V – Comentários ao “Tratado da verdadeira devoção a Nossa Senhora”: Cap. II – Verdades fundamentais da devoção à Santíssima Virgem

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Comentários ao

“Tratado da verdadeira devoção

a Nossa Senhora”

 

Capítulo II – Verdades fundamentais da devoção à Santíssima Virgem

 

1951, Conferência

 

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio, em 1951, para os futuros sócios-fundadores da TFP brasileira.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

 

Cópia da Virgen del Apocalipsis, Escuela quitenha, Equador, sec. XVI

Nesta parte da exposição, não nos ateremos muito ao texto de São Luís Grignion, pois a partir deste Capítulo II (tópico 60) o Santo, levado pelo calor de sua exposição, vai se tornando cada vez menos didático. Uma montagem inteiramente raciocinada de seu pensamento exigiria uma alteração na ordem dos princípios enumerados. Comentaremos apenas um trecho muito marcante, e a partir dele discorreremos livremente.

Antes, porém, detenhamo-nos nos tópicos 63, 64 e 65, onde ele aborda um assunto que, apesar de estar um pouco à margem da seqüência do pensamento que está sendo desenvolvido, é também de grande interesse.

Ataques aos inimigos da Igreja

Os piores adversários de São Luís Grignion, como sabemos, foram os jansenistas, contra os quais ele teve muito que lutarEle encontra um meio de, em seus livros, atacar os sacerdotes e bispos jansenistas, explicando que esses seus inimigos estão contra a doutrina católica. Este é um dos primeiros tópicos do livro em que arma um verdadeiro libelo contra o clero jansenista e contra todos os pensadores contrários à verdadeira doutrina da Igreja, defendida por ele.

Cornelius Otto Jansen, também conhecido como Jansênio (28-10-1585 – 6-5-1638), foi
bispo de Ypres (Bélgica flamenga), filósofo e teólogo nederlandês, que fundou o
jansenismo, o qual – entre outros males – prestigiou o cartesianismo

Foi preciso, naturalmente, encontrar uma maneira prudente de fazê-lo, pois graves dificuldades lhe poderiam advir se escrevesse diretamente contra os bispos jansenistas. A maneira que São Luís Grignion encontra para esta empresa é bastante curiosa. Depois de falar a respeito da devoção a Nossa Senhora, e de dizer que há pessoas cuja devoção à Virgem Santíssima é muito restrita, ele escreve:

Volto-me aqui, um momento, para Vós, ó Jesus, a fim de queixar-me amorosamente à Vossa divina majestade de que a maior parte dos cristãos, mesmo os mais instruídos, desconhecem a ligação imprescindível que existe entre Vós e Vossa Mãe Santíssima” (tópico 63).

Há já aqui uma insinuação: “a maior parte dos cristãos, mesmo os mais instruídos“. Os mais sábios, evidentemente, são os doutores, são os “mestres em Israel”. Ele não fala dos mais sábios em mineralogia ou em botânica, mas em teologia. Ora, isso equivale a dizer: “Há teólogos que sustentam que a devoção a Nossa Senhora está errada”.

Prossegue São Luís Grignion:

Vós, Senhor, estais sempre com Maria, e Maria sempre convosco, nem pode estar sem Vós; doutro modo Ela deixaria de ser o que é; e de tal maneira está Ela transformada em Vós pela graça, que já não vive, já não existe: sois Vós, meu Jesus, que viveis e reinais n’Ela, mais perfeitamente do que em todos os Anjos e bemaventurados. Ah! se conhecêssemos a glória e o amor que recebeis nesta admirável criatura, bem diferentes seriam os nossos sentimentos a respeito de Vós e d’Ela. Maria está tão intimamente unida a Vós, que mais fácil seria separar o sol da luz, e do fogo o calor; digo mais: com mais facilidade se separariam de Vós os Anjos e os santos, do que a divina Mãe, pois que Ela Vos ama com mais ardor e Vos glorifica com mais perfeição que todas as Vossas outras criaturas juntas” (tópico 63).

Depois disto, meu amável Mestre, não é triste e lamentável ver a ignorância e as trevas em que jazem todos os homens na Terra, a respeito de vossa Mãe Santíssima? Não falo dos idólatras e pagãos, que, não Vos conhecendo, também não se importam de conhecê-La; nem falo dos hereges e cismáticos, que não têm a peito ser devotos de vossa Mãe Santíssima, pois estão separados de Vós e de Vossa Santíssima Igreja; falo, porém, dos cristãos católicos, e mesmo de doutores entre os católicos” (tópico 64).

Aqui a referência contra o clero jansenista é direta, pois ele fala em “doutores entre os católicos”. Mas ele não se comprometeu, já que doutores podem ser chamados também os que escrevem livros sobre o assunto. Nós sabemos, no entanto, quem são esses “doutores”. Também para o povo, que o vê enxotado de uma diocese para outra, não pode restar dúvida a respeito de quem sejam esses “doutores”.

…mesmo de doutores entre os católicos, que exercem a profissão de ensinar aos outros a verdade, e no entanto não Vos conhecem nem a Vossa Mãe Santíssima, a não ser de um modo especulativo, seco, estéril e indiferente” (tópico 64).

Semelhança com os dias atuais

Isto é muito curioso. Atualmente os teólogos são também unânimes em afirmar as grandezas de Nossa Senhora. Não há um que ouse negar aquilo que dizemos a respeito d’Ela. E, no entanto, o que distingue os devotos de Nossa Senhora dos que não Lhe têm devoção, tanto hoje quanto no tempo de São Luís Grignion, é o mesmo. Estes últimos aprendem as verdades a respeito d’Ela, mas “de um modo especulativo, seco, estéril e indiferente”.

Especulativo – Há alguns teólogos que, inquiridos a respeito da devoção a Nossa Senhora, sabem dizer tudo com uma esquematização perfeita. Além disso, todas as suas afirmações são verdadeiras e certas. Mas é um conhecimento meramente especulativo, pois não há neles um amor vivo, uma atitude concreta que corresponda àquela convicção. Pelo contrário, tudo permanece etéreo.

Seco – Há os que fazem da Mariologia o que poderíamos chamar de “geometria dogmática”. Sabem citar todos os trechos da Sagrada Escritura ou dos Doutores da Igreja, e conhecem todas as regras de exegética que fundamentam os privilégios de Nossa Senhora. Mas esses conhecimentos não geram neles nem piedade, nem amor, nem entusiasmo. E, com a mesma indiferença com que um técnico, baseado em tabelas, fala a respeito da composição química dos anéis de Saturno, assim falam eles a respeito de Nossa Senhora e dos Seus privilégios.

Estéril – Essa maneira de pregar a devoção a Nossa Senhora não contagia ninguém, nem produz frutos apostólicos de qualquer espécie. Na formação ministrada por essas pessoas, Nossa Senhora não representa absolutamente o papel que Lhe atribui a doutrina católica. A vida interior das almas por elas formadas não deixa transparecer uma devoção a Nossa Senhora correspondente ao que a Igreja ensina. Portanto, os desvios de outrora são muito parecidos com os de hoje. Uma devoção a Nossa Senhora com calor, comunicativa, ardente, fecunda, é muito raro encontrar. 

A pretexto de não ofender a Nosso Senhor, destroem a devoção a Nossa Senhora

Continua São Luís Maria Grignion de Montfort:

Estes senhores raras vezes falam de Maria e da devoção que se Lhe deve ter, porque – dizem – receiam que se abuse dessa devoção, e que se Vos ofenda honrando excessivamente Vossa Mãe Santíssima” (tópico 64).

Encontramos às vezes, entre católicos, a formulação de que o culto a Nossa Senhora é coisa boa, mas que “há um certo exagero nele, por onde Nosso Senhor não é suficientemente cultuado; é preciso cultuar a Virgem Santíssima, mas reservando sempre o primeiro lugar para Nosso Senhor”.

Ligada a esta formulação que amalgama dolosamente erros e verdades, há também uma atitude falsa com relação à devoção ao Santíssimo Sacramento. Assim, por exemplo, entrando numa igreja, encontramos com certa freqüência pessoas instruídas na Religião, rezando diante do Santíssimo Sacramento. Mas se formos procurá-las diante de uma imagem de Nossa Senhora, rarissimamente as encontraremos. Tem-se a impressão de que, para eles, o culto das imagens é uma espécie de utensílio para a piedade mais primitiva dos fiéis, uma coisa superficial. Por isso, em geral, entra-se numa igreja e se vai rezar diante do Santíssimo Sacramento; diante de uma imagem de Nossa Senhora, quão mais raro!

A verdade, porém, é inteiramente outra. De fato, o objeto principal de nosso culto numa igreja é o Santíssimo Sacramento. Mas se quisermos cultuá-Lo bem, é excelente que passemos por uma imagem de Nossa Senhora, pedindo a Ela as forças e as graças para fazermos diante de Nosso Senhor um minuto de adoração bem feita.

Em um dos ritos da Igreja Oriental há um costume muito bonito, pelo qual, antes da comunhão, os fiéis passam diante de ícones que há ao lado do altar-mor, e rezam aos santos ali representados para que os auxiliem, naquele momento de receber Nosso Senhor. E após receberem as Sagradas Espécies, passam diante dos ícones do lado oposto, e pedem aos santos que os auxiliem para bem receber os frutos da comunhão. Esta é uma compreensão perfeita do culto a Nosso Senhor. O bom católico nunca o vê separado do culto aos santos, muito menos ainda do culto a Nossa Senhora, pois a auréola normal de Nosso Senhor são os seus Anjos e seus santos.

Apresentá-La de um modo terno, forte e persuasivo

Se vêem ou ouvem algum devoto da Santíssima Virgem falar muitas vezes, dum modo terno, forte e persuasivo, da devoção a esta boa Mãe como de um meio seguro e sem ilusão, dum caminho curto e sem perigo, duma via imaculada e sem imperfeição, e dum segredo maravilhoso para chegar a Vós e Vos amar perfeitamente, clamam contra ele, e lhe apresentam mil razões falsas para provar-lhe que não é necessário falar tanto a respeito da Santíssima Virgem, que há muito abuso que é preciso empenhar-se em destruir, nessa devoção, e aplicar-se em falar sobre Vós, em vez de favorecer a devoção à Virgem Maria, a quem o povo já ama suficientemente” (tópico 64).

É a expressão do mesmo pensamento. Notemos, contudo, um pormenor: “Se vêem algum devoto da Santíssima Virgem falar muitas vezes, de um modo terno, forte e persuasivo“. Como se vê, até nas pequenas coisas de São Luís Grignion temos uma total identidade de posição com ele. Não se deve falar de Nossa Senhora de modo oco e romanceado, mas, como fez São Luís, de modo afetuoso, forte e persuasivo. Afetuoso e forte, isto é, que atinge a vontade; persuasivo, que atinge a inteligência. Nossa devoção à Virgem Santíssima deve basear-se em coisas que atinjam a inteligência, e não consistir apenas em melúrias e coisas adocicadas.

Conjuração sistemática contra Nossa Senhora

Às vezes metem-se a falar da devoção à Virgem Mãe Santíssima, não, porém, para assentá-la e propagá-la, e sim para destruir os abusos que dela se fazem. Estes senhores são, no entanto, desprovidos de piedade, e não têm por Vós sincera devoção, pois que não a têm a Maria. Consideram o rosário, o escapulário, o terço, como devoções de mulheres, próprias de ignorantes, sem as quais se pode obter muito bem a salvação. E se lhes cai nas mãos algum devoto da Virgem Santíssima que recita o seu terço ou pratica qualquer outra devoção mariana, mudam-lhe em pouco tempo o espírito e o coração. Em lugar do terço lhe aconselham recitar os sete salmos; em vez da devoção à Santíssima Virgem, aconselham a devoção a Jesus Cristo” (tópico 64).

São Luís Grignion denuncia aí um trabalho sistemático contra Nossa Senhora, feito dentro da Igreja. Mostra que havia, naquele tempo, pessoas desprovidas de sincera devoção para com Nosso Senhor, que tinham como principal preocupação destruir a devoção à Virgem Santíssima. Assim, se caísse em suas mãos alguém que tivesse o hábito de rezar o terço, a primeira coisa que fariam seria procurar tirar-lhe esse hábito, para aconselhá-la a rezar os salmos. São desvios antigos, que precederam os erros do liturgicismo. Os salmos, como sabemos, constituem a principal oração da Liturgia Sagrada, mas substituir com eles, obrigatoriamente, o rosário…

Há uma analogia muito grande nesse ponto. É importante ter presente que, segundo São Luís Grignion, essas pessoas não têm amor a Jesus Cristo, mas consagram-se apenas a destruir a devoção a Nossa Senhora, simplesmente porque a querem aniquilar. E não a substituirão por uma verdadeira devoção a Nosso Senhor.

Se formos verificar o resultado da ação dessas pessoas, zelosas em diminuir a devoção a Nossa Senhora, veremos que elas diminuem também o culto a Nosso Senhor. A devoção que têm a Jesus é fraca, pequena, sem consistência. Pelo contrário, naqueles que não temem exagerar a devoção a Nossa Senhora pelo receio de diminuir o culto a Nosso Senhor, verificamos que o amor deles a Jesus Cristo é intensíssimo. É a confirmação de que a verdadeira devoção a Jesus Cristo só existe quando há devoção à Virgem Santíssima. São as palavras de São Luís Grignion:

Ó meu amável Jesus, terá essa gente o Vosso Espírito? Será possível que Vos agradem, agindo desse modo? Poderá alguém agradar-Vos, sem fazer todos os esforços para agradar a Maria, por medo de Vos desagradar? A devoção à Vossa Mãe impede a Vossa? Atribuirá Ela a si as honras que Lhe damos? Formará Ela um partido diverso do Vosso? É Ela, acaso, uma estrangeira sem a menor ligação convosco? É desagradar-Vos, querer agradar-lhe? Separamo-nos, talvez, ou nos afastamos de Vosso amor, se nos damos a Ela e A Amamos?” (tópico 64).

Como se conhecem os verdadeiros homens de Deus

Entretanto, meu amável Mestre, a maior parte dos sábios, em castigo de seu orgulho, não se afastariam mais da devoção à Santíssima Virgem, nem a olhariam com mais indiferença, se tudo o que acabo de dizer fosse verdade. Guardai-me, Senhor, guardai-me de seus sentimentos e de suas práticas, e dai-me uma parte dos sentimentos de reconhecimento, de estima, de respeito e de amor, que tendes para com Vossa Mãe Santíssima, a fim de que eu Vos ame e glorifique na medida em que Vos imitar e mais de perto Vos seguir” (tópico 65).

Aqui a acusação se amplia: já não é “um ou outro” sábio, mas “a maior parte dos sábios”. É uma admoestação aos leitores, para que não sigam esses doutores pestilenciais, mas sigam a ele na devoção que ensina.

Problema angustiante para São Luís Grignion

O Santo estava às voltas com um problema que encontramos em diversas épocas históricas. Imaginemos um fiel daquela época. Ao ler isto, ele verificaria que já ouviu de outros padres, talvez até de algum bispo, o que São Luís Grignion está condenando. Imediatamente surgiria uma dúvida: “A quem seguir? A um missionário que anda de um lado para outro, mal visto por tantos, ou a um bispo a quem não falta, entre outras coisas, o peso do prestígio? A esse padrezinho ou ao clero jansenista, que parece pensar de modo diferente? Que valor tem esse Grignion? Que mérito?”

É preciso ver que Nosso Senhor dá às almas dois modos para conhecerem o caminho. O primeiro consiste na análise da doutrina, conferindo-a com a da Igreja Católica. O segundo é por uma qualidade que se chama discernimento dos espíritos. Por ela somos capazes de discernir, mediante a fidelidade à graça de Deus, aqueles que têm verdadeiramente o espírito da Igreja. Se formos fiéis às graças que recebemos, saberemos quem é de Deus e quem não o é. Ora, está de acordo com a ordem desejada pela Providência que tenhamos, guiados por esse discernimento, uma confiança especial naqueles que temos certeza de que nos levam para Deus, sacrificando inclusive, dentro do limite da prudência – pois infalível é apenas a Igreja Católica – algo de nossa opinião pessoal.

Isto se dava com os fiéis franceses daquele tempo. Eles tinham a graça suficiente para ver em São Luís Grignion um homem de Deus. Deviam, portanto, corresponder a essa graça e crer nesse homem. Se cressem nele, estariam bem; se não, estariam mal. Esse discernimento dos espíritos, nenhum fiel pode deixar de praticar. No Antigo Testamento ele era necessário para se reconhecer os verdadeiros profetas, pois havia muitos impostores.

Atualmente a prática desse discernimento tornou-se mais fácil, pois temos o magistério infalível da Igreja. A adesão a este Magistério é um critério seguríssimo de verdade, mesmo que esteja contra a opinião de todos os homens.

Há ainda outro critério: quando sentimos que alguém revela um espírito de obediência absoluta à Igrejade tal maneira que seja capaz de abandonar qualquer opinião própria, se a Igreja disser o contrário; que tenha, portanto, verdadeira humildade em relação a Ela, então podemos nele confiar. Quando não o sentimos, tomemos as devidas precauções.

Em São Luís Grignion era admirável a disciplina absoluta que tinha em relação à Igreja Católica, de maneira tal que escrevia tudo isso porque estava de acordo com Ela. Se, porventura, a Santa Sé alterasse em qualquer coisa a doutrina exposta por ele, submeter-se-ia e renunciaria a tudo o que fosse preciso. Esta é a disposição que tem um verdadeiro católico, e é por ela também que se reconhece o verdadeiro católico.

Enfim, fica atestado que os problemas da época de São Luís Grignion eram semelhantes aos que têm existido na Igreja, em outras épocas. Diante disso, ele era obrigado a usar uma tática ardilosa e indireta, para dizer o que queria. Isto vem refutar, por si só, aqueles que acham que a virtude é inteiramente simples, cândida e sem artifícios. Pelo contrário, sua linguagem pode ser, por vezes, artificiosa e até apimentada. Ele usa dela para inculcar nos fiéis as qualidades da verdadeira devoção mariana: afeto, força, persuasão.

Assim deve ser a ação do apóstolo que deseja a propagação da devoção à Virgem Santíssima.

Características da escravidão a Nossa Senhora

Vistos assim os tópicos 63, 64 e 65, que tratam de um assunto um tanto à margem da matéria, mas muito interessante, voltemos ao Capítulo II. Conforme prevenimos, nos ateremos menos ao texto, pelas razões que já demos.

São Luís Grignion expõe, a partir do tópico 69, o verdadeiro sentido da escravidão. Mostra inicialmente as diferenças entre o escravo e o servidor. “Servidor”, em sua linguagem, é o empregado, locatário de serviços, no sentido atual destes dois vocábulos. Trata-se pois de estabelecer a diferença entre um “escravo” e um “empregado”, no sentido hodierno da palavra.

As três principais diferenças, postas em foco por ele, são:

a) a escravidão se caracteriza, antes de tudo, por ser perpétua. A locação de serviços, ao contrário, é temporária. Ela pode ser por tempo fixo ou indeterminado. De um modo ou de outro, em dado momento, qualquer das partes poderá rescindir a locação.

b) A escravidão é incondicional, total, domina completamente o homem. O direito do senhor sobre o escravo é um direito completo, chegando até, nos países pagãos, a incluir o direito de vida e de morte. Os direitos do patrão sobre o empregado são circunscritos: um colono, por exemplo, não pode ser obrigado abruptamente a trabalhar fora das horas de serviço. Seu contrato de trabalho é bem definido.

c) A última diferença já está compreendida na incondicionalidade, mas convém destacá-la: trata-se da gratuidade. O trabalho escravo é naturalmente gratuito. O senhor é proprietário dos escravos, e portanto de seu trabalho. Qualquer que seja o valor desse trabalho, o senhor só deve ao escravo teto e alimento. A locação de serviços, pelo contrário, é sempre remunerada. E o empregado é livre de recusar o emprego, desde que o salário não lhe convenha.

Feitas estas distinções, São Luís Grignion pergunta o que somos em relação a Deus: escravos ou locatários de serviços? E prova que, no sentido de que o domínio de Deus sobre nós é perpétuo, pleno e gratuito, somos escravos. Deus tem de fato sobre nós um tal domínio, que se nos ordenar qualquer coisa, devemos executá-la por mero amor, de tal maneira que o faríamos, ainda que não recebêssemos d’Ele o Céu como recompensa.

Os diversos tipos de escravidão

São Luís Grignion examina em seguida os diversos modos pelos quais alguém se torna escravo:

1) Primeiramente, torna-se escravo por natureza. É o caso de nossa escravidão para com Deus. Somos escravos porque somos criaturas: toda criatura, pelo fato de ser criatura, é naturalmente escrava de Deus Criador. Imaginemos um escultor que toma argila e nela esculpe uma estátua. Imaginemos ainda que a estátua comece a se movimentar. Entende-se que ela pertence, por natureza, àquele que a fez. Devendo o seu ser ao estatuário, a ele deve obedecer. Assim é o homem, por natureza, escravo de Deus. Todas as criaturas – Nossa Senhora, os Anjos, os demônios – são, por natureza, escravas do Criador.

2) Além desta, existe a forma de escravidão por constrangimento. Quando um rei entra em um país que o agrediu injustamente, e o domina – diz nosso Santo – pode, em certos casos, reduzir seus habitantes a escravos. Não serão escravos por natureza ou de livre vontade, mas por constrangimento, porque o rei vencedor lhes impôs sua lei. Os demônios são escravos de Deus, por natureza e constrangimento. Revoltaram-se contra Deus, e não respeitaram Seus direitos. Deus então interveio, e à escravidão de direito, em virtude da natureza dos demônios, somou uma escravidão por constrangimento, pela força.

3) Há, por fim, uma terceira forma de escravidão: por livre vontade. Admitamos que alguém, por admirar muito a outrem, se lhe dê por escravo. É um ato voluntário, pelo qual uma pessoa renuncia a toda sua liberdade, a todo o direito sobre si, e se coloca irrestritamente nas mãos de outrem. É uma escravidão por livre vontade.

Seremos escravos, ou de Deus ou do demônio

Parece-me conveniente assinalar o trecho abaixo. Consubstanciando ele uma visão tão contra-revolucionária das coisas, convém que se saiba que é opinião de um santo, e não invenção nossa.

Antes do batismo, éramos escravos do demônio; o batismo nos fez escravos de Jesus Cristo. Importa, pois, que os cristãos sejam escravos, ou do demônio ou de Jesus Cristo” (tópico 73).

Considere-se um formigueiro humano visto por um olhar teológico, do alto de um arranha-céu. É forçoso pensar: todos aqueles homens são escravos, ou de Deus ou do demônio. Portanto, eu também o sou, não há outra alternativa. Nada, pois, mais natural do que a seguinte pergunta, para se conhecer alguém: é escravo de Deus ou do demônio? Pois escravo ele o é, necessariamente.

Em termos de doutrina católica, como se demonstra isto? Podemos não querer tributar a Deus a escravidão voluntária. Mas, com a escravidão por natureza, tal não se pode dar, pois escravos de Deus nós o somos, ainda que à maneira dos demônios. Pois a desobediência à Lei de Deus nos torna escravos do demônio, por várias razões:

a) Damo-nos ao demônio, porque quem rompe com Deus se entrega ao demônio;

b) Obedecemos ao demônio, porque seguimos a lei da carne, e a lei da carne é a lei do demônio;

c) Somos escravos do demônio também num sentido especial. O homem mau muitas vezes quereria o bem, mas não tem coragem e nem vontade de o praticar; pois sua vontade está culposamente manietada, está atada, está ligada por um vínculo que o impede de fazer o que quereria. É esta uma forma de escravidão – a escravidão a seus vícios. Ou seja, é a escravidão ao demônio, pois quem se escraviza a seus vícios é escravo de Satanás.

Conclui-se então que todo homem ou é escravo do demônio ou é escravo de Jesus Cristo.

Algumas aplicações dessa escravidão à vida espiritual

Temos bem presente esta noção de que nós, assim como todos os homens, somos escravos de Deus ou do demônio, e de que nisto não há meio termo? Compreendemos que essa classificação dos homens nestes dois grupos de escravos corresponde bem ao espírito contra-revolucionário?

Aprofundando, poderíamos rememorar episódios de nossa vida: fomos sempre escravos de Deus? Ou às vezes o fomos do demônio? Ainda hoje, qual o nosso estado atual? De quem somos escravos no momento? Percebemos que estes princípios que São Luís Grignion lembra, sobre a escravidão, determinam uma atitude vigorosa e intransigente perante a vida, parecida com a que os contra-revolucionários preconizamos? Ou temos o hábito mental de viver despreocupadamente, como se ninguém fosse realmente escravo de Deus ou do demônio?

Temos o hábito de julgar a própria palavra “escravo” enérgica demais, e que bastaria dizer-se “amigo” ou “simpatizante” de Deus? Julgamos que chamar um homem reto de “escravo de Jesus Cristo” é enérgico demais? Achamos que não se deve falar nesses termos?

Não sendo de Deus, por que logo de uma vez “do demônio”? Não pode haver uma zona cinzenta entre esse branco e esse preto? A vida não será muito mais agradável se se considerar que existe essa zona cinzenta? Para São Luís Grignion e para a doutrina católica, no entanto, não é assim. Precisamente a zona cinzenta não existe. Tão somente a branca ou a preta. Só se pode pertencer a uma ou à outra. E é precisamente em função disto que muitas das atitudes contra-revolucionárias se explicam.

A plena aceitação dessa doutrina de escravidão, entretanto, não consiste apenas numa convicção doutrinária, ela gera um estado de espírito, uma atitude mental: o que se trata de adquirir é uma posição habitual perante os outros, de quem se sabe escravo e tem aos outros na conta de escravos.

Por que ser escravo de Maria, que é escrava de Deus?

Por que ser escravo de Maria, em vez de o ser de Nosso Senhor Jesus Cristo – pergunta-nos São Luís Grignion – já que Nossa Senhora é também escrava? Maria Santíssima não diz de si “ecce ancilla Domini“? Por que, então, ser escravo d’Ela? Sendo a Virgem Santíssima escrava, pode ter escravos? Que sentido racional tem isso?

Inicialmente São Luís Grignion faz uma introdução muito inspirada a respeito das relações de Nossa Senhora com Nosso Senhor. Embora não mencionando aquelas palavras de São Paulo “não sou eu que vivo, é Jesus Cristo que vive em mim (Gal. 2,20), é este o pensamento que o santo desenvolve, mostrando que Jesus Cristo vive numa pessoa quando ela se santifica. E quando atinge a santidade, já não é aquela pessoa que vive, mas Jesus Cristo que vive nela.

Ora, sendo Nossa Senhora absoluta, inteira e perfeitamente santa, é também absoluta, inteira e perfeitamente Jesus Cristo que vive n’Ela. Estabelecer uma separação entre Maria e Jesus Cristo, de maneira a ser possível admirá-La sem admirar Jesus Cristo, ou cultuá-La sem cultuar a Jesus Cristo, segundo São Luís Grignion é o mesmo que procurar separar o calor da luz, numa chama que brilha e que ao mesmo tempo é quente. São elementos que se podem distinguir, mas não se separar.

Conjunto escultural representando Carlos Magno ladeado por Roland e Olivier, na praça adjacente à catedral de Notre-Dame, em Paris. À frente, o estandarte da TFP francesa

Os pares de Carlos Magno para nossos modelos – Podemos tornar mais claro o exposto com algumas comparações. Segundo a lenda ou a História, os pares de Carlos Magno não foram apenas os sustentáculos que o auxiliaram a realizar a grande obra da defesa da Igreja e da fundação de um império cristão, mas homens formados por ele mesmo para isto. Guerreiros surgidos ao longo de sua vida de rei-guerreiro, os pares se destacavam acima de outros guerreiros, pois ele os foi formando para a luta, para a batalha e para a guerra, de maneira a assimilarem seu espírito cavalheiresco, suas idéias e seus princípios, e os aplicarem em suas próprias vidas.

Podemos então legitimamente dizer que, se um par de Carlos Magno absorveu, em toda a sua personalidade, todos os princípios de seu chefe, a análise da personalidade desse par é útil e interessante para quem queira conhecer Carlos Magno, pois foi uma reprodução viva daquele imperador. Ele aplicou, em circunstâncias já diferentes, os princípios que Carlos Magno ensinou e viveu. Assim, para se conhecer Carlos Magno a fundo, há vantagem em conhecer a história de seus pares. São outros tantos Carlos Magno, através dos quais poderemos penetrar melhor no conhecimento da obra, da mentalidade e da vida do grande imperador. Enfim, isto é tão verdadeiro que, se não tivéssemos nenhum documento sobre Carlos Magno, mas conhecêssemos a história dos seus pares, através dela poderíamos saber o que ele foi.

O mesmo se dá com os santos em relação a Nosso Senhor. São alter Christus. E estas considerações são muito mais verdadeiras no caso dos santos, pois o santo pratica a virtude heróica, e imita portanto a Nosso Senhor em toda a medida do que lhe é dado imitar. E mais verdadeiras são ainda em se tratando de Nossa Senhora, que é em toda plenitude alter Christus. A invocação Speculum Justitiæ, da Ladainha Lauretana, neste sentido é muito significativa, porque o espelho contém a imagem do original de modo insuperavelmente fiel, e tem a vantagem de não ter em si outra imagem senão aquela que ele reflete. Numa tela podemos distinguir a pessoa retratada do aspecto material da tela que entrevemos na pintura, mas o espelho só mostra a face daquilo que nele se reflete.

Sendo Nossa Senhora Speculum Justitiæ, amando-A, admirando-A e reverenciando-A, estaremos amando, admirando e reverenciando a própria Justiça, ou seja, a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por que ser mais especialmente escravo d’Ela? São Luís Grignion nos sugere uma comparação popular muito significativa: Num reino absoluto – uma monarquia oriental, por exemplo – todos são, de certo modo, escravos do rei; mas ele pode ter certos escravos mais especialmente a serviço da rainha; são escravos que ele dá para que a rainha mande neles mais particularmente. Assim acontece também na Igreja Católica e no universo. Sendo todos os homens escravos de Deus por natureza ou por conquista, e também, de algum modo, escravos por natureza de Nossa Senhora, é possível a alguns oferecerem-se mais especialmente para servi-La, para glorificá-La, para serem Seus escravos e combaterem por Ela. São estes os chamados para a devoção especial que São Luís Grignion recomenda em seu “Tratado”.

Índice pormenorizado

Introdução

Capítulo I – Necessidade da devoção à Santissima Virgem / Artigo I – Primeiro princípio: Deus quis servir-se de Maria na Encarnação

Segundo princípio: Deus quer servir-se de Maria na santificação das almas

Art. II – Consequencias: 1a. Maria é a rainha dos corações; 2a. Maria é necessária aos homens para chegarem ao seu último fim

Capítulo II (continuação): Mediação Universal de Nossa Senhora na obra de São Luís Grignion

Capítulo III – Escolha da verdadeira devoção à Santíssima Virgem

Capítulo IV – A perfeita devoção à Santíssima Virgem ou a perfeita consagração a Jesus Cristo

Capítulo V – Motivos que nos recomendam esta devoção

Capítulo VI – Figura bíblica desta perfeita devoção: Rebeca e Jacó

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