Elasticidade de linguagem, agilidade em fazer analogias: característica do brasileiro. Semelhanças de alma do brasileiro com os russos

Santo do Dia, 20 de fevereiro de 1969

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério tradicional da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

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Famoso ícone teria sido pintado, segundo os especialistas, em Constantinopla, no século XIII

 

O português básico, assim como há o inglês básico, o francês básico etc., etc., são umas tantas centenas de palavras mínimas para indicar os conceitos mínimos. O que tem como denominador comum no emprego de um vocabulário muito reduzido nos vários idiomas está no fato que, muito frequentemente, é empregado por espíritos muito pobres e, portanto, incapazes de fazer analogias. São espíritos geométricos, “quadrados” que quando aprendem os vocábulos, usam em um sentido muito restrito e depois não entendem as analogia feitas em outros sentido. E isto porque a analogia é de pouco do uso mental do homem básico.

Qualifico de “homem básico” quem tem uma cabeça que não lhe serve muito de base… Ou seja, é um indivíduo rudimentar, que não joga com analogias, ele é “quadrado”. Isto não quer dizer que o “quadrado” seja elementar, mas que o indivíduo elementar certamente é “quadrado”, embora haja quadrados de uma estrutura de espírito magnífica, que não são rudimentares. O indivíduo elementar é quadrado.

Ele aprende a dizer, por exemplo, que isto é estante. Quando se lhe mostra uma estante na parede, ele cai das nuvens. “Como é isso? Então a palavra “estante” significa dois objetos diferentes?” A gente então lhe explica que “estante” vem do latim – o verbo ‘estar’ -, e que se trata de móvel para os livros “estarem”. E ele novamente cai das nuvens… A etimologia se faz com base em sucessivos desdobramentos, em analogias, em jogos de palavra dos povos menos primitivos.

Acontece que assim como eu falo muito rijamente dos meus patrícios quando é necessário, às vezes não há remédio senão falar bem. E uma das qualidades que eles [brasileiros] têm é que são muito inteligentes, isso é indiscutível. Mas eu nunca disse que fazem um uso muito bom da sua inteligência… E o resultado é que faz parte da subtileza brasileira, da fluidez brasileira, da esperteza brasileira, da “capoeira” brasileira, faz parte uma habilidade extraordinária no jogo das analogias.

De maneira que uma palavra usada num sentido, entra e é empregada em outro sentido análogo. Em pouco tempo, a mesma palavra é usada em dez sentidos análogos e até bem diferentes e bem divertidos, que dão um jogo à linguagem, um jogo à conversa que é mais interessante.

Isso se repercute na vida interna da TFP brasileira, naturalmente. Aparecem certas palavras que são um achado para designar uma certa situação. Depois, a partir disso, não por pobreza, mas por riqueza analógica da expressão, a palavra vai ganhando sentidos e mais sentidos e a pessoa precisa ter o espírito um tanto brasileiro para acompanhar o esvoaçar desses sentidos na conversa.

Assim, em uma frase, a gente pode usar uma palavra em três sentidos analógicos – de analogias violentas -, e isso, no ambiente brasileiro, a pessoa nem percebe que está fazendo exercício mental violento, pois isto se desenvolve  com a maior naturalidade.

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Estátua do Profeta Jeremias, obra de Aleijadinho, em Congonhas do Campo (Minas Gerais – foto de P.R.C. – ABIM, Agência Boa Imprensa). Esse profeta menciona Fassur [filho de Emer, sacerdote e superintendente-chefe do templo] no capítulo 20, tópicos 1, 2, 3, 6; e no capítulo 21, tópico 1; capítulo 38, tópico 1]

A palavra “fassur”, por exemplo, seu uso na TFP vem do seguinte: havia uma pessoa que nós veteranos do grupo do “Legionário” conhecíamos e que era fundamentalmente um tapeador. Começa por aí, que ele era um homem realmente com traços bem feitos, muito amável, muito agradável de trato, apesar de não ser nem um pouco fino, mas fosse vistoso e – em linguagem corrente – “bom de bico”. Sem ser inteligente era, entretanto, um bom conferencista, porém desprovido de um pingo de lógica. Ele todo era feito de irrealidades. Também parecia católico e era perfeitamente modernista e heterodoxo.

Bom, à força de eu ir conhecendo o personagem em vários aspectos, sempre procurava um aspecto bom, por causa das razões que a minha ingenuidade daquele tempo. Em determinado momento, cheguei à seguinte conclusão: analisei-o sob os mais diversos aspectos e não encontrei nenhum bom; ele não presta para nada, ele é ruim em tudo.

Pouco tempo depois dessa consideração, abri um trecho do Antigo Testamento onde se falava de um indivíduo chamado “Fassur” do qual se afirmava que era ruim osb todos os pontos. E pensei comigo: “Aqui está aquele homem! E se chama Fassur”.

Como era uma pessoa a respeito da qual convinha se falar por meio de pseudônimos, entre nós, quando estávamos em um restaurante ou em uma roda qualquer em que não queríamos pronunciar o nome dele, dizíamos o “fassur’.

Daí de “fassur” estendeu-se para “fassurada”… Os senhores estão vendo que a origem está em uma palavra só. “Fassurada” é um golpe que dava o “fassur”. Mas depois, por extensão, o fassur passou a ser toda espécie de herege. Então passou a ser natural se dizer: “um fassur como Lutero…” E, por extensão, foi sendo empregada a palavra “fassur” para todo indivíduo muito ruim, muito sem vergonha. Mas daí também, quando um amigo do Grupo – o mais chegado possível – nos fazia, por exemplo, ou nos dizia uma coisa pouco puxada, a gente dizia que era uma “fassurada”.

E então a palavra “fassurada” se aplicou num tal número de casos – sempre com um substrato em comum que era algo de requintadamente mau -, entretanto à maneira de brincadeira, nos sentidos mais vagos, até afetuosos, como para as piores punhaladas, ela passou a ser um denominador comum de algo de residual, que era algo de requintadamente mau. De maneira que, por exemplo, uma pessoa que fizesse uma brincadeira muito puxada com outro, este último diria: “Você me fez uma fassurada”. Quer dizer, havia um requinte de pseudo  perversidade na brincadeira. E então, por um extremo de analogia, já era uma “fassurada”.

E isso não é português básico, não é falta de expressão, mas é o uso da palavra em todas suas elasticidades possíveis. É como quem senta-se junto a um piano e toca todas as notas. Pegar um vocábulo e fazer todos os jogos possíveis de analogia, isto é uma “brasileirada” [ou seja, algo muito característico dos brasileiros].

Não conheço idioma que se preste mais para jogos dessa natureza do que o português. Aprecio tanto o francês… Eu não acho que o francês seja uma língua; eu acho que o francês é A língua. Mas não tem essa elasticidade que o português possui. Esta capacidade de jogos, de se pegar uma palavra como se fosse teclado e tocar nela mil notas diferentes, isto o francês não tem. Trata-se de uma excelência do português.

Acontece que nisto não há uma espécie de linguagem rudimentar, de “basicismo”, mas pelo contrário existe uma manifestação de desenvolvimento mental e isto eu considero uma coisa interessante.

Os senhores me dirão: “Dr. Plinio, por que é que o senhor se estendeu tanto nesta questão linguística?” É porque estou um tanto empenhado em fazer conhecer os brasileiros pelos não brasileiros e aproveito ocasiões como esta para  indicar algo da elasticidade de nosso espírito que é uma coisa única!…

Aí está um modo brasileiro de falar: quando a gente diz que é “uma coisa única”, não queremos dizer que ela é única, exclusivamente. Mas que se trata de algo muito raro e como que único, porém é claro que não é inteiramente única.

Há uma certa categoria de povos que possuem algo disso, mas que não tem nenhum parentesco racial com o brasileiro e que nós – brasileiros – temos uma afinidade de alma que não sei como explicar: são os eslavos e sobretudo os russos. Há diversos imponderáveis parecidos entre o brasileiro e o russo, que  não sei verdadeiramente donde é que saíram, mas são assim exatamente.

Esses traços de semelhança são constituídos por um fundo de alma tristonho, sentimental, de percepções indefinidas e inexplícitas que pairam pelo ar e que a gente nunca chega a enunciar inteiramente… E que até enunciadas perdem um pouco do seu charme, do seu encanto e em que toda a beleza consiste exatamente em ficarem assim meio implícitas, mais expressas em olhares, em jogos fisionômicos, em inflexões de voz, do que em palavras propriamente definidas. E isto o brasileiro tem muito e constitui um matiz da alma brasileira que não saberia como definir.

Mas quando vejo às vezes aqui, durante a reunião, alguns dos senhores com uma cara parada, cordata, ligeiramente triste, pensando em tudo e em nada ao mesmo tempo, eu me lembro um pouco do estado do espírito dos eslavos. Tenho a impressão de que se a gente pegasse assim um brasileiro por um guindaste e jogasse não na Rússia comunista porque essa é cosmopolita, é infernal, é medonha, mas na Rússia tradicional, se habituava com algumas coisas de lá de um modo incrível.

Dou dois exemplos: primeiro os ícones de Nossa Senhora, aquelas Madonas em que tanto o Filho quanto Ela estão olhando com ar de uma tristeza complacente para quem está em frente… Há um ícone assim na igreja do Mosteiro de São Bento [no centro antigo de São Paulo] e que antigamente, quando eu frequentava lá, via brasileiros rezarem diante dele como se estivessem em frente à imagem de Nossa Senhora Aparecida, tal e qual, embora Nossa Senhora Aparecida não seja assim.

Outra exemplo são as cúpulas das igrejas em estilo bizantino em Moscou que são feitas com uma liga de metal. A cor da cúpula vai mudando de acordo com o colorido do céu ao longo do dia. Os senhores veem que há todo um aspecto da alma brasileira que é preciso conhecer, para nos conhecermos bem. E aqui está dada uma pequena explicação sobre nós, brasileiros.

Aproveitei para – a propósito de uma questão de vocabulário – fazer um pequeno “ambientes, costumes e civilizações” do Brasil. Se houver algum brasileiro que ache que interpretei mal o Brasil, me diga, porque estou pronto a retificar, mas não acredito muito que eu tenha interpretado mal.

Os nascidos no Brasil e que têm origens de pais procedentes de outras partes do mundo e que vem cá, acabam sendo impregnados pelas características daqui. Já comentei até dos nisseis. Só há uma categoria que é pouco influenciada pelo ambiente brasileiro. Os senhores já sabem qual é, não é? É o teuto-brasileiro que não percebe inteiramente onde é que ele está e toda essa questão de ficar olhando para a cúpula que muda de cores… Então, nos teutos brasileiros em alguns escaninhos da alma o Brasil entra até mais não poder e em outros escaninhos têm pinheiros da Floresta Negra em pé, retos e que ninguém tocou. Fora disso, vai tudo na onda.

Com isto, meus caros, está terminado o Santo do Dia. Pergunto se os não brasileiros querem perguntar algo. O Miguel me olha assim, como quem diz: “isto é uma coisa tão desconcertante, não tenho esperança jamais de entender uma coisa tão fluída como essa…” É bem isso, Miguel?

(Sr. Miguel: El espírito brasileño tem influência sobre el espírito castellano?)

Devo falar com franqueza. Não notei nenhum abrasileiramento de nenhum dos membros dos Grupos de fora do Brasil, nada, nada, nada. E outra coisa: eu não desejaria, porque a harmonia do mundo é feita de fortes diferenças nacionais.

(Sr. Afonso: Esa característica del brasileño es cosa buena o cosa mala?)

É uma coisa ótima, semi mal usada, mas muito aproveitável. [risos prolongados] Veja como eles dão risada, como quem se diverte de ver a realidade posta a nu vigorosamente.

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