VIII – Comentários ao “Tratado da verdadeira devoção a Nossa Senhora”: Capítulo IV – A perfeita devoção à Santíssima Virgem ou a perfeita consagração a Jesus Cristo

1951, Conferência

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio, em 1951, para os futuros sócios-fundadores da TFP brasileira.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

São Luís Maria Grignion de Montfort explica, neste capítulo, no que consiste a perfeita devoção a Nossa Senhora. Antes de comentá-lo, convém lembrar algumas noções.

O sentido incondicional de toda verdadeira devoção

Deus pede de nós certos atos, e certos outros Ele os ordena. Assim, Ele ordena que cumpramos os Mandamentos. Mas certas práticas de virtudes, que não são de estrita obediência nem de preceito, mas de conselho, Ele apenas pede que as façamos. A nossa consagração perfeita a Nossa Senhora ou a Deus Nosso Senhor – o que vem a ser a mesma coisa, pois a consagração a Ela só é feita para melhor nos consagrarmos a Ele – significa uma doação completa de nós. Subentende, portanto, a disposição de em todas as coisas seguirmos, não só aquilo que é mandado, mas também o que é recomendado, o que é apenas aconselhado.

Consagrar-se significa dar-se – eis tudo. Aquele que se consagrau não conserva nada para si, ou então não se consagrou inteiramente; tê-lo-á feito parcialmente.

Quando São Luís Grignion fala de consagração a Nossa Senhora, entende que não só devemos oferecer a Ela tudo quanto é nosso, mas também renunciar em seu favor e em Suas mãos (nos termos e efeitos que adiante explicaremos) a tudo aquilo que não nos foi ordenado que renunciássemos. Não se trata de oferecer a Ela somente a renúncia daquilo a que, por imposição dos Mandamentos, temos a obrigação de renunciar, mas tudo quanto é possível ao homem renunciar.

São Luís Grignion, neste seu método de consagração, toma a criatura humana, analisa tudo quanto nela há de renunciável, e mostra como isto deve ser colocado nas mãos de Nossa Senhora. Isto é essencial à perfeita devoção, isto é se devotar. De que adianta alguém nos escrever “seu devotado amigo”, se depois pedimos uma qualquer atenção, e ele no-la nega? Esse devotamento não passa de uma fórmula. A devoção significa exatamente a entrega completa, a consagração total.

A verdadeira devoção a Nossa Senhora não consiste em vibrações nervosas, intensas, diante de uma Sua imagem, mas da séria, profunda, estável e coerente entrega nas mãos d’Ela, de tudo quanto temos de entregável (tópicos 121 a 126).

Nasce então o duplo problema:

a) em que termos essa entrega é feita?

b) por que é feita a Ela, e não diretamente a Nosso Senhor Jesus Cristo?

No capítulo IV, São Luís Grignion explica em que termos esta entrega é feita:

É preciso dar-lhe nosso corpo com todos os seus membros e sentidos; nossa alma com todas as suas potências; nossos bens exteriores – que chamamos de fortuna – presentes e futuros; nossos bens interiores e espirituais, que são nossos méritos, nossas virtudes, nossas boas obras passadas, presentes e futuras. Numa palavra, tudo que temos na ordem da natureza e na ordem da graça” (tópico 121).

Conseqüências da Consagração

Para bem compreendermos o passo que esta entrega significa, e o que São Luís Grignion entende por “consagração”, vamos analisar as conseqüências que esta acarreta.

Nosso corpo com todos os seus membros e sentidos” – Se damos a Nossa Senhora o nosso corpo com todos os seus sentidos e membros, a primeira coisa que neste corpo devemos fazer é a vontade d’Ela. Compreende-se pois, desde logo, que não possamos transformar nosso corpo em instrumento de pecado.

Portanto, antes de mais nada, com relação ao corpo, o que se quer daquele que se consagra a Nossa Senhora é evidentemente a pureza. De nada adiantará dizermos que nosso corpo Lhe pertence, se depois fizermos o contrário do que Ela dele quer. É como se déssemos a alguém uma moeda, e depois a retirássemos para comprar um objeto para nosso próprio uso. Estaríamos evidentemente roubando à pessoa a quem presenteamos.

Mas isso não basta. Para darmos completamente nosso corpo a Nossa Senhora, é preciso agirmos em relação a este como Ela deseja. Isto é, é preciso que o coloquemos completamente a Seu serviço, começando por respeitá-lo como algo que já Lhe demos, e que está sob Seu poder especial.

Além disso, quem se doou a Nossa Senhora nesta consagração deve abster-se de certas atitudes que estariam fora da delicadeza respeitosa para com seu próprio corpo. Por exemplo, quanto ao modo de se apresentar. Sabemos que nosso corpo é marcado pelo estigma do pecado original, e devemos portanto ter o pudor, que é a vergonha ligada a essa condição. Não devemos apresentar nosso corpo em estado de nudez nem de semi-nudez. São atitudes contrárias ao respeito que devemos ter ao nosso próprio corpo, como coisa dada a Nossa Senhora.

Por outro lado, se Lhe demos nosso corpo, ele deve ser um instrumento de apostolado a serviço d’Ela. Deve estar disposto a todas as canseiras, a aceitar o perigo de contágio de moléstias, a ser retalhado pela flagelação, se necessário. Estar, enfim, disposto a tudo quanto for necessário, para que Nossa Senhora seja servida. Isto é verdadeiramente dar o nosso corpo a Maria Santíssima.

Mais ainda: se no nosso modo de vestir podemos adotar trajes mais revolucionários ou menos, devemos nos vestir do modo mais condizente com as idéias contra-revolucionárias. Pois, como o nosso corpo passou a pertencer a Nossa Senhora, com isso estaremos prestando homenagem a Ela.

Estas são formas de proceder coerentes com a completa consagração do corpo à Rainha da Contra-Revolução.

Compreende-se bem a grandeza de todos os atos de sacrifício e de heroísmo à luz desta concepção. Devemos ter a disposição de aceitar, caso Nossa Senhora o prefira, a feiúra à beleza, a doença à saúde, e aceitar que venha a enfermidade sobre nós, para com isto expiarmos pela Santa Igreja. Não devemos, é claro, fazer oferecimentos imprudentes, mas ter esse ânimo. Nosso corpo deve estar à disposição de Nossa Senhora, e nossas palavras para com Ela devem ser as suas por ocasião da anunciação: “Ecce ancilla Domini, fiat mihi secundum verbum tuum” (Lc., I, 38). Faça-se em cada um de nós segundo a palavra de Deus. O que Ela quiser a nosso respeito, desde já está oferecido, desde já está aceito, na medida das forças que Ela mesma nos der. Nosso corpo foi-Lhe dado de presente, foi-Lhe entregue.

Se vivermos esta consagração com esta profundidade, evidentemente ela se tornará imensamente séria e sublime. A devoção de São Luís Grignion é eminentemente grave e elevada. Ninguém a deve fazer sem uma meditação de todas a conseqüências tremendamente sérias que ela traz. E ela só é tremendamente admirável por ser tremendamente séria. Aquilo que não é muito sério, absolutamente não é admirável.

Nossa alma com todas as suas potências” – Antes de mais nada, é necessário dizer que dar a nossa alma a Nossa Senhora significa dá-la à Fé Católica, Apostólica, Romana. Nossa alma pertencerá a Maria na medida em que pertencer à Igreja e ao Soberano Pontífice.

Mas isso não basta. Para pertencer a Nossa Senhora, é preciso que nossa alma tenha aquele equilíbrio interior das almas verdadeiramente consagradas a Ela. Devemos nos lembrar de que o pecado é tudo aquilo que sai da ordem natural; a virtude, aquilo que está de acordo com ela.

Portanto, toda operação da inteligência e todo ato de vontade ou moção da sensibilidade contrários à ordem natural são imperfeição. Só seremos verdadeiramente de Nossa Senhora no dia em que, dentro de nossa alma, entre a inteligência, a vontade e a sensibilidade, reinar aquele equilíbrio das almas verdadeiramente virtuosas.

Nossos bens exteriores – que chamamos de fortuna – presentes e futuros” – Aqui deve entender-se a fortuna e tudo quanto ela traz: a consideração social, as relações, a influência, enfim todas as vantagens deste mundo.

É muito difícil chegar-se às últimas conseqüências a respeito da consagração da fortuna a Nossa Senhora. Nada há de mais fraudulento nem de mais perigoso do que certa “mentalidade de doador”. Nossas fraquezas aparecem mais quando damos, do que quando recebemos. Receber é simples, dar é que é difícil.

Se temos dinheiro e fazemos a consagração de São Luís Grignion, devemos considerar que, na medida em que nossos deveres de estado permitam, ele pertence a Nossa Senhora. E, portanto, cada vez que tomamos nosso dinheiro e o gastamos numa obra de apostolado, estamos cumprindo o prometido, e não fazendo presente algum. Este, já o fizemos de uma vez por todas. Estamos apenas cumprindo uma promessa.

Ora, a “mentalidade de doador” afirma bem o contrário: “Isto desde agora é seu. Mas olhe: pese o presente, agradeça, dobre-se; e, quando mexer nisto, lembre-se de como sou bom; de vez em quando, faça a isto uma pequena alusão, para me consolar, porque se eu não o notar, não me inclinarei a dar outras coisas”. Nada há de mais chocante! É a miséria da “mentalidade de doador”.

Muitas vezes vemos isto em benfeitores de paróquias. Se o vigário não se desdobrar em agradecimentos, não cumprimentar o benfeitor em seu aniversário, não lhe mandar votos de boas festas, e não lhe fizer sentir que ele é prodigiosamente caridoso para com Deus – uma espécie de mendigo que muito lhe deve – então não virão outros benefícios.

Não devemos ser assim com a Causa da Igreja. E muito menos com a da ortodoxia, que é o cerne da Causa da Igreja. Devemos considerar que, se fizemos esta consagração, o que já está dado não nos pertence. E se nós nos entregamos nessa Consagração, a fortiori demos o que é nosso. Seria um absurdo dizer: “Meu Deus, meus dedos são vossos, os anéis são meus”. É portanto a renúncia, a consagração, a entrega do próprio ser com todas as conseqüências, que essa doação que envolve.

Nossos bens interiores e espirituais: méritos, virtudes e boas obras” – Esta renúncia, em certo sentido, é ainda mais difícil. Primeiramente devemos estar dispostos a oferecer o bem interno da própria alma, que é um dos bens interiores mais preciosos. Assim como há momentos em que sentimos agradável a vida de nosso corpo, assim também sentimos, por vezes, agradável a vida de nossa alma. Devemos estar dispostos a renunciar a todos os deleites interiores, e até às consolações espirituais, desde que seja para maior vantagem da Igreja Católica e para enriquecimento de seu precioso tesouro.

E devemos estar dispostos – propõe-nos São Luís Grignion – a algo que é um requinte ainda maior. De acordo com a doutrina católica, por disposição da Providência Divina a reparação de nossos pecados é feita, parte nesta vida, parte no Purgatório, em dosagens de que apenas Deus é o verdadeiro conhecedor. De uma coisa entretanto estamos certos: pelos pecados que cometemos, ainda que deles nos arrependamos e nos sejam perdoados, iremos expiar. Mas Deus Nosso Senhor toma em consideração também as nossas boas obras, em razão do que Ele pode nos dispensar de uma parte desses castigos.

Apesar da opinião contrária dos católicos liberais, esses castigos são em geral terríveis. Já nesta vida as moléstias, a perda da fortuna, os embaraços na família, as complicações, as dificuldades, as desventuras de toda ordem podem ser expiações que se sofrem, pelo mal que se praticou.

No Purgatório, porém, a expiação é imensamente pior. A doutrina da Igreja a respeito do Purgatório é muito diferente da que estamos acostumados a ouvir. O Purgatório é terrível. Não é uma espécie de piedosa tapeação que Deus colocou na estrada do Céu, que queima um pouco, por alto, mas de que se sai relativamente ileso, como se ele fosse apenas um pouco mais quente do que o banho normal.

Em nossos dias, chega-se a dizer que o Purgatório é algo meio simbólico, um lugar onde a alma fica, vagamente aborrecida por não poder entrar no Céu, como quem espera sua vez numa fila de ônibus. Às vezes passam alguns anos na espera da condução, mas as queimaduras não são maiores do que as produzidas pelo sol.

Não é essa a doutrina católica. Sabemos que o Purgatório queima. O seu sofrimento é de fato terrível. Mas Deus Nosso Senhor, em Sua bondade, em geral diminui os sofrimentos neste mundo e no outro.

São Luís Grignion propõe, contudo, que se faça um ato que é o fino fio da doação, o que ela tem de mais cruciante, ato este que consiste em renunciarmos ao mérito das nossas boas obras. Assim, ficamos expostos a receber os castigos que os nossos pecados merecem. Se fizermos um exame de consciência, veremos quantos castigos nos estão preparados. Ora, com essa consagração nos dispomos a que Nossa Senhora aproveite esses méritos segundo as maiores glórias, intenções e interesses da Igreja Católica. E ficamos desnudos até do que possa haver, naquilo que praticamos, de expiatório em nosso favor, e de meritório aos olhos de Deus.

Ao que não renunciamos

Há algo, entretanto, a que evidentemente não podemos renunciar: é o grau de glória que nos está preparado no Céu, em recompensa de nossas ações. Não poderíamos oferecer de ter menos glória no Céu em favor de outros. Aí a justiça de Deus interviria. À exceção disso, porém, renunciamos a tudo.

Esta renúncia, pensando-se bem, é terrível. Senão vejamos: quem ler estas considerações com espírito de devoção, adquirirá méritos que lhe poderão tornar a vida mais suave. Mas, se for escravo de Nossa Senhora, tais méritos de nada lhe adiantarão. Terminada a leitura, poderá sofrer um castigo, a fim de purgar os pecados que cometeu, porque os méritos da leitura não foram aplicados a si, mas a outrem. Como escravo de Nossa Senhora, até isso entregou.

Como vemos, é bem evidente que seria de grande vantagem ter os resseguros das obras de piedade, das indulgências, etc.

É árdua, com efeito, esta escravidão. São Luís Grignion, contudo, fala mais adiante a respeito da magnificência de Nossa Senhora. Aplica então um ditado de camponeses bretões à bondade de Maria Santíssima: “pour un oeuf Elle donne un boeuf” – por um ovo Ela nos dá um boiSe nós Lhe damos tudo, até o extremo da doação, qual é a recompensa que nos fica preparada? É incalculável, pois é certo que Ela nunca se deixa vencer em generosidade. E se a nossa generosidade for do tamanho de uma montanha, a d’Ela será igual a um universo, perto do qual nossa generosidade não será senão um grão de areia.

Há todas as razões, portanto, para se fazer esta consagração; razões de amor e razões de esperança. Recordemos os sacrifícios oferecidos a Deus por Caim e Abel. O de Abel foi honesto, por isso aceito por Deus; o de Caim, por ter sido desonesto, foi rejeitado. Nós devemos, dentro da medida da fraqueza humana, fazer esta consagração, oferecendo-a como o sacrifício do justo Abel. Não a devemos fazer à maneira de Caim, com a finalidade de ficarmos contentes conosco. A seriedade e a gravidade desta Consagração não permitem que a façamos para esse fim.

São Luís Grignion lembra ainda que há certas pessoas pelas quais, por obrigação de estado, devemos rezar. É bem evidente que Nossa Senhora o quer, e nós podemos fazê-lo tranqüilamente, sem recear de entrar em choque com a consagração. Se quisermos oferecer nossos méritos na intenção de outras pessoas, podemos pedir a Maria que os aplique nesta direção, pois não renunciamos ao direito de pedir. Seria como se alguém nos desse uma biblioteca e, ato contínuo, pedisse emprestado um livro. Damos todos os méritos a Ela, e em seguida Lhe pedimos algo. Será que Ela se recusará a nos atender?

Índice pormenorizado

Introdução

Capítulo I – Necessidade da devoção à Santissima Virgem / Artigo I – Primeiro princípio: Deus quis servir-se de Maria na Encarnação

Segundo princípio: Deus quer servir-se de Maria na santificação das almas

Art. II – Consequencias: 1a. Maria é a rainha dos corações; 2a. Maria é necessária aos homens para chegarem ao seu último fim

Capítulo II – Verdades fundamentais da devoção à Santíssima Virgem

Capítulo II (continuação): Mediação Universal de Nossa Senhora na obra de São Luís Grignion

Capítulo III – Escolha da verdadeira devoção à Santíssima Virgem

Capítulo V – Motivos que nos recomendam esta devoção

Capítulo VI – Figura bíblica desta perfeita devoção: Rebeca e Jacó

 

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