Narração bíblica do Dilúvio e maldições lançadas por Moisés. Aplicações para nossos dias

Santo do Dia, 6 de novembro de 1981, sexta-feira

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo“, em abril de 1959.

(…) Estas são as notícias de hoje. Há notícias de outrora…

Eu tive durante muito tempo, no meio dos meus papéis, na confusão, uma compilação de narrações, trechos da Bíblia, da Sagrada Escritura, que o sr.  Gregório fez, podendo especialmente atrair-nos e interessar-nos. E, afinal de contas, isso se identificou, se exumou, e eu já estou algum tempo já com o material para aproveitar aqui.

Eu tenho a narração – tinha lido já – a narração do Dilúvio. E cheguei à conclusão de que, embora a narração fosse magnífica, impressionante etc. etc., em todo o caso para uma leitura em conjunto ela não produziria o efeito que eu imaginava.

Alguém, muito chegado aos enjolras pelo afeto e pouco pela idade, disse-me com insistência que não, que gostariam etc. etc… Eu não tenho muita certeza… Mas enfim, sobretudo porque eu sei bem que a minha formação não correspondeu a um costume que no meu tempo de menino já estava abolido.

Quando os  senhores leem notícias de cargos nas antigas cortes, vamos dizer até 1880 mais ou menos, os senhores encontram com frequência entre as senhoras que acompanhavam uma imperatriz, uma rainha, uma grande dama, tal cargo, tal outro, “liseuse”, leitora. Porque se apreciava muito que uma pessoa soubesse ler. Soubesse ler com ênfase, com atrativo, com agrado. Eram as duas especialidades distintas: “causeuse” uma coisa, “liseuse” outra coisa.

Não havia rádio, não havia televisão, e de vez em quando o tempo sobrava nas altas paragens da corte. Então a “dame liseuse” era convidada a ler para os outros ouvirem – a soberana, mais outras damas da corte reunidas – formadas em geral em círculo, ouvirem uma leitura feita pela “liseuse”. E a “liseuse” era já formada para saber ler.

Com o tempo as circunstâncias foram fazendo com que isto não existisse mais. Naqueles tempos toda pessoa que tinha uma educação boa, era habituada a ser um pouco “liseur” ou “liseuse”, porque havia também “liseur” homem, um “causeur” ou “causeuse”. Era preciso saber ler um pouco, conversar um pouco.

No meu tempo, mil circunstâncias tinham feito cessar a função de liseuse e eu não aprendi a ser leitor com os outros. Me deram umas vagas noções de como ser causeur – de como ser “liseur” não me deram lição. E mais ainda, eu tomei o hábito, que corresponde à necessidade, de ir acompanhado com o olhar o meu auditório seja este ou seja  outro. E se eu deixo de acompanhar o auditório com o olhar, eu tenho a sensação que perco completamente o pé.

Como ler e ao mesmo tempo acompanhar com o olhar? É muito difícil.

O trecho é um pouco longo, mas ele de tal maneira se adequa a coisas de nossa época, embora tão, tão, tão antigo – o Dilúvio –  quando uma coisa é antiga, mas a não poder mais deixar de ser tão antiga – dizia-se antigamente – é “antediluviano”. Eu não sei se os senhores alcançaram essa expressão, antediluviano. De tal maneira o Dilúvio é antigo que ele fica então marcado pela imaginação popular como o começo dos tempos de que há memória. O resto é antediluviano…

Tem tanto nexo com nossos dias que eu nem sei o que dizer. E é esse nexo que nos  interessa.

Uma humanidade que se tornou pecadora em extremo, e que se tornou tão universalmente pecadora que ela atraiu sobre ela a cólera de Deus. Deus resolveu puni-la. Então, a narração é muito interessante por isso.

A narração feita à moderna seria assim: uma rápida introdução, depois um contar longo do Dilúvio, com os seus  pormenores e detendo sobretudo na parte mais sensacional: quando a chuva era mais grossa, quando as trevas eram mais escuras, os raios mais densos, a barca era levada por correntezas as mais inesperadas, e os animais dentro dela rugiam, e as crianças choravam, e os homens rezavam… Isso seria a narração, essa seria a parte mais extensa da narração, porque seria a parte dramática, vivencial, emocional da narração.

Na narração que eu tenho aqui não é assim, esta é a parte mais curta. Os antecedentes da cólera de Deus que vai se montando, esses antecedentes são mais longos. A entrada dos animais e dos homens na arca ocupa um certo espaço, relativamente o espaço menor é dado à presença da arca e à chuva propriamente dita.

Como nós gostaríamos de saber como eles viviam dentro da arca, qual era a atmosfera interna, o que acontecia na arca, qual era a organização, quem distribuía a comida – água não devia faltar… bem, mas tudo o mais.  Não se tem ideia disso.

Depois vem com pormenores como é que foi feita – mas com muitos pormenores – como é que foi feito por Noé quando a chuva começou a baixar. E a narração do Dilúvio propriamente dito termina aí.

Ora, nós estamos exatamente numa época assim. Em que, de acordo com as previsões de Nossa Senhora, as profecias de Nossa Senhora – profecias particulares mas profecias – de Nossa Senhora em Fátima, está prevista a cólera de Deus sobre uma humanidade que não se converte; uma humanidade que está em estado de pecado muito maior do que o pecado do Dilúvio, neste sentido de que a Redenção foi depois do Dilúvio… todas as graças da Igreja foram depois do Dilúvio. Os senhores estão vendo bem o que os homens estão fazendo da Igreja e que uso estão fazendo do fruto infinitamente preciso da Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo. Os senhores compreendem por aí que a cólera é ainda muito maior e que a leitura pormenorizada da cólera vem muito a propósito para nós relacionarmos com os nossos dias.

Sem ser “liseur”, e pelo que chama atenção na narração de análogo com os dias de hoje, eu me ponho a fazer, portanto, a leitura do Dilúvio.

Se houver tempo, vem depois umas imprecações de Deus, e umas maldições de Deus que a mim ainda deixaram muito surpreso. Vamos ver se haverá tempo para uma coisa e outra.

O texto é da conhecida coleção do Pe. Matos Soares. Diz seguinte:

“Deus, vendo que era grande a malícia dos homens sobre a terra, e que todos os pensamentos do seu coração estavam continuamente aplicados ao mal, arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra”.

Eu não sei como preferem, se preferem que eu vá lendo e comentando, ou preferem que eu leia e depois comente. Então eu comento.

Os srs. veem a expressão poética: “era grande a malícia dos homens sobre a terra”, quer dizer, a vastidão da terra, a malícia dos homens, no que ela era habitada, a malícia era grande, dá a impressão de uma malícia geral. É muito poético, mas poético com força, não é poesia adocicada, é poesia com garra que tem aí.

“E que os pensamentos do seu coração estavam continuamente aplicados ao mal”.

O que vem a ser os “pensamentos do coração”? Dir-se-ia que o coração não pensa. É o pensar guiado pelo coração, eles eram ruins e a maldade deles guiava seu pensamento para pensarem coisas ruins e por isso eles estavam com o pensamento aplicado ao mal continuamente, sobre a vastidão da terra.

Os srs. compreendem; não só o pensamento porque quem está com o pensamento aplicado ao mal faz más coisas. Quer dizer, faziam coisas péssimas continuamente.

Então, diz que “Deus arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra”. O que vem a ser aqui “Deus arrependeu-se”? Deus não é capaz de um arrependimento como nosso, nós somos entes mutáveis, fracos, variáveis, ora queremos uma coisa, ora queremos outra. Então às vezes fazemos uma coisa e dela nos arrependemos, quer dizer, não deveria ter feito. Deus, não. Mas, quer dizer, a situação dos homens era tão má que a Ele não dar remédio, não valeria a pena ter feito. Donde, por isto, Ele intervém. É este o sentido.

Mas a expressão é muito bonita. Deus, pairando no mais alto dos céus, olhando os homens e pensando: “Eu me arrependo!” Uma grandeza extraordinária!

“E tocado de íntima dor de coração…”.

Em Deus tudo é íntimo e não há propriamente dor, e nem Deus tem coração. Mas é evidente que o modo de falar se reporta ao homem para o homem entender por comparação como foi, o que houve com Deus.

“E tocado de íntima dor de coração, Ele disse: exterminarei da face da terra o homem que criei; desde o homem até os animais; desde os repteis até as aves do céu, porque me pesa de os ter feito. Porém, Noé achou graça diante do Senhor”.

Quer dizer, a cólera dEle foi tal que não se contentou em liquidar os homens. Para que os homens compreendessem a largueza de sua cólera por todo o sempre, Ele eliminou tudo aquilo que tinha vida. “Acabo com tudo!” Tudo quanto tinha vida animal: “Eu acabo com tudo. Acabo com o homem, acabo com todos os animais e acabou-se”. É para dizer que a cólera dele passeou sobre a terra e não poupou mais nada.

É bonita essa narração assim: nós vemos a cólera de Deus montada, mas um raio de luz que transpõe essa cólera: “porém, Noé, achou graça diante de Deus”. É um raio de luz no meio de toda a cólera. É lindíssimo.

“Ora, a  terra estava corrompida diante de Deus”…

A narração volta, portanto, à maldade da terra. Quer dizer, para dar bem ideia de quanto Noé estava só, volta a dizer: a terra estava toda corrompida diante de Deus.

“…e cheia de iniquidade”.

Insiste, portanto, corrompida e cheia de iniquidade. Uma coisa e outra.

“Vendo, pois, Deus que a terra estava corrompida (porque toda a carne…”

Quer dizer, todo homem.

“…tinha corrompido seu caminho sobre a terra)”.

Martelando, portanto, em várias formas para dizer que debaixo de vários aspectos, vários pontos de vista o homem estava péssimo. É o homem moderno!

“Deus disse a Noé: o fim de toda a carne chegou diante de mim. A terra, por suas obras, está cheio de iniquidade; e Eu os exterminarei com a terra. Faze uma arca de madeiras aplainadas”.

Quer dizer, acabou o fim de tudo, exceto de ti que és meu dileto. Vou exterminar. Aqui não está dito que era pela água… “faze uma arca”. Ele quer ser obedecido. Explica: “de madeira aplainada”, tem que ser com madeira aplainada.

Logo depois então ele dá a ordem. Ele diz:

“Eis que estou para derramar as águas do Dilúvio sobre a terra, para fazer morrer toda a carne em que há espírito de vida debaixo do céu; tudo o que há sobre a terra será consumido. Mas, contigo, estabelecerei a minha aliança”.

Os srs. veem a pulcritude [beleza] da situação. Ele insiste várias vezes para indicar como o extermino é completo, por assim dizer para Noé tomar inteiramente a sério a situação, Ele diz: Eu eliminarei, farei cair o Dilúvio, mas contigo – Ele não diz apenas eu te salvarei, diz eu farei uma aliança. Quer dizer, virá uma ordem mais misericordiosa do que a anterior.

Os srs. estão vendo dentro do grande caos hodierno, o Reino de Maria prometido. Aqueles que dentro do caos hodierno, pela assistência de Nossa Senhora, perseverarem, com esses se abrirá analogamente – não quero dizer identicamente – uma outra aliança, virá o Reino de Maria. É tudo muito adequado.

“E o Senhor disse-lhe: entra na arca, tu e toda a tua casa, porque te reconheci justo diante de mim no meio desta geração”.

“Justo”, os senhores sabem que não é apenas a virtude da justiça pela qual se reconhece a cada um o seu direito, mas é o conjunto da virtude. Eu te reconheci justo diante de mim, quer dizer Deus examinou, e ele se erguia como uma árvore na planície, o resto era capim e grama, mas Noé era justo diante de Deus e Deus então amou Noé e protegeu.

“Toma de todos os animais puros, sete pares, machos e fêmeas; e dos animais impuros um par, macho e fêmea”.

Animais puros e impuros para efeito de sacrifício etc.

“Toma também das aves do céu, sete pares, macho e fêmea, para se conservar a raça sobre a face de toda a terra”.

Então, de tal maneira, o princípio por assim dizer “noético” da salvação através dos poucos eleitos estava firmado, que até com os animais haveria em todo o gênero, formigas se quiserem, “formigas noé” que haveriam de perpetuar as formigas pelo mundo…

Vejam o papel do número sete, porque eram sete pares.

Diz aqui:

“Porque, daqui a sete dias, farei chover sobre a terra durante 40 dias e 40 noites e exterminarei da superfície da terra todos os seres vivos que fiz”.

Fica então a revelação da arca.

“Fez, pois, Noé, tudo que o Senhor lhe tinha ordenado. E tinha seiscentos anos de idade quando as águas do Dilúvio inundaram a terra”.

Não é  pouco tempo, não é?

“Noé entrou na arca com seus filhos, sua mulher e as mulheres de seus filhos, por causa de se salvarem das águas do Dilúvio”.

É uma coisa muito bonita a gente imaginar entrando primeiro os animais todos, em série, por ordem de Deus, e depois Noé entrando também.

O que deveriam pensar disso os outros homens que estavam vendo? A arca já lhes devia parecer a “mãe da natureza”, aquele barco enorme, construído para que? Eles que não acreditavam no Dilúvio, que viviam de pandeiro na mão para se divertir, como é que se explicava isso? Entretanto, era assim.

De repente, imaginem o assombro deles, vendo os animais todos entrarem em fila dentro da arca. Como é uma ordem de Deus… Nem isso os converteu.

Então diz seguinte:

“E também dos animais puros e impuros, e das aves e de tudo que se move sobre a terra, entraram na arca de Noé, dois a dois, macho e fêmea, conforme o Senhor tinha mandado a Noé. E passado os sete dias, caíram sobre a terra as águas do dilúvio”.

Mais uma vez, sete. Quer dizer, eles ficaram sete dias na arca, depois caíram as águas do Dilúvio sobre a arca.

“No ano seiscentos da vida de Noé, no segundo mês, aos dezessete do mês, romperam-se todas as fontes do grande abismo e abriram-se as cataratas do céu”.

Para falar em “romper as fontes do grande abismo”, tem-se impressão que houve fendas na terra e que as águas saíam. Então as águas saíam da terra e as águas caíam também do céu, e de todos os lados as águas entravam.

“E caiu chuva sobre a terra durante quarenta dias e quarenta noites. Naquele mesmo dia, entrou Noé na arca com seus filhos, Sem, Cam e Jafét, sua mulher e as três mulheres de seus filhos; e com eles entrarem todos os animais selváticos, segundo as suas espécies; e todos os animais domésticos segundo as suas espécies; e tudo o que se move sobre a terra, segundo as suas espécies; e tudo o que voa, segundo as suas espécies, todas as aves e tudo que tem asas. Todos esses animais entraram com Noé na arca, dois a dois, de toda a espécie em que havia um sopro de vida. E os que entraram, eram macho e fêmea de toda espécie, conforme Deus tinha ordenado a Noé; e o Senhor aí a fechou por fora”.

É muito bonito isto que Deus mesmo fechou a arca por fora. A gente podia imaginar possantes trancas por dentro – e provavelmente havia – mas Deus algo fez por onde Ele por fora fechou a arca.

Essa é a longa narração dos antecedentes, agora vem a narração propriamente do dilúvio.

“E veio o dilúvio sobre a terra durante quarenta dias, e as águas cresceram, e elevaram a arca muito acima da terra. Inundaram tudo com violência, e cobriram tudo na superfície da terra. A arca, porém, era levada sobre as águas”.

A gente tem impressão do espírito revolucionário que inunda toda a terra, e mesmo as mais altas mentalidades, mesmo as pessoas das mais altas categorias sociais e outras, deixam-se inundar, deixam-se cobrir pela Revolução.

“E as águas engrossaram prodigiosamente sobre a terra, e todos os mais elevados montes…”

Portanto, mais do que qualquer, não ficou um píncaro de fora.

“…que há sob o céu, e ficaram cobertos. E a água elevou-se a quinze côvados acima dos montes que tinha coberto”.

Quanto possam dar 15 côvados eu não sei, não eu sei que tamanho é um côvado [= 0,66m, n.d.c.]. Não sei se algum dos senhores têm ideia em sistema métrico quanto é que dá um côvado.

“Toda a carne que se havia posto sobre a terra, foi consumida; as aves, os animais, as feras, e todos os répteis que andam de rastro sobre a terra e todos os homens; tudo que respira e tem vida sobre a terra, tudo morreu. E foram exterminados todos os seres vivos que havia sobre a terra desde o homem até as bestas, tanto os répteis como as aves do céu; tudo foi exterminado da terra, e ficou somente Noé e os que estavam com ele na arca. E as águas cobriram a terra durante cento e cinquenta dias”.

Quer dizer, choveu durante 40, cobriram durante 150 dias. Quer dizer, a terra ficou imersa durante esse tempo todo.

É muito bonita essa grandeza bíblica de repetir as coisas. Porque se os senhores vão ver, cada repetição dessas traz consigo um certo imponderavelzinho que a versão anterior não trouxe. E não é uma repetição no sentido corrente da palavra; não é, por assim dizer, um gaguejar de pena, mas é um reapresentar do mesmo fato nos imponderáveis e mais algum colorido, até que tenha realçado os aspectos do fato que quer que nós tenhamos visto. E são sempre aspectos de grandeza que mudam. No quê? Eu já tentei, aqui nesse trecho, aproximar um  trecho do outro. Eu não saberia dizer, é assim, mas eu não saberia dizer.

“Ora, Deus lembrou-se de Noé, e de todos os animais selváticos, e todos os animais domésticos que estavam com ele na arca, e fez soprar um vento sobre a terra, e as águas diminuíram.”

É curioso que a narração faz como se Deus fosse um homem. Ele pôs Noé na arca e trancou de fora; depois como que se esqueceu; depois, passado o tempo, se lembrou. E em atenção àquele, soprou um vento – e esse vento provavelmente precipitou a evaporação, não sei que é – o fato é que as águas começaram a diminuir então.

“Fecharam-se as fontes do abismo e as cataratas do céu, e foram detidas as chuvas que caíam do céu.”

Então começou um vento, depois fecharam-se as fontes da terra, e depois a chuva diminuiu também. Ou se não foi depois, foi simultâneo, o fato é que o cataclisma estancou.

“E as águas agitadas de uma parte para outra, retiraram-se de cima da terra”.

Quer dizer, portanto, que as águas estavam agitadas e foram se retirando de cima da terra gradualmente, e na arca eles deveriam ter uma noção que não chovia mais, deveriam se perguntar se não era bem verdade que o castigo tinha terminado.

Nós podemos perguntar: há alguma relação entre isto e a possível “Bagarre” (*) ? Ou a provável “Bagarre”, a futura “Bagarre”?

A gente diz que do ponto de vista da interpretação, da hipótese, se diria o mesmo: que todos os castigos imagináveis se desatarão sobre o homem simultaneamente durante a “Bagarre”, e que o vão triturar de todos os modos. Também, quando for dado um sinal, tudo ao mesmo tempo vai cicatrizando e se arranjando e vai voltando à sua posição normal. Essa seria a impressão que se tem.

“E no sétimo mês…”

Sempre o número sete…

“no vigésimo sétimo dia do mês, parou a arca sobre os montes da Armênia”.

Eles devem ter sentido que a arca parou. Montes da Armênia.

“Entretanto, as águas iam diminuindo até ao décimo mês; no décimo mês, no primeiro dia do mês, apareceram os cumes dos montes”.

Quer dizer, apesar da arca estar encalhada num monte, deveria ser um monte muito mais alto que os outros, então os outros cumes não apareceram, apareceram só mais tarde.

“E tendo-se passado quarenta dias…

Ainda 40 dias, hein!

“Noé abriu a janela que tinha feito na arca, e soltou um corvo, o qual saiu e não tornou mais até que as águas secaram sobre a terra”.

Quer dizer, o fato de o corvo não voltar, deixou sem notícias.

“Mandou também uma pomba depois dele, para ver se as águas teriam já cessado de subir na face da terra; e ela não encontrando onde pousar seus pés, tornou a vir a ele para a arca, porque ainda as águas estavam sobre a terra. E Noé estendeu a mão e, tomando-a, recolheu na arca.”

Engraçado, podia não contar, fica meio intuitivo, não é? Que ele recolheu. Mas tudo isso faz seu sentido e tem um inegável charme.

“Depois de ter esperado outros sete dias…”

Sempre o sete.

“…novamente deitou a pomba fora da arca. E ela voltou a ele pela tarde, trazendo no bico um ramo de oliveira, com as folhas verdes. Entendeu, pois, Noé, que as águas tinham cessado sobre a terra.”

A poesia é tal que, depois… a oliveira, os senhores sabem que é a árvore que tem o azeite, que é a doçura, que é a paz, aliás, é um dos nomes mais correntes na língua portuguesa.

A Noé não faltava distância psíquica… ele não tinha pressa, e ele de tal maneira entendeu a cólera de Deus que ele agiu muito por etapas. Por que a gente diria: “bom, então agora vamos sair!” Não…

“Entendeu, pois, Noé, que as águas tinham cessado sobre a terra. Contudo, esperou outros sete dias, e mandou a pomba que não tornou mais a ele”.

Quer dizer, aí ele interpretou o seguinte: a pomba não tendo mais voltado é porque tinha onde pousar, tocou a vida dela. Então, vamos seguir. Uma vez ela fez o bem, voltando; outra vez ela fez o bem não voltando, estava tudo livre.

“Portanto, no ano seiscentos e um da vida de Noé, no primeiro mês, no primeiro dia do mês, as águas deixaram a terra; e Noé descobrindo o teto da arca, olhou e viu que a superfície da terra estava seca.”

O teto da arca, eu estou entendendo aqui – eu nunca li um intérprete –  devia ser móvel, devia levantar, qualquer coisa, para ele olhar lá por cima. Janela não tinha por que não havia vidro naquele tempo, e era muito arriscado escorar o dilúvio com vidro porque as cataratas deveriam ser tais que inundariam a arca.

“No segundo mês, no vigésimo sétimo dia do mês, a terra ficou seca”.

Aí então Noé desceu.

Aí os senhores têm o arco-íris, os senhores têm tudo o mais, e tem a aliança e uma nova vida que recomeça, e então é o Reino de Maria.

Mas a nós é bom pensarmos nas punições, porque a tentação que o mundo coloca diante de nós, continuamente, é de que não haverá punições, de que o que ele faz não é mau, que Deus não está encolerizado, e que, portanto, ele pode continuar impunemente a ultrajar a Deus que dá tudo certo.

Portanto, nós devemos nos defender contra o efeito dessa tentação tão insistente – que poreja no mundo moderno, de todas as maneiras –, nós devemos nos defender dessa tentação insistindo sobre o castigo. E, portanto, vale a pena a gente considerá-lo.

* * *

Eu tenho aqui as maldições, a lista das maldições lançadas por Moisés sobre o povo hebraico caso o povo hebraico não fosse fiel à sua vocação.

Ora, o povo hebraico é o prenúncio, é a semente de todos os fiéis. Todos os que se salvarem são uma continuidade do povo hebraico, do povo eleito. Os senhores compreendem que aqui também é uma maldição com aqueles que tendo recebido a fé católica, usam mal dela, prevaricam e até atacam. Portanto, para o mundo moderno.

Mundo gravemente apóstata porque não faz apostasia saindo de dentro da Igreja, mas faz apostasia procurando desfigurar a Igreja dentro, procurando fazer a autodemolição da Igreja; usando, por assim dizer, as mãos sagradas da Igreja para demolir a própria Igreja. O que está aqui, portanto, é muito pior para nós do que para os judeus.

O que está aqui – tem trechos que fazem pensar naquela descrição da queda de Jerusalém por Flavio Josepho de que eu li trechos aos senhores.

Mas, como a queda da Jerusalém é o símbolo do fim do mundo, então deve fazer pensar também no mundo do fim.

A queda de Jerusalém muito legitimamente se comparava [a] isso porque foi quando o povo eleito levou a sua prevaricação até o fim e crucificou o Homem-Deus. Então vem o castigo que foi a queda da cidade de Jerusalém, a destruição do Templo e a dispersão do povo. Foi o castigo.

Esse acontecimento é a prevaricação amaldiçoada aqui: quando deixares, te acontecerá tal coisa.

Agora, os senhores vão ver como é a maldição de Deus, como ela envolve um homem e como ela pode retorcer o homem nas garras do seu tormento e de sua cólera de modo inimaginável.

“Porém, se tu não quiseres ouvir a voz do Senhor, teu Deus…”

Diz ele ao povo hebraico.

“…para observar e pôr em prática todos os mandamentos e cerimônias que eu hoje te prescrevo, virão sobre ti todas essas maldições e te alcançarão”.

Muito bonita a frase “virão sobre ti”. Quer dizer, correrão ao teu encalço e te alcançarão. Quer dizer, você primeiro vê-las-á se aproximarem com rapidez, e depois você se verá atingido por elas.

“Serás maldito na cidade e maldito no campo”.

Como na terra só tem cidade e campo, não há lugar da terra onde ele não seja maldito. Mas em vez de dizer “serás maldito onde quer que estejas”, usa um modo poético de dizer de uma beleza que não se pode exprimir: serás “maldito na cidade e maldito no campo”.

“Maldito o teu celeiro e malditas as tuas obras”.

Celeiro onde ele guardou, é o banco, a agência bancária dele, o celeiro onde ele guardou o trigo. E “malditas as tuas obras”. Quer dizer, o futuro do que você fez é maldito, o que você fará é maldito também.

Não sei se os percebem o envolvente da maldição, uma coisa terrível!

“Maldito o fruto do teu ventre e o fruto da tua terra, e as manadas dos teus bois, e os rebanhos de tuas ovelhas”.

Portanto, tudo. “Maldito teu filho, maldita a tua terra, malditas as tuas riquezas; tudo o que tens será amaldiçoado”.

“Serás maldito ao entrar e maldito ao sair”.

Tudo isso tem uma força poética, ao menos no meu modo de sentir, extraordinária.

“O Senhor mandará sobre ti a fome e a carestia, e a maldição sobre todas as obras que se fizerem, até te destruir e exterminar dentro de pouco tempo, por causa dos teus péssimos desígnios pelos quais me abandonastes”.

Quer dizer, então tu serás rapidamente consumido, tu serás liquidado!

Essa é a cólera de Deus. Vai para frente!

“Da parte do Senhor te pegue a peste até que ela te consuma da terra, em que entraste para a possuir”.

Quer dizer, tu estás na terra da promissão, essa terra vai te consumir, a terra da promissão vai ser a terra da tua destruição.

“O Senhor te fira com a pobreza, te fira com a febre e com o frio; com o calor e com a secura; com o ar corrompido e com a ferrugem; e te persiga até que pereças.”

A gente notar uma afinidade, mas noutro sentido, entre esta situação do pecador e a situação dos homens bons fustigados pela dor. Durante o período em que o demônio está dominando, durante as épocas das quais se pode dizer o que Nosso Senhor disse no momento que Ele foi preso: “haec est hora vestras et potestas tenebraram – esta é vossa hora, e do poder das trevas”, tem-se uma certa impressão de que tudo persegue o bom. E que, pelo contrário, para eles tudo acontece certo.

E de vez em quando Deus escolhe algum que Ele ama mais, para sofrer mais, e misteriosamente cercar de dores como se fosse um homem punido pela justiça divina. É assim! É assim!

Me ocorrem dois exemplos magníficos, e um outro muitíssimo belo, magnífico também.

. No período em que Jó foi entregue por Deus ao demônio – não na sua alma, mas no seu corpo – o demônio fez tudo com ele. E, por assim dizer, o cobriu de maldições. Na hora em que que cessou para Jó o “dilúvio”, o seu corpo chagado como que fechou-se e cicatrizou, deixou de chover infortúnios sobre ele e houve com ele uma outra aliança.

Infinitamente mais augusta: Nosso Senhor Jesus Cristo. Um dos profetas disse de Nosso Senhor – creio que foi Isaías – “do alto da cabeça até a planta dos pés nada havia nele que fosse são”.  Quer dizer, a dor tinha tomado conta dele inteiramente. E para que essa perseguição chegasse até o auge, depois de morto, derramado todo o Sangue, ainda tinha em seu organismo esta linfa; o coração não estava ferido porque estava guardado no sacrário do peito sagrado. Era preciso que viesse um Longinus e com a lança furasse até o coração e saísse a água do lado dele.

Quer dizer, desta maneira entregou tudo.

A respeito dEle um dos profetas disse: “Traspassaram as Minhas mãos e os Meus pés, e contaram todos os Meus ossos”.

São os justos que Deus chama para expiar pelos pecadores.  E são carregados de bênçãos nisto que parecem aguentar o fardo do castigo, mas são os inocentes ou os arrependidos que expiam pelos culpados. É muitíssimo bonito! Mas não se trata aqui disso.

Terceiro exemplo lindo é de Santa Terezinha do Menino Jesus, morrendo tuberculosa como vítima expiatória do amor misericordioso de Deus. Mas isso já são outras considerações que não dizem respeito a isso.

Aqui os senhores têm a maldição caindo em cima deles.

“O céu que está por cima de ti seja de bronze.”

Não há coisa pior do que um céu de metal, o homem olha para todos os lados e é bronze…

“E a terra que pisas seja de ferro.”

Que horror! Metal em cima, metal embaixo, não há mais vida nem natureza, nada é acolhedor, nada tem hospitalidade para o homem.

“Em lugar da chuva, o Senhor fará cair sobre a tua cabeça a areia”.

A chuva fecunda, a chuva molha, a chuva refresca. Não, vai cair areia.

“E, do céu, caia cinza sobre ti, até que estejas destruído”.

É preciso notar que essas maldições devem entender-se muitíssimo também nos sofrimentos da alma. O homem sofre mais na alma do que no corpo.

Qualquer sofrimento do corpo, por terrível que seja, não se equipara com o sofrimento análogo da alma. E, a alma sobre a qual chove areia, a alma sobre a qual chove cinza, a alma sobre a qual só há um teto de metal e um chão de metal para andar…

Quais são essas almas? As almas que não procuraram nada de espiritual,  nada de elevado, nada de intelectual, são só voltadas para a matéria, elas são premiadas, elas recebem a matéria de presente. Mas depois elas vão ver: é chão de ferro, é teto de bronze, é chuva de areia e de cinza… É natural!

Quer dizer, isso tudo precisa ser interpretado assim, e assim tem uma beleza extraordinária! Por exemplo, literariamente não conheço nada que se compare com isso, nem de longe.

“O Senhor te faça cair diante de teus inimigos, por um caminho saias contra ele e por este fujas, e sejas disperso por todos os reinos da terra.

“Sirva o teu cadáver de pasto a todas as aves do céu e às feras da terra, e não haja quem os afugente.”

Quer dizer, serão tão indiferentes a ti que o teu cadáver será comido pelos bichos sem que nem aí alguém tenha pena ou respeito de ti, e tu serás entregue à natureza para seres devorado.

“O Senhor te castigue com a úlcera do Egito, e com a sarna, e o comichão, e aquela parte do teu corpo por onde se lançam os excrementos, de sorte que não se possam curar”.

Quer dizer, tecidos tão delicados que não tenha cura. Ali, você seja punido, você está perdido!

“O Senhor te fira de loucura e de cegueira.

“O Senhor te fira de loucura e de cegueira, de sorte que andes às apalpadelas ao meio-dia, como o cego costuma andar às apalpadelas nas trevas”.

O meio-dia o que é aqui? É a clareza da verdadeira doutrina católica, é o meio-dia para o mundo; quem quer ver vê, mas anda às apalpadelas e não sabe como sair. É o cego…

“Em todo o tempo sejas vítima da calúnia e oprimido pela violência, e não tenhas quem te livre”.

É uma coisa terrível!

“Em todo o tempo sejas vítima da calunia, oprimido pela violência e não há quem te livre”.

É curioso que muitas vezes o tormento do bom é parecido com isso. Quer dizer, quando é hora do demônio, Deus dá ao demônio o poder de fazer com o bom coisas parecidas.

“Que tu edifiques uma casa, e não a habites; plantes uma vinha, e outros a vindimem. Que teu boi seja imolado diante de ti, e não comas dele; o teu aumento seja arrebatado em tua presença e não te seja restituído; que tuas ovelhas sejam dadas aos teus inimigos, e não haja quem te socorra”.

Quer dizer, tudo te seja arrancado. É, por exemplo, a implantação de um comunismo num país. Dá-se exatamente, literalmente isso! Arranca-se tudo, os que têm casas prontas, construídas, prontas para irem morar, não moram, outros é que habitam dentro dessas casas; tudo é dado aos outros; as ovelhas são dadas aos outros, eles não podem fazer nada. É a maldição que cai em cima deles!

Isto levaria até amanhã, evidentemente não é possível. Eu leio, portanto, apenas mais um parágrafo e nós teremos tido uma ideia geral do que eu não deixo de chamar de faustosas maldições, porque há um fausto régio nisto, uma grandeza ao mesmo tempo patriarcal e soberana. Muito mais do que isso –  divina! – que nos deixa sem ter o que dizer.

“Os teus filhos e tuas filhas sejam entregues a outro povo.

“E vejam os teus olhos e desfaleçam de o ver todo o dia, e não haja força na tua mão.”

É, portanto, ver a liquidação da própria família sem poder fazer nada.

“Os frutos de tua terra e todos os teus trabalhos comas um povo que tu não conheces, e sejas sempre vítima da calúnia e oprimido todo o dia.

“E fiques tu fora de ti mesmo, por causa do terror daquilo que os teus olhos hão de ver. O Senhor te fira com a chaga maligna nos joelhos e nas pernas, e não possas ser curado desde a planta dos pés até o alto da cabeça”.

Os senhores estão vendo a profecia. Aí está, meus caros, em linhas gerais, essa maldição magnífica.

Eu vou fazer um pequeno traço aqui e, no momento oportuno, nós – se Nossa Senhora assim permitir – voltaremos a ela. Para dar ideia aos senhores, nós temos ainda duas páginas e meia de maldições…

Isso faz bem ver como Deus quer – não quero pôr no chão [o texto que acaba de ler] porque é Escritura Sagrada – como Deus quer que nós tenhamos em vista a punição e a cólera dEle.

Os srs. dirão: bom, mas a misericórdia?

A misericórdia está, por exemplo, na revelação de Fátima; está, por exemplo, nessa longa espera; está, por exemplo, em determinar que, durante essa longa espera, alguns que são fiéis aguentem tudo que nós temos que aguentar, é misericórdia para eles.

Com isso, meus caros, fica feita a nossa reunião de hoje.  E nós podemos nos retirar.

(*) “Bagarre” é uma palavra francesa que indica uma situação de confusão, devida a uma disputa ou uma rixa. O Prof. Plinio a utiliza como neologismo para se referir ao castigo que espera a humanidade se esta não se converter, conforme advertiu Nossa Senhora em Fátima.

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