrever em 1965 que “a crise atual é certamente mais grave do que a do “modernismo”. Não estaria fora da verdade quem afirmasse que a crise atual, essencialmente, não difere da crise modernista, pois é o mesmo relativismo modernista que se tornou mais atuante, que penetrou mais profundamente nos espíritos de hoje. “Um dia, acrescenta o mesmo Emmo. Cardeal, os fiéis despertarão e tomarão consciência de que foram intoxicados pelo espírito do mundo” (apud “Sanctifier”, outubro de 1965, p. 6).
O papel dos modernistas na heresia difusa
Poderíeis perguntar, caríssimos filhos, como foi que se criou semelhante situação para a Igreja na sociedade moderna.
São Pio X, no Motu próprio “Sacrorum Antistitum”, de 1º. De setembro de 1910, declara que, mesmo após a condenação, continuaram os modernistas a se agruparem e a reunir adeptos em sociedade secreta (cf. AAS 2, p. 655). O fim do pontificado do grande Santo e a primeira guerra mundial impediram uma ação mais eficaz contra a difusão do espírito modernista e contra seus corifeus. Puderam, pois, os modernistas, servindo-se de suas associações secretas, minar a estrutura da sociedade e infiltrar-se nos meios eclesiásticos, para aí criar o ambiente da heresia difusa.
Aliás, a ideia de uma heresia larvada pertence-lhes de pleno direito. Foram eles, segundo o testemunho de São Pio X, que introduziram o sistema das meias verdades, espargindo seus erros como coisas desconexas, quando hipocritamente ocultavam seu pensamento sistemático e coerente, afirmado numa concepção da Religião, da fé, do dogma e da Igreja, diametralmente oposta ao depósito da Revelação, e baseada no mesmo relativismo hoje reprovado pelo Magistério eclesiástico.
O papel dos meios de comunicação social
Nada, pois, impede culpemos os modernistas pela atual crise em matéria religiosa. Nem contradiz semelhante suposição o ter Paulo Vi responsabilizado os instrumentos de comunicação social como fautores da difusão do ar pestilencial da heresia na sociedade e em meios eclesiásticos. Pois, de fato, o atual Pontífice, em Carta dirigida ao Mestre Geral dos Dominicanos, em 30 de junho do ano findo, declarava: “Em nossos tempos uma maneira secularizada e leviana de pensar e agir, propagada por toda parte pelos vários meios de comunicação social, procura penetrar até no recinto dos conventos” (ap. “Itinéraires”, n. 99, p. 91).
Em Nossa Instrução Pastoral sobre a Igreja, de 2 de março de 1965, mostramos como a imprensa, ao acompanhar a realização do Concílio Ecumênico, serviu muito bem aos desígnios do modernismo, procurando estiolar no coração dos fiéis o amor e a confiança com referência à autoridade e ao zelo do Romano Pontífice (cf. doc. cit., cap. VI).
É essa desobediência, “doença particularíssima de nossa época” (Paulo VI, Carta citada), uma característica dos modernistas – povo de cabeça dura (cf. Ex. 32, 9) – que perpetua na terra o orgulho da primeira desobediência, leva o homem a confiar em si mesmo, fá-lo esquecer o pecado original, mergulha-o no naturalismo e lhe predispõe o espírito para acalentar toda heresia (7).
 
III
Em nossa Instrução Pastoral sobre a Igreja mostramos a infiltração do espírito modernista, na rebelião manifesta contra a estrutura monárquica da Igreja (8), no combate às devoções particulares, especialmente o Rosário da Bem-aventurada Virgem Maria.
Cumpre-Nos agora salientar como, na aplicação dos Documentos conciliares, não raro se procura dar a esses Documentos uma interpretação que choque o sentimento religioso tradicional do fiel, deixando pairar-lhe no espírito, meio confusamente, que a Igreja não goza daquela infalibilidade que foi para ele sempre uma base segura de sua fé.
“Salvo direito particular, mantenha-se o uso do latim nos ritos latinos”
Observe-se, por exemplo, o que se passa, em muitos lugares, com a aplicação da Constituição sobre a Sagrada Liturgia no que se refere ao latim.
Na Igreja Ocidental e nas por esta fundadas, o latim foi sempre considerado pelos fiéis como a língua da Igreja. Viam eles no latim o invólucro sagrado de um mistério sagrado. No latim admiravam a unidade da Igreja que congraçava na mesma língua os povos mais distantes pelos usos, costumes e idiomas. Atendendo a todas estas razões, e a outras mais que foram expostas nas Congregações gerais do Concílio, a Constituição sobre a Sagrada Liturgia mandou que se conservasse o uso do latim nos ritos litúrgicos da Igreja Latina: “Salvo direito particular, mantenha-se o uso do latim nos ritos latinos” (Const. “de Sacra Liturgia”, 36, § 1). Tendo em vista, no entanto, o eventual be3nefício dos fiéis, permitiu o uso do vernáculo em várias partes dos ritos sagrados, especialmente nas lições, admoestações, em algumas orações e cânticos (Const. “de S. Lit.”, 36, § 2). O que vale também do Sacrossanto Sacrifício da Missa. Manda, porém, o Concílio que se providencie a que o fiel possa dizer ou cantar também em latim as partes do Ordinário da Missa que lhe competem (Const. “de S. Lit.”, 54).
À vista do exposto, será normal um empenho por que os fiéis se habituassem ao latim, e, agora, mais de dois anos após a promulgação da Constituição sobre a Sagrada Liturgia, deveria ser comum vê-los em muitos lugares já habituados a dialogar a Missa em latim. E o que vemos?
A determinação geral da Constituição, declarando que o uso da língua latina deve ser conservado nos ritos da Igreja Latina, normalmente teria como consequência que, sem motivo razoável, não se empregasse o vernáculo, e, de outro lado, se favorecesse o mais possível o conhecimento do texto latino dos livros litúrgicos por parte do povo. O que notamos, em muitos lugares, é uma campanha para fazer esquecer o latim. Em breve não terão mais os fiéis facilidade em obter o texto latino dos ritos sagrados da Igreja Latina. Pois sempre mais se generaliza o costume de por-lhes nas mãos apenas o texto em vernáculo.
Verifica-se, portanto, o inverso do que manda a Constituição. Segundo o Documento conciliar, dever-se-ia facilitar o uso do latim, pois é a língua oficial do rito latino. Na realidade, como aplicação dessa Constituição, dificulta-se o uso da língua oficial da Liturgia romana. Convenhamos que tal maneira de agir não contribui para a edificação dos fiéis.
Importância da parte disciplinar
É verdade que estamos em campo disciplinar, onde, portanto, podem haver variações. Todavia, observe-se, primeiro, que o campo disciplinar não é livre. Nele também nós devemos ater às decisões da Santa Sé. E a Liturgia é coisa sagrada, diremos sacratíssima, porquanto se trata da finalidade por que foi a Igreja formada do Sagrado Lado do Divino Redentor: o louvor e o culto ao Deus Altíssimo, à Trindade Santíssima. Por isso, ninguém, nem mesmo Sacerdote, diz a Constituição conciliar, deve ousar nela introduzir modificações segundo seu alvedrios (Const. “de S. Lit.”, 22 § 3). Está ela sujeita à Santa Sé, e, dentro dos limites por esta estabelecidos, às Conferências Episcopais, e aos Bispos Diocesanos. Em segundo lugar, é de mau espírito, e denuncia tendência a sobrepor o próprio julgamento ao da Sagrada Hierarquia, considerar de somenos as questões disciplinares. Nestas se manifesta também o espírito da Igreja, e, portanto, o que a Igreja tem de essencial. Podemos aplicar a tais questões o que acima aduzimos da Sagrada Escritura sobre as relações entre o exterior do homem e sua disposições internas. Não sem motivo, o Concílio de Trento, reconhecendo embora a necessidade de se cuidar de que os fiéis saibam o que se passa sobre o altar, firmou o uso do latim contra os inovadores do tempo (cf. sess. XXII, cap. 8, e can. 9); igualmente por razão ponderável o recente Concílio mantém o latim como língua oficial do rito latino. Por seu turno, algum motivo levava os jansenistas a se oporem tão tenazmente a essas manifestações disciplinares: idioma próprio para os atos litúrgicos, apresentação de imagens nas igrejas, multiplicidade de Missas no mesmo templo etc. (cf. Sínodo de Pistoia).
Com os exemplos hauridos na maneira de agir dos jansenistas, tocamos outros pontos que julgamos conveniente comentar com Nossos amados filhos, não venham a entender mal o espírito do Vaticano II.
O canto gregoriano
Relacionado com o latim, está o canto gregoriano. Para muitos entendidos, este último não se ajusta ao vernáculo; de onde, a crescente substituição, na Liturgia, do latim pelos idiomas nacionais teria como consequência o alijamento progressivo do canto gregoriano. Ainda que assim não fosse, ainda que esses entendidos se tivessem enganado, é certo que o cantochão vai tendo o mesmo destino que a língua oficial da Liturgia romana. E talvez pelo mesmo motivo, pelo mesmo gosto de novidade, ou pelo surto de rebeldia contra tudo o que é consagrado pela Tradição da Igreja, surto de que falava o Santo Padre, Paulo VI, na Carta ao Mestre Geral dos Dominicanos, que acima citamos.
No entanto, a Constituição conciliar sobre a Sagrada Liturgia mantém, no seu artigo 116, a prescrição tradicional sobre a música litúrgica: “A Igreja, diz a Constituição, reconhece o canto gregoriano como o canto próprio da Liturgia romana; o qual, portanto, em paridade de condições, tem a primazia” (A.A.S., 56, p. 129).
A melodia gregoriana, ensina São Pio X, contém, em grau supremo, as qualidades da música sacra (cf. Motu próprio “Tra le Sollicitudini”, de 22 de novembro de 1903, II), isto é, envolve o texto litúrgico, proposto à inteligência dos fiéis, de maneira a auxiliá-los na devoção, e assim a melhor se disporem para receber os frutos da graça, obtidos na celebração dos Santos Mistérios (ibid., 1). Têm, pois, razão aqueles que veem no gregoriano a expressão mais elevada, na arte musical, da espiritualidade católica. E não sabemos como não aceitar o motivo, que esses autores apresentam, para explicar a aversão ao cantochão, ou seja, o desejo do homem de hoje de fabricar-se uma espiritualidade moderna, ou melhor, uma pseudo-espiritualidade, que se reputa mais acessível à massa, e o é de fato, porque pouco se preocupa com elevar o povo fiel do plano das realidades terrenas ao das verdades sobrenaturais. Tem essa pseudo-espiritualidade, como traço característico, ignorar a adoração. Não admira que ela não possa exprimir-se por uma arte que é a própria linguagem da adoração (cf. André Charlier, “Grégorien et spiritualité”, em “Itinéraires”, janeiro de 1966, p. 130).
Por isso mesmo que é a linguagem musical da adoração, está o gregoriano ao alcance de todos. É ele, diz São Pio X, suave, doce e fácil de se aprender (cf. Carta ao Em. Card. Vigário Respighi, de 8 de dezembro de 1903), de onde a obrigação de fazê-lo retornar ao uso do povo, para que este possa, como antigamente, contribuir com uma parte mais ativa nos ofícios litúrgicos (cf. Motu próprio acima citado, II) (9).
Desejamos, portanto, que, de acordo com a Instrução da Sagrada Congregação dos ritos de 3 de setembro de 1958 sobre Música Sacra e Sagrada Liturgia, n. 26 (A.A.S. 50, p. 640), se introduza aos domingos e dias santos de guarda, nas paróquias, a Missa cantada em gregoriano. Os Revmos. Vigários providenciarão, através do coro paroquial, a que haja um grupo que, no meio do povo fiel, execute em cantochão ao menos as partes fixas da Missa. As partes móveis, como permite a Instrução acima citada, podem ser em reto tono. Dessa maneira o povo irá se habituando às melodias gregorianas.
Competindo-Nos, segundo o artigo 26 da Constituição Dogmática “Lumen Gentium” (A.A.S., 57, p. 32) a orientação de todo o culto público na Diocese, queremos que nas Missas cantadas e nas solenes se conserve o uso do latim, para habituar Nossas ovelhas ao gosto pelo gregoriano.
O canto religioso popular
No mesmo assunto do canto religioso, observa-se um outro dispositivo da Constituição conciliar sobre a Sagrada Liturgia que vai sendo ignorado. É o que se refere ao canto popular. “O canto popular religioso, diz a Constituição, seja solertemente fomentado, para que nos exercícios piedosos, e mesmo nas ações litúrgicas, segundo as normas e os preceitos das rubricas, possa ser ouvida a voz dos fiéis” (artigo 118). No entanto, a introdução de melodias modernas, de sabor protestante, vai paulatinamente expulsando a maneira já espontânea com que nosso povo exprimia seus sentimentos de adoração, de ação de graças, de penitência ou de súplica, ao se dirigir à Divina Misericórdia, à Bem-aventurada Virgem Maria e aos Santos padroeiros. São estes os cantos populares que Constituição sobre Sagrada Liturgia considera no seu artigo 118.
Desejamos, pois, que se observem as prescrições do Concílio Vaticano II, e que sejam mantidos em uso nas nossas igrejas e capelas, nossos cantos religiosos populares.
Piedade e vida comunitária
O Concílio teve o grande mérito de insistir sobre o mistério da Igreja, como Corpo Místico de Cristo, realidade posta em plena luz por Pio XII, na Encíclica “Mystici Corporis” (A.A.S. 35, pp. 193 ss.).
Como consequência, difundiu-se entre os fiéis a consciência da solidariedade que há entre eles, como membros que são do mesmo Corpo. Daí o novo impulso da piedade litúrgica, própria do Corpo Místico como tal, e da vida comunitária, natural entre os membros de um mesmo organismo. E em tudo isso, saudamos com alegria um novo surto de vida da inesgotável riqueza do mistério do Corpo Místico. Quer a piedade litúrgica, quer a consciência da comunhão existente entre todos os filhos da Igreja, contribuem para estreitar os vínculos de caridade que irmanam todos os fiéis, fato fecundo em realizações de ordem sobrenatural e social.
Também aqui, não obstante, é mister estar vigilante, não se venha a ser presa dos engodos do demônio.
A vida comunitária não pode ser levada tão longe, que praticamente venha a anular a personalidade do fiel. Seria fazer uma concessão ao socialismo, chamado por Pio XII o Leviatã, que nesta segunda metade do século XX, ameaça devorar as pessoas e as famílias (cf. A.A.S. 44, p. 792). A realidade do Corpo Místico não destrói as características de cada indivíduo, a responsabilidade pessoal do fiel, e a inviolabilidade da alma humana em face de qualquer autoridade terrena.
A vida comunitária deve servir para aumentar as riquezas comuns existentes na Igreja, a fim de que cada fiel possa, nesse tesouro, auferir novas energias para sua santificação pessoal. Pois que ninguém se salva em comum, mas cada um responde, individualmente, por seus atos, perante o Soberano Juiz. E mesmo na vida em sociedade, cada qual colabora para seu enriquecimento, pelo cabedal de santidade pessoal com que torna mais intensa a circulação vital na comunhão dos Santos. Pio XII, que Paulo VI declarou de suma autoridade nesta matéria teológica (cf. A.A.S. 56, p. 620), supõe este fato em toda a exposição da Encíclica “Mystici Corporis”. Temendo, não obstante, uma falsa concepção da união dos fiéis no Corpo Místico, declara explicitamente que a unidade da Igreja não destrói a personalidade destes. Numa atmosfera saturada de socialismo, convém aduzir as próprias palavras do grande Pontífice: “Enquanto no corpo natural o princípio de unidade junta de tal maneira as partes, que cada uma fica sem própria subsistência, no Corpo Místico, ao contrário, a força de mútua coesão, por mais íntima que seja, une, os membros de modo que conservam perfeita e própria personalidade. Além disso, se considerarmos a relação entre o todo e os diversos membros em todo e qualquer corpo físico todado de vida, os membros particulares destinam-se, em última análise unicamente, ao bem de todo o composto, ao passo que toda sociedade de homens, considerando o fim último de sua unidade, é finalmente ordenada ao proveito de todos os membros e cada um deles, como pessoas que são” (A.A.S. 35, pp. 221-222).
Socialismo na Igreja
Não podemos, pois, concordar com uma vida comunitária que venha a apagar as iniciativas individuais, de tal maneira que o indivíduo não passe de executor autômato de uma vontade coletiva, que, em última análise, não passa da vontade do mais hábil, nem sempre o mais próximo da verdade e da prudência.
A Igreja defende a propriedade privada precisamente como apanágio da pessoa, que permita o exercício da autonomia e da liberdade próprias do indivíduo humano (cf. Pio XII, Discorsi e Radiomessaggi, vol. XXIII, p. 734). Pelas mesmas razões João XXIII, na Encíclica “Mater et Magistra”, pede para os operários, resguardada a unidade de direção da empresa, a possibilidade de iniciativas pessoais (cf. A.A.S. 53, pp. 423-424) (10).
É óbvio que semelhante concepção da vida comunitária não se ajusta bem com a estrutura hierárquica que o Divino Salvador instituiu na sua Igreja.
Vida comunitária e direção espiritual
Menos ainda podemos concordar, amados filhos, com um excesso de vida comunitária que pretenda resolver os casos de consciência individuais em equipes, nas quais, cada um, diante de seus semelhantes, abra totalmente os arcanos de sua alma, a título de combate ao individualismo.
Há, em cada homem, algo de inteiramente pessoal, inviolável, de que ele não tem obrigação de dar contas aos demais homens, campo em que é livre de escolher quem melhor o possa encaminhar nas vias da santificação. Um sistema, que desconheça essa realidade íntima da pessoa humana, concorre não para a formação do fiel, mas para sua despersonalização, pela sua absorção num todo amorfo, do qual ele não passa de uma peça sem finalidade autônoma. É precisamente o que sempre intentaram fazer os totalitarismos, que sacrificam o homem ao Estado, e desconhecem a dignidade pessoal que há em todo indivíduo.
Sobre a indispensável piedade individual, a ascese e a mortificação pessoal, como frutos e ao mesmo tempo como meios de uma frutuosa participação nos atos litúrgicos, não precisamos repetir aqui as advertências que, baseado em ensinamentos pontifícios, fizemos, quer em Nossa Pastoral sobre Problemas do Apostolado Moderno, de 6 de janeiro de 1953 (11), quer nas Nossas Notas pastorais sobre os Documentos conciliares promulgados em 4 de dezembro de 1963, ou seja, a Constituição sobre a Sagrada Liturgia e o Decreto sobre os instrumentos de comunicação social (12).
Nesta mesma ordem de ideias se acha a opinião daqueles que menosprezam as Missas rezadas particularmente, sem concorrência de povo. Também aqui há ressaibos de jansenismo (cf. Sínodo de Pistoia, prop. 31 – D. 1531). Foi ela explicitamente apontada como errônea pelo Santo Padre, na Encíclica “Mysterium Fidei” sobre a doutrina e o culto da SS. Eucaristia (cf. A.A.S. 57, p. 755).
Culto dos Santos, imagens e relíquias
Mais especialmente queremos chamar a atenção de Nossos amados filhos para o culto dos Santos, de suas imagens e relíquias. A propósito, a Constituição conciliar sobre a Sagrada Liturgia fala nos artigos 111 e 125. No artigo 111, afirma que é de acordo com a tradição da Igreja que os Santos são cultuados e são veneradas suas relíquias autênticas e suas imagens. Suas festas, sem prevalecer sobre a comemoração dos mistérios da salvação, proclamam as maravilhas operadas por Cristo nos seus servos, e apresentam à nossa imitação oportunos exemplos. No artigo 125, manda o Documento conciliar que se mantenha firme o costume de propor nas igrejas imagens à veneração dos fiéis, bem que em número moderado e de maneira ordenada, para não criarem admiração no povo, nem induzí-lo a uma devoção menos reta (cf. A.A.S. 56, pp. 127-132).
Não deixa de causar estranheza, caríssimos filhos, o modo como está esse texto do Concílio sedo aplicado em diversos lugares. Despojaram-se as igrejas das imagens dos santos e mesmo da Bem-aventurada Virgem Maria, e nas novas que se constroem não se cogita de lugar para elas.
Também neste ponto, advertimos Nossos amados filhos, insinua-se objetivamente – porquanto estamos certos de que não há semelhante intenção – uma condenação da maneira tradicional de agir da Santa Igreja, desde os primeiros séculos, quando já nas catacumbas se veneravam imagens da SS. Virgem e dos varões santos do Velho Testamento. Com a proscrição das imagens, extenua-se naturalmente o culto dos Santos, com grande prejuízo para o progresso espiritual dos filhos da Igreja.
Razão do culto dos Santos
De fato, no culto dos Santos, na veneração de suas vidas e virtudes, têm os fiéis um grande estímulo para eles mesmos se santificarem e darem glória a Deus. Pois os Santos, como recorda a Constituição conciliar, são expostos pela Igreja à nossa veneração, explicitamente para esse duplo fim. Na contemplação de suas vidas, temos um meio de nos elevarmos a Deus, cuja Bondade se reflete na virtude dos Santos. Assim eles nos servem de meio para glorificar a Deus Nosso Senhor, consoante a exortação do Divino Mestre: “… vejam vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos Céus” (Mat. 5, 16).
Santo Agostinho, entre as razões de conveniência apresentadas para a Encarnação do Verbo, dá a esta que, por Jesus Cristo, Deus, transcendente invisível, mostrou-Se sensivelmente aos homens (apud Billot, “De Verbo Incarnato”, Roma, 1922, p. 24), que puderam no Filho de Deus humanado adorar a Onipotência, a Bondade e a Misericórdia do Altíssimo. Podemos dizer que os Santos estão ainda mais próximos de nós.  O Filho de Deus, feito Homem, assumiu, sem dúvida, nossa carne mortal; porém, isenta do pecado, e das misérias que acompanham nossa natureza decaída e nos fazem árdua a prática da virtude. O mesmo não acontece com os Santos. Estes estiveram sujeitos a uma natureza em tudo igual à nossa. Assim, “ao ver suas quedas, diz Santo Ambrósio, reconheço-os semelhantes à minha enfermidade”. Por isso, eles se tornam nossos pedagogos, iniciando-nos no caminho da penitência, da mortificação que nos leva à imitação do Divino Crucificado. “Ao vê-los semelhantes, continua o Arcebispo de Milão, percebo que devo imitá-los” (Apologia de Davi, c. 2, n. 7).
Os Santos são, portanto, não somente o espelho onde contemplamos os reflexos das perfeições divinas, e com isso nos elevamos a glorificar o Autor de “toda dádiva boa, de todo dom perfeito” (Tiag. 1, 17), como, outrossim, o estímulo para que nós também nos decidamos a “percorrer a vida dos Mandamentos” (Sl. 118, 32).
Além do mais, emos sempre nos Santos – que são heroicos em todas as virtudes – a possibilidade de encontrar um modelo apropriado para o momento presente, que nos auxiliará a vencer os ardis tecidos pelo demônio para perder as almas, na época em que vivemos.
Por tudo isso, devem os Padres alimentar nos fiéis a devoção aos Santos. Uma devoção terna, familiar, porquanto pertencemos todos à mesma Família de Deus, mantendo sempre o devido respeito aos irmãos que se distinguem por esmerada virtude. Devoção sólida, que não se limite a petições egoístas nas necessidades, mas que seja a manifestação do amor que lhes dedicamos à vista de suas virtudes, e da confiança na sua intercessão junto a Deus. O mesmo Senhor Altíssimo nos encaminhou ao culto dos Santos, quando condicionou o perdão dos amigos de Jó à intercessão do paciente Patriarca (cf. Jó 42, 7 ss.), e bem assim, quando aplacou sua ira contra o povo eleito, diante das súplicas de Moisés (cf. Ex. 32, 11-14).
IV
Pontos de doutrina definidos
Com relação ao apostolado ecumênico, recordemos, caríssimos filhos, os pontos de doutrina definidos, que não podem, portanto, ser postos em dúvida nem implicitamente, por atitudes tomadas nos contatos com os irmãos separados.
Segundo São Paulo (1 Tim. 2, 4), Deus quer sinceramente a salvação de todos os homens. Por isso Jesus Cristo morreu não somente pelos fiéis, como queriam os jansenistas, mas pelos pecados do mundo todo (cf. 1 Jo. 2, 2). Em virtude desta vontade salvífica universal, concede o Senhor a todos os homens a graça necessária para cumprirem todos os preceitos impostos por Deus. De maneira que ninguém se condena sem culpa própria.
Entre os preceitos divinos, está a obrigação de ingressar na Igreja Católica, instituída por Jesus Cristo como meio único de salvação para todos os homens. Como consequência, a condição do católico é essencialmente diferente da condição do não católico. O católico, pelo fato de pertencer à Igreja verdadeira, não tem motivo algum para duvidar de que esteja na posse da verdade. O não católico está em condição perfeitamente inversa. Ele não está de posse da verdade, de maneira que tem todo motivo para duvidar de sua posição religiosa. E se estiver de boa fé, mais facilmente será levado a perceber a falta de fundamento para suas convicções.
Estes pontos são pacíficos na teologia católica, e foram objeto de ensino autêntico do Magistério Eclesiástico. A excelência da condição do católico com relação ao não católico, com a consequente obrigação, foi definida pelo Concílio Vaticano I (cf. sess. III, cap. III e can. 6).
De onde, caríssimos filhos, nas nossas relações com nossos irmãos separados, não nos é lícito tomar uma atitude que possa ser interpretada ou no sentido de que não estamos convencidos de que nos achamos de posse da verdade e no caminho da salvação; ou no sentido de que qualquer religião agrade a Deus Nosso Senhor.
Enfim, uma obrigação grave de caridade nos obriga a evitar todas as ocasiões em que possa periclitar nossa perseverança na Fé e nossa adesão à Igreja Católica.
Ecumenismo
Como era de esperar, não há escopo do Concílio cuja realização esteja inteiramente a coberto das insídias do demônio. O que se dá com a adaptação, ocorre também com o ecumenismo. A união de todos os cristãos na verdadeira Fé é um ideal sublime, constitui uma derrota tão grande para o Inferno, que não é possível pensar não tenha o “príncipe deste mundo” se empenhado por esvaziar também esta admirável meta conciliar.
Eis que, como a propósito da adaptação, também sobre a falsa aplicação do ecumenismo advertiu o Papa os fiéis. Segundo despachos das agências telegráficas, teria o Santo Padre observado, em uma de suas Alocuções nas audiências gerais, que o apostolado junto aos irmãos separados não está isento de ilusões e perigos. Ilusões, por uma esperança sem fundamento, perigo pela possibilidade de, no desejo ardente de obter a conversão do herege ou apóstata, falsear o sentido da verdade revelada, ou não expô-la na sua integridade. O texto transmito pelas agências telegráficas é o seguinte: “Há uma tomada de posição também por parte daqueles que demonstram demasiado entusiasmo, como se os contatos com irmãos separados fossem fáceis e sem perigo, e como se bastasse não conceder importância às questões de doutrina e de disciplina para conseguir imediatamente a concórdia e a colaboração. É uma atitude errônea, porque pode criar ilusões, decepções, fraquezas e conformismos que não são proveitosos para a causa verdadeira do ecumenismo” (apud “O Estado de S. Paulo”, de 23 de janeiro de 1966, p. 2).
A primeira condição para um apostolado frutuoso junto aos nossos irmãos separados é fugir a todo e qualquer irenismo doutrinário, ainda que implícito. “A salvação das almas – comenta o boletim da “Fraternité de la Très Sainte Vierge” por Nós já citado – de todos os irmãos separados não será nunca comprometida por uma palavra da Igreja pronta, precisa e eterna, que não deixa lugar à dúvida nem à perturbação nas almas. […] Ao contrário, todas as almas, mesmo dos católicos, correm o risco de se perder quando se vacila e se hesia e se continua vacilando e hesitando diante da heresia” (apud “Sanctifier”, de outubro de 1965, p. 8).
Normas de ação
Dentro desses princípios, devemos levar o mais longe possível a nossa caridade com os irmãos separados. Sem esquecer a condição de “separados”, isto é, afastados da verdadeira Igreja de Cristo, devemos ter presente a todo momento sua prerrogativa de “irmãos”, e esforçarmo-nos por utilizar os pontos que justificam o apelativo de “irmãos”, para levá-los a uma reflexão mais profunda sobre as realidades cristãs que ainda possuem, a fim de que as compreendam melhor, e percebam que elas só adquirem sua verdadeira autenticidade na Igreja Católica (13).
Isso numa ação direta que a Providência poderá de nós exigir com nossos irmãos separados, onde haja um desejo sincero de amar a verdade. Porquanto, com aqueles que se fixaram na heresia, e a abraçam conscientemente, um diálogo frutuoso é praticamente impossível. Podemos ainda e devemos nos compadecer deles, e com nossas orações, penitências e outras boas obras, empenhar a Misericórdia divina, que os ilumine e lhes conceda a retidão de vontade, de que há mister, para chegarem à unidade autêntica do Cristianismo na Igreja Romana.
O que devemos evitar – salvas as necessidades de uma justa e nobre polêmica imposta pelo interesse das almas – são as expressões que possam, de qualquer forma, magoar a nossos irmãos separados; isso ainda quando devamos suportar com paciência as consequências de uma vontade que a heresia ou o cisma tornaram mais especialmente ríspida conosco. Vale neste ponto o conselho de São Paulo: procura vencer o mal com o bem (cf. Rom. 12, 21). Mesmo, porém, com os que estão de boa fé, convém evitar a familiaridade, consoante o prudente e hoje sobremodo oportuno conselho de São Tomás: “para que nossa familiaridade não dê aos outros ocasião de errar” (Quodlibetum 10, q. 7, a. 1 c).
Conclusão
Apresentamos-vos, caríssimos filhos, estas reflexões, porque Nos pareceram necessárias. Tememos, com efeito, que Nossa incúria vos exponha à sanha do inimigo de vossas almas, segundo se lê no Profeta Isaías: “Animais dos campos, vinde todos apascentar-vos, como também animas da floresta. Meus guardas estão todos cegos e não veem nada; são cães mudos incapazes de ladrar, sonham estirados, gostam de dormitar […] são pastores que nada observam” (Is. 56, 9-11).
Com a vigilância a que nesta Pastoral vos exortamos, e sobretudo com a renovação de vosso fervor na imitação de Jesus Cristo, na desconfiança de vossas forças e na docilidade à graça, na humildade e na oração frequente, estamos certos de que podereis contribuir muito eficazmente para que a Igreja, Corpo Místico de Cristo, aumente em santidade e amplie o número de seus filhos em proporções que deixem entrever o suspirado dia em que haverá um só rebanho e um só Pastor.
Que a Virgem Santíssima vos preserve de todo mal e vos conceda o fervor de caridade que a obra apostólica, para a qual a Igreja vos convoca por meio do Concílio Vaticano II, de vós exige.
São os votos que com paternal afeto vos enviamos com Nossa Bênção Pastoral, em Nome do Pai + e do Fi +lho e do Espírito + Santo. Amém.
Dada e passada em Nossa episcopal cidade de Campos, sob Nosso sinal e selo de Nossas armas, aos 19 dias do mês de março do ano de 1966, festa de São José, Esposo da SS. Virgem Maria e Patrono da Igreja Universal.

Notas:

(1) D. Antônio de Castro Mayer, Bispo de Campos, “Os documentos conciliares sobre a Sagrada Liturgia e os instrumentos de comunicação social – Notas Pastorais” – Editora Vera Cruz, São Paulo, 1964.

(2) D. Antônio de Castro Mayer, Bispo de Campos, “Instrução Pastoral sobre a Igreja” – Editora Vera Cruz, São Paulo, 1965.

(3) Foram dezesseis os Documentos promulgados neste Concílio, o que faz dele um dos mais densos da História, pois, em apenas nove meses de estudo comum, chegou a tão grande número de conclusões. – Na ordem de promulgação, são eles os seguintes:

* Promulgados em 4 de dezembro de 1963: Constituição sobre a Sagrada Liturgia, “Sacrosanctum Concilium”, e Decreto sobre os instrumentos de comunicação social. “Inter Mirifica”, por Nós comentados em Nossa Carta Pastoral de 8 do mesmo mês e ano.

* Promulgados em 21 de novembro de 1964: Constituição dogmática sobre a Igreja, “Lumem Gentium”, objeto de Nossa Instrução Pastoral sobre a Igreja; Decreto sobre o Ecumenismo, “Unitatis Redintegratio” (com normas e diretrizes que auxiliem os fiéis a colaborar na restauração da unidade cristã, na única e verdadeira Igreja de Jesus Cristo); Decreto sobre as Igrejas Orientais, “Orientalium Ecclesiarum” (com normas para as Igrejas católicas orientais e suas relações com as igrejas do Oriente que se acham fora do grêmio da Igreja de Cristo).

* Promulgados na quarta e última fase do Concílio:

– em 28 de outubro de 1965: Decreto pastoral sobre os Bispos, “Christus Dominus” (estuda as aplicações dos pontos elucidados na Constituição “Lumen Gentium”: a responsabilidade dos Bispos por toda a Igreja, o Bispo na sua Diocese, e as Conferências Episcopais); Decreto sobre a renovação da vida religiosa, “Perfectae Caritatis” (com normas sobre a adaptação da vida religiosa aos nossos tempos, tendo em vista a santificação dos membros dos Institutos de perfeição e as relações com a vida espiritual de toda a Igreja); Decreto sobre os Seminários, “Optatam Totius” (estuda a situação dos Seminários com vistas à adaptação aos tempos modernos, de maneira a dar aos futuros Sacerdotes uma formação adequada); Declaração sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs, “Nostra Aetate” (com o fim de auxiliar o esforço no sentido de aproximar da verdadeira Fé os homens das mais diversas crenças); Declaração sobre a educação cristã, “Gravissimum Educationis” (sobre o papel das escolas e universidades católicas na atual conjuntura cultural e social);

– em 18 de novembro de 1965: Constituição dogmática sobre a Revelação “Dei Verbum” (“mostra como na Sagrada Escritura se encontra a Palavra de Deus fixada por escrito sob a inspiração do Espírito Santo, enquanto a Palavra de Deus confiada por Jesus Cristo aos Apóstolos é transmitida integralmente pela Tradição aos sucessores destes últimos. A Hierarquia tem o dever de interpretar autenticamente a Palavra de Deus. A Constituição sublinha o papel fundamental que deve ter a Sagrada Escritura em toda a vida da Igreja” – como escreve o “Osservatore Romano” em sua edição de 8 de dezembro de 1965, p. 6, col. 2); Decreto sobre o apostolado dos leigos, “Apostolicam Actuositatem” (desenvolve a doutrina sobre a vocação dos leigos ao apostolado);

– em 7 de dezembro de 1965: Decreto sobre a atividade missionária da Igreja “Ad Gentes” (estuda o caráter essencialmente missionário da Igreja, em correspondência com a vontade salvífica universal de Jesus Cristo); Decreto sobre o ministério e a vida sacerdotal, “Presbyterorum Ordinis” (sobre os deveres dos Sacerdotes, na hora presente; salienta a obrigação do celibato para os Padres da Igreja Latina, e a necessidade da santificação para que o Sacerdote possa cumprir a missão que lhe compete); Declaração sobre a liberdade religiosa, “Dignitatis Humanae” (trata do direito da pessoa e das comunidades à liberdade social e civil em matéria religiosa, não deixando de salientar que essa liberdade está limitada especialmente pela ordem moral objetiva; Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo de nosso tempo, “Gaudium et Spes” (o mais longo dos Documentos conciliares; divide-se em duas partes: na primeira, trata das condições do mundo atual e do papel da Igreja, com sua missão salvífica, na conjuntura presente; na segunda parte, versa alguns problemas sob a luz da revelação: dignidade do matrimonio e da família, promoção da cultura, vida econômica e social, comunidade política dos povos, problemas da guerra e da paz.

Em resumo: quatro Constituições, sendo duas dogmáticas, uma pastoral e uma litúrgica; nove Decretos e três Declarações.

(4) O mesmo pensamento repete Pio XII na sua Alocução de 8 de novembro de 1957 aos participantes do I Congresso Internacional de Alta Moda. Assim se exprime o Papa: « A sociedade, por assim dizer, fala com a roupa que veste; com a roupa revela suas secretas aspirações, e dela se serve, ao menos em parte, para construir ou destruir o seu próprio futu­ro» (« Discorsi e Radiomessaggi »,vol. XIX, p. 578).

(5) A influência das coisas externas, que afetam os sentidos, para a criação de estados da alma, e como veículos na transmissão de concepções ideológicas com repercussões sociais, já a notaram os antigos. De certa música diz Platão : « A insensatez, que considera todos sábios e entendidos em tudo, e o sentido de oposição à lei tiveram o seu começo com a música” (As Leis, 701-A – apud Johannes Hirschberger « História da Filosofía Antiga », trad. Alexandre Correia, Ed. Herder, 1957, p. 118).

(6) O trecho citado devemo-lo à gentileza de Mons. Giuseppe Di Meglio. Encontra-se na versão italiana do livro de Rahner, de 1963, às pp. 11 ss.

(7) A infiltração modernista na Igreja, através da falta de docilidade à Santa Sé, vigora ainda hoje. “La Pensée Catholique”, de Paris, observa o mau humor com que o mensário dominicano “De Bazuin”, de Amsterdan e Nimega, recebeu a Encíclica “Mysterium Fidei”. Há mesmo uma censura ao Santo Padre (cf. “La Pensée Catholique”, n. 99-99 bis, de 1965, pp. 54 ss.). A mesma tática é usada por aqueles que representam na Igreja a infiltração do espírito comunista. Assim, tivemos necessidade de alertar Nossos amados filhos, em Circular de 30 de agosto de 1965 (“Catolicismo”, n. 177, de setembro de 1965, p. 3), não se deixassem embair pelo Revmo. Pe. Paul Eugène Charbonneau, C.S.C., que, no seu livro “Cristianismo, Sociedade e Revolução” (ed. Herder, 1965), enfraquece a defesa dos católicos na luta contra o comunismo, extenuando a condenação lançada por Pio XI e reafirmada por Pio XII contra qualquer colaboração com os comunistas. O Revmo. Pe. Paul Eugène Charbonneau, seguindo o exemplo de outros escritores franceses, que aplaude, procura restringir a condenação geral e absoluta como se lê na “Divini Redemptoris”, apenas à filiação ao partido comunista. Ele reproduz no Brasil a atitude dos católicos que tomam parte nas Semanas intelectuais marxistas, cuja finalidade é a propaganda comunista. Não admira mostre em seu livro entusiasmo pela ação de Marx.

Não é somente o Papa que lamenta a falta de obediência como causa dos males que afligem a Igreja de nossos dias. O boletim da “Fraternité de la Très Sainte Vierge”, de Atenas, por Nós já várias vezes citado, verifica o mesmo fenômeno: “Pode-se notar em todas as atividades, na vida ordinária da Igreja, como no esforço ecumênico, uma corrente obstinada, mais do que se poderia pensar, que pretende uma libertação da santa disciplina e da obediência mística ao Santo Padre” (apud “Sanctifier”, outubro de 1965, p. 7). Karl Rahner emite opinião semelhante: “A tática da cripto-heresia é muito variada, para permanecer latente. Com frequência, consiste apenas numa atitude de desconfiança e ressentimento com relação à autoridade eclesiástica, na muito difusa sensação de quem está sendo controlado com suspeita e mesquinharia, nas próprias investigações e ensinamentos, por parte do Magistério da Igreja” (op. cit.).

(8) Esse ranço modernista tornou-se patente na maneira como recebeu certa imprensa católica a intervenção do Santo Padre a propósito da colegialidade episcopal. Sobre este assunto, recomendamos os esplêndidos artigos publicados pelo Revmo. Pe. Raimond Dulac em “La Pensée Catholique”, números 78, 79, 87, 89, 90, 91, 93, 94, 96 e 97.

(9) No mesmo número de “Itinéraires”, à p. 132 e s., encontra-se o testemunho de um missionário da Congregação do Espírito Santo, que trabalhou no Camerum durante muitos anos, e obteve os melhores resultados com o cantochão executado pelo povo. Aqueles nativos passaram a amar de tal forma o canto gregoriano que, na mochila de soldados, os que partiram para a última guerra levavam seu livro gregoriano, na edição vaticana, que não é dos menores; e onde quer que estivessem cantavam a Missa oficiada pelo Capelão, com edificação de todos, pela piedade e pela correção com que executavam as partes litúrgicas do coro. Esse mesmo missionário dá a razão de seu êxito: “O gregoriano é feito para o povo, sob a condição de que se queira ensiná-lo aos fiéis”.

(10) Tratamos das relações entre a pessoa, a família e a propriedade, no livro que escrevemos juntamente com o Exmo. Arcebispo de Diamantina, D. Geraldo de Proença Sigaud, com o Prof. Dr. Plinio Corrêa de Oliveira e com o economista Luiz Mendonça de Freitas, “Reforma Agrária – Questão de Consciência” (Editora Vera Cruz Ltda., São Paulo, 4ª. edição). Veja-se especialmente a 1ª. parte.

(11) D. Antônio de Castro Mayer, Bispo de Campos, “Carta Pastoral sobre problemas do apostolado moderno – Contendo um catecismo de verdades oportunas que se opõem a erros contemporâneos” – Boa Imprensa Ltda., Campos, 2ª. edição, 1953, pp. 27 ss.

(12) “Os Documentos conciliares sobre a Sagrada Liturgia e os instrumentos de comunicação social – Notas Pastorais” cit., pp. 11 ss.

(13) Mui judiciosas, a respeito do apostolado junto aos irmãos separados, são as considerações que se leem na nota 9 aposta ao ensaio do Prof. Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, “Baldeação ideológica inadvertida e diálogo” (“Catolicismo, n. 178-179, de outubro-novembro de 1965 – Editora Vera Cruz Ltda., São Paulo, 2ª. edição, 1966). Diz o eminente professor:

“Todos os homens, por haverem sido criados pelo mesmo Deus e descenderem do mesmo casal primeiro, são irmãos. A um título ainda mais nobre são irmãos os que crêem em Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro, Redentor do gênero humano, e em nome dEle foram batizados. Por mais profundas e fortes que sejam as divergências entre os homens, estes títulos de fraternidade nem por isto desaparecem. Nada mais legítimo, pois, do que a qualificação de “irmãos separados”.

Dizer “legítimo” é ainda dizer pouco. A expressão, que contém uma evidente acentuação no substantivo “irmãos”, tem o mérito de dar, aos que a usam, uma consciência mais viva e atual desse sobrepairar dos vínculos fraternos acima das divisões. E a tal título constitui um fator útil para aproximações apostólicas preciosas.

Todavia, se é preciso, por vezes, acentuar que tantos homens separados de nós são nossos irmãos, não menos necessário é acentuar em outras ocasiões que esses irmãos não são irmãos quaisquer, mas pelo contrário estão de nós profundamente separados. Pois é na devida e inteira avaliação de ambos os elementos – fraternidade e separação – que está a verdade plena a respeito da situação dos não católicos em face dos católicos.”

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