Belo Horizonte, 29 de outubro de 1961
A D V E R T Ê N C I A
Gravação de conferência do Prof. Plinio, não tendo sido revista pelo autor.
Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
A União Estadual dos Estudantes (UEE) e os Diretorios Acadêmicos de Medicina, Engenharia e Odontologia e Farmácia da Universidade de Minas Gerais promoveram duas conferências de Plinio Corrêa de Oliveira, na capital mineira, com auditórios repletos. A primeira realizou-se a 29 de outubro de 1961.
Palavras de abertura pronunciadas pelo Presidente da União Estadual dos Estudantes de Minas Gerais:
“A prosperidade e a adversidade significam bem pouco para quem tem Deus como herança e posse. Nada se deve considerar perdido enquanto não se perde Deus” (Pio XII).
Exmo. Senhor Professor Doutor Plinio Corrêa de Oliveira, Digníssimo Catedrático das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras de São Bento e de Sedes Sapientiae da Pontifícia Universidade Católica;
Exmo. Sr. Representante do Exmo. Senhor Governador do Estado, Capitão Benony;
Exmo. Sr. Representante do Presidente do Tribunal de Justiça, Dr. Francisco Pereira Filho;
Exmo. Sr. Dr. José Geraldo de Faria, Digníssimo diretor da Escola de Arquitetura.
Exmo. Sr. Dr. José de Alencar, diretor da Escola de Arquitetura da UDMG;
Exmo. Sr. Dr. Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira, diretor da Editora Vera Cruz.
Minhas Senhoras, meus Senhores, meus Colegas.
No momento, o Brasil atravessa uma das piores fases de sua história econômico-financeira. A fome, a miséria, a doença atingem proporções espantosas. Somente com reformas de base poderá a nossa nação emergir deste caos profundo em que se encontra. Não há quem não concorde com essa afirmativa, como também não há quem não deseje reformas de base. Todos concordam, mas o certo é que nem todos se identificam quanto aos métodos das reformas a se processarem. Uns tomam-nas mais com o fim de promover o bem estar social, dentro dos princípios cristãos e democráticos.
Outros tomam-nas como um meio seguro e eficiente de transformar um Brasil cristão e democrático em um Brasil porta-voz de Moscou. Daí, as divergências, daí a necessidade de um povo distinguir bem os propósitos dos brasileiros verdadeiramente sinceros que querem de fato o bem estar social e os propósitos daqueles que querem tirar a nossa nação de uma situação de penúria para lançá-la num abismo ainda maior.
Elevados recentemente à Presidência da União Estadual dos Estudantes de Minas Gerais e cônscios da grande responsabilidade que cabe a nós nessa luta, estamos prontos a levantar com coragem uma bandeira pelas reformas dentro dos princípios cristãos e democráticos.
É com esse fim que promoveremos conferências que orientem os universitários sobre como agir em defesa das nossas tradições. Convidamos, assim, o ilustre Professor Doutor Plínio Corrêa de Oliveira, um dos líderes católicos de maior projeção em nosso País.
Uma de suas obras mais recentes, Revolução e Contra-Revolução, é um ensaio que sintetiza de modo admirável os princípios daqueles que querem salvar a civilização cristã. O Professor Doutor Plínio Corrêa de Oliveira foi Secretário Geral da Liga Eleitoral Católica de São Paulo, em 1934, a qual o elegeu Deputado Federal à Constituinte do mesmo ano, tendo sido o deputado mais votado do País. Fundador, enquanto estudante, da Ação Universitária Católica na Faculdade de Direito de São Paulo, foi em 1938, nomeado Presidente da Liga Arquidiocesana de Ação Católica.
Neste cargo, publicou uma obra que teve grande repercussão no País. “Em Defesa da Ação Católica”, prefaciada pelo Cardeal Bento Aloisio de Mazela, então Núncio Apostólico no Brasil.
Em 1950 recebeu do Santo Padre Pio XII autorização para a publicação do livro através do então Cardeal à testa da Secretaria de Estado.
É atualmente, o Professor Doutor Plínio Corrêa de Oliveira, Professor Catedrático das Faculdades de Filosofias, Ciências e Letras de São Bento e de Sedes Sapientia da Pontifícia Universidade Católica. E também colaborador de “Catolicismo”, tendo dado a esse jornal um impulso bastante grande em defesa da religião católica.
Como todos sabem, o Doutor Plínio Corrêa de Oliveira é também coautor de “Reforma Agrária – Questão de Consciência”, livro que foi lançado no momento em que todos os espíritos se achavam preocupados com a reforma agrária.
Esta, em linhas gerais, a nobre vida do ilustre conferencista que ora nos honra com a sua visita.
Professor Doutor Plínio Corrêa de Oliveira, quero, neste momento, em meu nome e dos universitários de Minas Gerais externar os mais sinceros agradecimentos pela honrosa visita que nos proporcionastes e trazer-vos ao mesmo tempo o calor dos nossos aplausos e a alegria dos nossos corações pela vida tão reta e tão dedicada à causa dos homens e da religião católica.”
[aplausos]
Locutor: Falará agora o Doutor Plínio Corrêa de Oliveira, redator de “Catolicismo”.
Excelentíssimas Autoridades, minhas senhoras, meus senhores.
Vós bem sabeis quanto é generosa, a mocidade e com que facilidade os moços se entusiasmam, com quanta facilidade eles…. [problema de gravação – se perde uma palavra]
Assim, pois, eu levo à conta dessas generosas demasias da mocidade as palavras de acolhimento tão amáveis, que acabam de me ser dirigidas, não só tão amáveis, mas tão eloquentes, pelo presidente da União Estadual dos Estudantes. Agradeço essas palavras. Agradeço-as e não só as agradeço como agradeço também o convite que a União Estadual dos Estudantes me fez nessa hora tão grave da nacionalidade, para vir falar na cidade de Belo Horizonte.
Vir a Minas Gerais, vir a Belo Horizonte que é o coração de Minas Gerais, vir a Belo Horizonte, Minas Gerais, vir a este lugar que é um dos bastiões da Cristandade no Brasil e em toda a América, para tratar dos magnos problemas da atualidade brasileira, para tratar de uma dessas reformas de base que preocupam tanto os brasileiros nesse momento e para dar o meu apagado concurso para que essas reformas de base se façam dentro de um sentido verdadeiramente cristão, é essa uma honra e é essa uma ventura que eu não posso deixar de assinaladamente agradecer no início dessa sessão.
É bem verdade que no Brasil se fala de reforma agrária e que se fala de reforma agrária em termos de um problema urgente e de um problema até premente. E exatamente na primeira página do livro de que tive a honra de ser co-autor com os Excelentíssimos Senhores Arcebispo de Diamantina, Bispo de Campos e economista Luís Mendonça de Freitas, exatamente na primeira página desse livro estabelecemos uma distinção que vem a propósito lembrar: reforma agrária, isto é, solução dos múltiplos problemas do campo no Brasil, e uma solução reformante, quer dizer, uma solução que tome certas coisas que são e que as altere para que sejam como devem ser. A respeito de uma reforma agrária concebida nesses termos, evidentemente não pode haver dúvida. A dúvida começa a se esboçar a partir do momento em que se cogita de saber como essa reforma agrária deve ser.
E para isso exatamente eu gostaria de encetar a explanação dessa noite com um esclarecimento [mexem no microfone]…
Os Srs. sabem que eu fui professor durante muitos anos na Faculdade de Direito de São Paulo. Eu não sei se os senhores conhecem a Faculdade. Fica na esquina do Largo de São Francisco com a Av. Brigadeiro Luís Antônio, num dos pontos de maior barulho de São Paulo. E à medida que o barulho ia crescendo, minha voz ia salteando e eu fui obrigado então a tomar o hábito de falar muito alto. E com isto eu fiquei inconciliável com os microfones. E por isso que eu pedi que esses microfones fossem desligados.
Então eu dizia que a respeito da questão da reforma agrária, o problema é de saber como ela deve ser feita. Adversários da reforma agrária, no sentido que eu acabo de dar à palavra, não os há. A discussão começa a partir do momento de saber como a reforma agrária deve ser considerada. E a respeito disso eu gostaria, se me permitissem, de começar por uma introdução que eu tomaria a liberdade de chamar, por assim dizer, uma introdução criteriológica.
Há uma visualização necessária para que nós compreendamos o problema da reforma agrária, para que nós nos situemos no ponto necessário para a ver devidamente, porque os problemas humanos são como os quadros: o mais belo dos quadros não é senão um pastiche quando ele é visto numa perspectiva que não lhe é favorável. E os mais intrincados dos problemas podem encontrar solução, a partir do momento em que encontremos o ponto de onde o problema deve ser visto. Mas não encontram solução, se nós não encontrarmos esse ponto. E assim, essa espécie de ponto inicial, que, se me permitem, eu passarei a focalizar a partir deste instante.
O Brasil, meus senhores, como nós todos sabemos e com ufania, é um País que chega agora, verdadeiramente, à sua maioridade. Se nós podemos dizer que a maioridade não é apenas a independência política, se nós podemos dizer que a maioridade é uma espécie de consciência de sua própria plenitude interna, é uma certa capacidade de afirmar-se pelo fato de que a gente sente que dentro de si começam a desabrochar, de um modo nítido e preciso, as características da personalidade, então, nós podemos dizer que a nossa maioridade está em franco processo de afirmação no momento presente.
Há um Brasil brasileiro. Há um Brasil de fisionomia própria, há um Brasil de métodos próprios, há um Brasil de psicologia própria. E é nessa hora de afirmação jubilosa de nossa mentalidade, de nossa maioridade espiritual no meio de tantos problemas difíceis e tristes da época presente, é nessa época em que nós podemos dizer que, como todo ente que atinge sua maioridade tem uma espécie de estilo pessoal, uma espécie de modo pessoal de encarar e de resolver os problemas, também a história do Brasil já mostrou que há um estilo pessoal, há um modo especial de afirmar que é próprio ao brasileiro no modo de encarar os seus problemas.
Dizia o provérbio antigo latino que “amicus certus in re incerta cernitur – o amigo certo se discerne nas circunstâncias incertas”. E eu poderia dizer que não é só o amigo certo, mas é o homem de valor e é o povo de valor. E nós então poderíamos nos perguntar quais são as características com que o Brasil costuma enfrentar as suas crises. Ao longo da história, como essas características se têm definido. Quais são as qualidades da inteligência nacional que devem ser consideradas aqui como um fator positivo para a solução de nossos problemas, para nós tomarmos então essas qualidades e as utilizarmos como instrumento de trabalho para a verdadeira visualização do problema da reforma agrária.
Bem entendido, os nossos problemas são mais ou menos parecidos – como são profundamente diferentes – dos do mundo inteiro. E, portanto, também, os nossos métodos são parecidos e são muito diferentes dos métodos empregados no mundo inteiro. Mas há algumas circunstâncias que indicam no gênio brasileiro algo de especial no modo de resolver os seus problemas. E é esse algo especial que, numa rápida introdução, eu quero definir.
Vamos tomar, por exemplo, a Independência do Brasil. A Independência do Brasil deu-se, mais ou menos, como a Independência de todos os países latino-americanos. Em certo momento, o processo de diferenciação entre a colônia e a metrópole estava completo, sobrevieram circunstâncias acidentais que provocaram um mau humor mais profundo entre as colônias e a metrópole e por meio de certas crises e de certas rupturas declarou-se a Independência.
Mas quando nós vemos o modo pelo qual o Brasil se constituiu independente, há um pequeno pormenor que é típico e que eu lembro nesse momento.
Os senhores sabem, com certeza, que depois de reconhecida a Independência do Brasil por todas as grandes potências, depois de reconhecida também por Portugal, de quem nos emancipáramos, no próprio tratado de reconhecimento da Independência brasileira – quer dizer, no ato mesmo em que o Brasil se afirmava separado de Portugal – entra uma cláusula em que entra bem a alma brasileira. O Brasil declara que, apesar de separado de Portugal, o rei D. João VI tinha o direito de usar até o fim de sua vida o título de Imperador do Brasil.
Os senhores estão vendo essa separação que se faz com saudades, essa separação que se faz com mau humor, que se faz com energia, que se faz com a força de um povo que quer ser independente e tem a noção de sua dignidade, mas ao mesmo tempo, no momento em que a operação se define, o brasileiro como que se volta sobre si próprio, como que ele olha um pouco para seu passado próximo, considera aquele rei bonachão, aquele rei amável, aquele rei afável que governou tão bem, que nos trouxe tantas coisas boas, que gostou tanto de nós que nem queria voltar para Portugal, e então, no momento em que todos os laços se cortam, o Brasil restabelece afetuosamente um laço.
É um laço todo ele afetivo, sem nenhum significado jurídico, que não traz nenhum atentado à independência nacional, mas que exprime – ao par do princípio fundamental de nosso direito à independência – exprime a visão de um outro lado da questão.
No momento em que o Brasil se separa de Portugal, talvez a única das nações americanas, que em relação à sua metrópole, por meio dessa titulatura singular, tem a inteligência e tem a subtileza de dizer, por meio dessa titulatura: muito obrigado! Nós queremos ser independentes, mas o passado não está cancelado, a gratidão não está cancelada, a memória dos benefícios não está recusada. Nós somos independentes, é verdade, mas aqui está um aspecto gratuito e afetuoso de nosso reconhecimento. Muito obrigado, pode intitular-se Imperador do Brasil até o fim da vida! E D. João VI, homem subtil e que me parece ter sentido muito bem o Brasil, D. João VI usou de fato esse título até o fim da sua vida.
Passamos para uma outra página, bem mais triste de nossa história, que é o problema tão doloroso da escravidão do elemento negro.
Pronuncia-se a escravidão, vêm as lutas, há um conflito sério entre o partido abolicionista e o partido escravagista, a luta chega ao seu ápice com o 13 de Maio, faz-se pacificamente a libertação dos escravos, mas depois de feita pacificamente a libertação dos escravos, a história se ocupa de narrar os acontecimentos na sua perspectiva mais longínqua. E então mostra o seguinte: como era a escravidão no Brasil. Quer dizer, ao par de muitos atos de selvageria, muitos atos de crueldade, a doçura de muitos senhores.
E conta então o caso de um grande chefe escravagista do Parlamento brasileiro que ia, para combater a abolição, ia na sua carruagem para o Parlamento com um escravo atrás. Começa a chover, ele abre a porteira e grita para o escravo: “Vem cá, meu filho, que está chovendo”. O escravo entra, senta-se ao lado dele, e o escravagista e o negro escravo vão juntos abrigados da chuva até o Parlamento…
Por mais deplorável que seja ser-se escravagista, aqui está uma nota de brasilidade, aqui está uma nota muito típica até de ser escravagista. É uma nota de afeto, que mesmo dentro da estreiteza de horizontes do escravagismo, mesmo dentro da falsidade de horizontes do escravagismo, entretanto, faz sentir a nota humana, faz sentir o outro aspecto da questão, faz ver o outro lado da medalha. E então, esse senhor de escravos que, muito brasileiramente, convida o escravo para passar para dentro, e com essa expressão: “Vem cá meu filho, porque está chovendo”. É um modo muito nosso de fazer as coisas.
Depomos a Monarquia. Manda-se embora o velho imperador. O fato de D. João VI se repete: o Brasil manda embora Pedro II, mas no ato de mandar embora tem uma preocupação única na história de todos os soberanos depostos, uma preocupação única na história pelo destino desse imperador. E então vota para ele uma verba de cinco mil contos, que naquele tempo corresponderia a muitíssimo mais de uns 300 a 400 mil contos de hoje, para o bem estar dele no Exterior.
Então, ao mesmo tempo em que se afirma a mudança do regime, entra uma mão amiga vendo o outro lado do problema: o destino do velho, serviços prestados, a respeitabilidade individual etc., etc. E com essa capacidade de ver os problemas na sua complexidade, de não simplificar os problemas, de ter em mente os vários aspectos que eles apresentam, eis a República brasileira que tem um gesto único na história de todas as proclamações de República.
Esses fatos revelam, sem dúvida, alguns traços de uma certa apatia nacional, ou de uma certa indolência nacional. Mas revelam, de outro lado também – e isso é indiscutível – uma capacidade de ver os problemas em todos os seus aspectos, que é o que me parece muito importante no que diz respeito à reforma agrária.
Com efeito, no que diz respeito à questão da reforma agrária, para mim o grande problema não consiste em provar isso ou aquilo, mas consiste sobretudo em apresentar os problemas, em saber focalizar os problemas. Porque focalizados devidamente os problemas, a solução não oferece muita margem para dúvida, a meu ver. E nós precisamos evitar nisto uma certa simplicidade que, por exemplo, se deu muito no Brasil com o problema que não deixa de ter suas analogias com a reforma agrária, e é a questão da inflação.
Colocados diante de um operariado que, infelizmente ganha pouco, o brasileiro que tem o temperamento afetivo e que tem o senso da justiça, não pode deixar de desejar ardentemente que esse operário ganhe mais.
Mas vem então a visão simplificada do problema: se ele ganha pouco e deve ganhar mais, qual é a solução? Aumentar os salários! Está muito bem, aumentam-se os salários. Mas por uma espiral cujo mecanismo hoje é bem conhecido, uma vez aumentados os salários, aumenta o custo de vida e daqui a pouco o operário está ganhando pouco de novo.
E então, novo gesto de emoção tão explicável, tão simpática, novo gesto de emoção, novo aumento de salários; resultado, novo aumento de vida. E assim, numa espécie de movimento pendular, nós chegamos até o ápice da inflação em que estamos hoje – evidentemente não só por causa dos aumentos dos salários dos operários – mas certamente em parte ponderável por causa disso.
Então, diante do problema doloroso do aumento do salário dos operários, o que que nós deveríamos ter feito? Nós nos deveríamos ter interessado menos? Nunca! Nós deveríamos ter feito menos? Nunca! Nós deveríamos ter feito mais.
Mas qual é esse mais que nós deveríamos ter feito? Entre outras coisas, nós deveríamos ter pensado mais, nós deveríamos ter estudado mais e nós deveríamos ter compreendido que esses aumentos meramente numéricos que a nossa generosidade nos aconselhava e, mais do que nossa generosidade, nosso senso de justiça exigia, que esses aumentos meramente numéricos, entretanto, não resolveriam nada, e que o nosso próprio zelo, para ser mais esclarecido, deveria ter ido às raízes do problema, deveria ter estudado não só a causa da insuficiência de salário, mas deveria ter inserido o problema dos salários no conjunto dos problemas econômicos nacionais.
Nós nos deveríamos ter lembrado daquela velha narração de Menênio Agripa [cônsul em 503 A.C.], que falou, daquele velho apólogo dele, a respeito da luta de classes já no tempo da Roma dos reis, em que a plebe quis sair de Roma e ele foi correndo atrás da plebe e pediu que a plebe voltasse. E narrou aquele fato famoso de que a plebe e a aristocracia eram elementos de um só corpo social e que se houvesse conflito entre a cabeça e o resto do corpo, evidentemente haveria a morte, a desagregação do organismo.
Essa ideia de que o problema operário, como o problema rural, são elementos de todo o problema brasileiro globalmente falando; e que no interesse do próprio trabalhador manual, como no interesse do próprio trabalhador urbano, é preciso considerar que eles são membros de um todo e que é preciso saber ver os problemas desse todo antes de atender, propriamente, para a parte, isso é exatamente aquilo que me parece indispensável na focalização da reforma agrária.
E me parece, meus senhores, que essa verdade, essa preocupação de inserir esse problema dentro de conjuntos mais vastos, é particularmente sensível nesse documento tão citado, tão explorado pela demagogia, mas ao mesmo tempo documento tão precioso e tão profundo nos seus ensinamentos, tão pouco lido e tão pouco estudado, que é a encíclica Mater et Magistra, do nosso Santo Padre João XXIII.
“Mater et Magistra” [Mãe e Mestra], a Igreja pode dizer-se tal em relação ao povo brasileiro. Ela é Mater do Brasil, porque o impulso missionário, de que nasceram as navegações, veio exatamente da Igreja. Ela é Mãe do Brasil porque as naus que vieram para cá traziam consigo, exatamente, a Cruz de Cristo para exprimir bem o intuito apostólico das navegações que para cá se faziam.
Ela é Mestra do Brasil, porque toda a nossa civilização foi modelada segundo os ensinamentos dela. E eu creio bem que nessa época de crise nada mais justo, nada mais razoável, nada mais oportuno do que nós nos voltarmos para a Igreja e perguntarmos à Igreja como é que o problema rural deve ser visto.
É preciso dizer a respeito da encíclica Mater et Magistra que ela é um código de todos os ensinamentos pontifícios anteriores; que ela declara expressamente que conserva e que reafirma todos os documentos pontifícios anteriores. Mas como a doutrina da Igreja é uma espécie de palácio que está sempre em novas construções de novas maravilhas, João XXIII acrescenta, para nossos dias, tendo em vista os problemas contemporâneos, ele acrescenta a essa estruturação doutrinária monumental mais alguns elementos. E exatamente uma das partes mais extensas, uma das partes mais pormenorizadas é a parte referente aos problemas da agricultura.
Assim, portanto, a Mater et Magistra nos dá elementos preciosos para estabelecermos os princípios fundamentais de uma verdadeira política rural e, por essa forma e dentro desse quadro, compreendermos o que nós devemos fazer para a solução do problema rural brasileiro.
A primeira coisa que é preciso notar é que a Mater et Magistra se alarma particularmente com um fenômeno que ocorre no Brasil, em medida não pequena, e que é a evasão do homem do campo. A preocupação de fixar o agricultor na terra é uma das maiores preocupações da encíclica e vós bem sabeis, no momento presente, como essa é uma preocupação dos centros populosos do Brasil.
Então o Papa João XXIII diz precisamente que esse desejo de abandonar o campo com a consequente depressão da produção rural, que esse desejo provém de razões que são, ao mesmo tempo, psicológicas e técnicas. Entre as razões psicológicas ele menciona um certo desejo, um certo complexo do homem do campo – o Papa não emprega a palavra, mas é bem o pensamento dele – de serem caipiras. A ideia de que o homem do campo é menos do que os outros, de que ele vale menos do que os outros. E, portanto, o desejo de evadir-se do campo e de ir para as grandes cidades.
De outro lado, diz ele, concorre para isso o desejo de novidades, que é tão frequente em nossa época. Por outro lado, a ganância de uma fortuna rápida; e por fim a miragem da vida mais livre que as grandes aglomerações oferecem.
Depois, diz o Papa, que se acrescenta a isso uma certa situação de desprezo pela agricultura no mundo inteiro, de tal maneira que as atividades que não são agrícolas florescem muito. A indústria floresce muito, o comércio floresce muito, os serviços públicos florescem muito, mas no mundo inteiro a agricultura se ressente de um certo desinteresse.
Por outro lado, o fato do nível de vida do agricultor ser inferior ao da cidade, concorre para que, tudo junto, essa evasão dos campos se produza. E então, ele diz textualmente, que se trata aí de um problema de tamanha importância, que atualmente interessa a todas as nações. E ele focaliza o círculo vicioso que decorre dessa depressão da agricultura: se a agricultura produz pouco, os víveres são escassos. Se os víveres são escassos, nas cidades se vive mal. Se nas cidades se vive mal, a crise se generaliza. Mas, de outro lado, a indústria continua a produzir e produz mais precisamente porque a fluência dos braços na cidade é ainda maior.
E então se pronuncia um desequilíbrio em toda economia dos países, fazendo com que a produção industrial seja às vezes pletórica, enquanto a produção agrícola é muito escassa.
E daí então uma espécie de impossibilidade do proprietário e do agricultor, do trabalhador manual, ganharem o suficiente e uma invasão da pobreza no campo, que não é só o resultado da ganância de alguns patrões que queiram pagar mal, nem as reclamações nascidas daí são só o resultado do espírito de ganância dos trabalhadores. Mas é o colocar a agricultura, tomada como um conjunto, em circunstâncias desfavoráveis, é tomar essa peça mestra da economia e colocá-la nas condições de não poder pagar nem um legítimo lucro para o proprietário, nem um legítimo salário para o trabalhador manual, é nessa torção dos fatos que está o problema mais profundo da agricultura em nossos dias.
Então, diz o Papa, que é necessário estudar detidamente o que fazer para resolver os problemas rurais. E ele então indica uma série de providências que me parecem que podem muito bem ser consideradas como os lineamentos de uma legítima e de uma urgente reforma agrária.
O Papa fala textualmente na necessidade dos governos de promover o reparo das estradas; melhorarem os transportes e as comunicações; dotarem de água potável as habitações, inclusive do trabalhador manual; melhorar para que tenham um nível de condições humanas, e de acordo com as exigências de nossa época, as habitações do trabalhador rural; dar assistência sanitária; dar escolas elementares, técnicas e profissionais; favorecer de todos os modos a vida religiosa e recreativa do trabalhador manual; prover com equipamentos convenientes a agricultura, de maneira que ela possa produzir na plenitude daquilo que as necessidades nacionais podem exigir.
Ele acrescenta a conveniência de métodos mais modernos para a técnica produtiva. Ele mostra que essa técnica, essa melhora de técnica exatamente deve produzir o aumento da renda agrícola. Recomenda – e nosso agro-reformismo nacional de sabor esquerdista é tão orientado em sentido oposto – em vez de recomendar pressão fiscal sobre a agricultura, o Papa recomenda exatamente um descongestionamento fiscal em relação à agricultura. Depois seguros sociais, preços, promoção – medida esplêndida – de indústrias no campo e indústrias complementares da agricultura que possam nutrir melhor toda a vida do campo.
Outro assunto importantíssimo e tão delicado: defesa dos preços contra essa hidra da qual tão pouco se fala no debate da reforma agrária, e que é o açambarcador. O açambarcador que ganha muito mais do que o agricultor habitualmente e que é o responsável em grande parte pela carestia. Defesa de preços nos mercados internos e externos.
Depois ele fala finalmente a respeito da necessidade seguinte: de haver entre as classes sociais um grande espírito de concórdia, de maneira que cada parte reconheça aquilo que a outra tem direito; que o patrão ou o fazendeiro tenha a disposição de generosamente e em toda medida em que lhe seja possível, auxiliar o trabalhador manual para sair de sua situação desumana. Mas que, por outro lado, o trabalhador manual, por um trabalho intenso, por um trabalho dedicado, sério, efetivo, concorra com toda energia para o aumento da produção rural, de maneira que o próprio lucro da terra possa ser suficiente para pagar não só a ele, mas pagar também o proprietário da terra em que ele trabalha.
Assim, esse clima de paz social, esse clima de tranquilidade social dentro do desejo de uma justiça absoluta e de uma caridade recíproca, esse clima é o clima que o Santo Padre deseja para a solução desse problema.
Mas, é preciso acrescentar, esse clima que comporta também – e nós falaremos disso daqui a pouco – uma reforma de estrutura rural, esse clima, entretanto, deve ser tal que nós não esperemos nem soluções muito rápidas, nem soluções muito brilhantes. Porque como muito bem lembra o Papa Pio X na encíclica Fermo Proposito, a Igreja que fez a maior obra social de todos os séculos, porque foi Ela que produziu a libertação de todos os escravos na Europa, a abolição da servidão na Europa, a formação das instituições de caridade, de assistência por toda a Europa, coisas desconhecidas nas nações pagãs, a Igreja trabalha com a calma, a eficiência e a seriedade da boa mãe.
A Igreja não trabalha com demagogia. Ela sabe que todos os problemas devem se resolver numa lentidão apressada; que é preciso ir o mais depressa possível, mas é preciso absolutamente não correr demais.
Me impressiona essa atitude séria e maternal da Igreja, porque exatamente no que diz respeito a mães, eu tenho notado atitudes bem diversas. Vendo, às vezes, mães à cabeceira de seus filhos, quando estão doentes, portarem-se de um modo quase descabelado. E vendo outras que são calmas, que são sérias, que têm resignação, mas que lutam o quanto podem para arrancar seus filhos das garras da morte, eu vejo depois qual é o diagnóstico. A mãe boa é calma, séria e eficiente. Ela faz tudo, mas ela não se desgrenha nem corre demais. Pelo contrário, a mãe relaxada, a mãe intemperante, essa urra, essa uiva, essa chora e essa não produz nada. Essa é a aplicação do princípio de São Francisco de Sales: “o bem não faz barulho e o barulho não faz bem”.
Nesses problemas, a demagogia é a mãe superficial; é a madrasta afetada, que uiva e que procura correr, mas que não resolve nada, nem séria nem profundamente.
Enquanto a Igreja é a mãe séria, a mãe eficiente, a mãe dedicadíssima que anda passo a passo sem perder um minuto, mas que não quer empregar na solução dos problemas uma celeridade e uma rapidez que absolutamente eles não comportam.
Essa linha geral da doutrina de João XXIII vós a encontrais, aliás, explanada, num documento de vosso Episcopado – ao menos do episcopado de uma boa parte do Estado de Minas Gerais – que merece todo louvor. Documento que foi até publicado sem que houvesse ainda tempo de conhecer ainda a Mater et Magistra, mas que tem toda a inspiração da Mater et Magistra, e que é a Declaração dos Arcebispos e Bispos do Vale do Rio Doce.
Se os senhores analisam bem esse documento, os senhores encontram que tudo quanto pode ser feito para resolver o problema agrário, é feito, é desejado e é recomendado, quer pela Santa Sé, quer pelas autoridades diocesanas. Mas no documento de João XXIII se fala, de passagem, de uma restruturação rural e no documento dos bispos do Vale do Rio Doce nem se fala disso. E qual é a razão?
Aqui nós entramos no ponto diferencial.
É bem evidente – antes de passar adiante, e é preciso frisá-lo uma porção de vezes – que a Igreja considera o regime do salariado um regime legítimo. O espírito marxista, negando a legitimidade da propriedade privada e considerando que nenhum homem tem direito a nada, não pode estar de acordo em que um patrão retire um lucro da terra que explora. Se a terra não é de ninguém, é natural que todo produto da terra seja de quem trabalha. Quer dizer, quem nega o direito de propriedade tem que achar que todo produto da terra é de quem trabalha.
Mas quem, por outro lado, afirma o princípio de propriedade, compreende que na produção rural concorrem dois fatores, dos quais um é o trabalho do trabalhador, mas outra é a terra na qual o trabalhador trabalha. E que se o produto é a consequência do concurso desses dois fatores, no preço desse produto os dois fatores têm que estar interessados, têm que estar conservados.
O fator trabalho, recompensado de acordo com o que disse Pio XI na Quadragésimo Anno, muito sabiamente, por um salário que corresponda a três características:
Primeiro, deve ser um salário mínimo. E, nesse sentido, não podemos estar de acordo com o tipo de salário sub-humano que reduza o trabalhador manual a um esqueleto.
O que é um salário mínimo? É o salário suficiente para que o trabalhador manual se mantenha, o trabalhador econômico e operoso se mantenha num nível compatível com a dignidade humana. Quer dizer, não só que ele tenha um pão para não morrer de fome, um pouco de água para não morrer de sede e uma casa na qual diretamente não chova, mas que seja uma tapera dentro da qual se tenha horror de entrar, mas que ele tenha a quantidade de nutrição, a qualidade de traje e de habitação que seja compatível com a dignidade humana. O homem foi criado por Deus para viver razoavelmente, e não para viver como mendigo. E, portanto, é natural que ele tire isso do seu trabalho.
Ao caráter mínimo desse salário, ajunta-se o caráter justo. Quer dizer, não basta que o salário seja mínimo, mas se um trabalhador manual, por uma excepcional capacidade de trabalho, produz mais do que os outros, não é justo que seu salário seja tão pequeno quanto o dos outros. Se o seu trabalho é mais do que o standard, seu salário tem que ser mais do que o normal. A justiça estabelece uma proporção entre o que o operário produz e a qualidade do salário. E por causa disso é preciso que o salário seja um salário maior para trabalho maior ou de qualidade melhor. Então, aí está o princípio da justiça do salário.
E, princípio muito caro à sociologia cristã, o salário tem que ser familiar. Quer dizer, o operário manual, quer seja o rural, quer o urbano – no momento nos ocupamos mais especialmente do rural – o trabalhador tem o direito de manter a sua família.
O normal é que a mulher possa viver no lar. O normal é que ela possa criar os seus filhos. E isso tem que sair do salário do trabalhador. É bem evidente que quando certas circunstâncias, uma fazenda não produz o suficiente etc., então não se pode pagar isso etc., mas o que é normal e para o que se deve caminhar, de maneira que não haja nenhum sossego enquanto isso não se consiga, é um trabalho assim.
Mas a Igreja vai um pouco mais longe. E além de desejar isso, deseja que o trabalho, sendo justo e mínimo, produza o suficiente para que o operário, o trabalhador, o colono econômico e ao mesmo tempo produtivo, possa acumular uma quantia que seja para ele um pequeno capital pessoal. Então essa transformação do trabalhador manual num pequeno proprietário, não necessariamente proprietário de terras, mas num homem que tem uma certa pequena base econômica sua e de que ele pode dispor, essa transformação é como que a flor da boa organização católica do trabalho.
É aquilo que dá exatamente ao operário algo que é um lastro econômico para família e um elemento de autonomia da família, e que pode ser por exemplo o famoso “pé de meia”, tão frequente na França, onde o trabalhador rural vai metendo dentro de uma meia grande o seu dinheiro, a meia é de tricô e vai crescendo de acordo com a economia e que é a dona de casa que maneja, de tal maneira que numa espécie de curioso matriarcado rural, o homem não pode mexer no “pé de meia”, provavelmente por ser menos ajuizado na economia.
O fato é, e aqui nós poderíamos então, minhas senhoras, fazer uma advocacia pró-matriarcado rural, que teria suas oportunidades para vencer nessa atmosfera em que estamos – então, voltando ao nosso ponto, eu dizia que era preciso que essa economia florescesse, como a flor da organização católica do trabalho.
Mas ao par dessa situação é preciso perguntar o que a Igreja pensa da pequena propriedade. Ela pensa da pequena propriedade – e João XXIII o diz, como veremos em breve – de um modo muito nítido. A pequena propriedade deve ser uma das múltiplas formas de propriedades existentes. E na encíclica Mater et Magistra as suas palavras não poderiam ser mais claras.
Ele diz o seguinte: “Ninguém pode fixar de modo genérico qual seja a estrutura agrícola mais conveniente, visto haver grandes diferenças nesse setor, dentro de cada país e ainda mais nas diversas partes do mundo”.
Portanto, imaginar que está de acordo com o espírito da Igreja um sistema só de pequenas propriedades, padronizando todas as propriedades numa só estrutura rural, é contrário ao ensinamento direto da Mater et Magistra, que deseja a pluralidade dos tamanhos de propriedade, de tal maneira que num país grande como o Brasil haja, de acordo com as circunstâncias orgânicas que se vão formando as propriedades grandes, médias e pequenas, de acordo com a índole do operariado, de acordo com as circunstâncias da região, com as exigências da cultura, mas sem embargo disso – e também nesse ponto a encíclica Mater et Magistra é muito expressa – a Igreja deseja formalmente que haja também pequenas propriedades.
E que haja possibilidade do trabalhador manual aceder à condição de proprietário, não tornando-se o único tipo de proprietário, não se estabelecendo em que proporção deve ser, mas de tal maneira que esse acesso à condição de proprietário rural possa ser um fenômeno social não esporádico, não raríssimo.
Com efeito, a Mater et Magistra continua nesses termos:
“Os que consideram a dignidade do homem e da família segundo a própria natureza, ou sobretudo segundo a doutrina cristã, esses certamente pensam numa empresa agrícola e, mais ainda, numa empresa agrícola de dimensões familiares…” – que é exatamente a pequena propriedade, cuja área de trabalho corresponde ao trabalho manual dos membros da família – “configurada essa propriedade à imagem de uma comunidade de pessoas, ou seja, uma empresa na qual tanto as mútuas relações dos membros, como a conformação dela mesma, se acomodam às normas da justiça e aos princípios da doutrina cristã”.
E ele continua: “Contudo, a empresa de dimensão familiar somente será firme e estável quando render tanto quanto convém ao digno teor da vida de família”.
Os senhores veem mais uma vez uma ressalva: fazer pequenas propriedades como as há em tantos lugares, que não se mantêm por si próprias, para que, e por quê?
“Para obter esse ponto, é absolutamente necessário que os agricultores sejam bem instruídos em seus trabalhos em geral e aprendam as novas técnicas, bem como sejam auxiliados na sua profissão por técnicos”.
Os senhores veem aqui a sábia lentidão da Igreja. Mesmo no promover essa multiplicação das pequenas propriedades rurais, a necessidade de preparar o homem para ser pequeno proprietário, para depois instituir a pequena propriedade. Porque o mais difícil não é ter a pequena propriedade. O mais difícil é ter um pequeno proprietário verdadeiramente capaz. Isso é que é a lentidão de uma mãe boa, que faz bem e que não faz barulho. Porque é muito mais bonito a gente agitar as massas: “Vamos imediatamente dividir as terras, não podemos esperar mais um minuto!!…” Todo mundo dirá: “que homem generoso! Ele está ardendo em caridade”. Sim, está também ardendo em superficialidade e o fogo da superficialidade tem ateado muitos incêndios na História…
Continua: “É preciso que os agricultores formem sociedades cooperativas, constituam associações profissionais e participem eficientemente nos negócios públicos, isto é, tanto nos organismos de natureza administrativa, quanto na política”.
Os senhores estão vendo outra dificuldade do pequeno proprietário brasileiro, para o qual ele precisa ser formado. Para que as associações que ele forme não deem em simples kolkhoses, para que ele possa ser um elemento autônomo diante do Estado e não um escravo diante do Estado, é preciso que ele tenha uma formação, que é preciso dar-lhe, antes de colocar em suas mãos, esse fardo, esse esplêndido fardo que é uma pequena propriedade.
Assim, resumindo: salário justo, familiar, mínimo, de um lado; de outro lado, necessidade de propriedades grandes, médias e pequenas; legitimidade das três formas de propriedade; preparação do trabalhador rural para que ele seja capaz de ser verdadeiramente proprietário. Essas são as condições que estabelecem balizas para uma política agrária verdadeiramente positiva ou, digamos, para uma boa reforma agrária.
* * *
Nós nos encontramos, agora, diante do problema da desapropriação das terras. E diante desse problema devemos dizer o seguinte.
Corre por aí a ideia, exatamente ela mesma muito superficial, de que as terras devem ser desapropriadas e divididas, porque se alguns têm muito e outros têm pouco, o meio mais razoável é dividir. É um pouco parecido com um pai que tem um filho muito alto e depois tem um filho muito baixo. E diz: “Bem, eu vou serrar as pernas do fulano e vou dar para o sicrano”.. [risos]
Eu compreendo que seja um processo muito simples… Se tivesse filhos de massa, eu creio que o problema se resolveria facilmente… Mas quando se vão resolver assim os problemas, aí que monstros se fabricam!
A ideia vem acrescida do princípio de que nossas terras já não dão mais para manter o país e que é, portanto, necessário estabelecer um regime no qual a pequena agricultura faça com que cada um viva da terra que produz. E daí vem então o lado reprovável, o aspecto condenável que diferencia o agro-reformismo cristão do agro-reformismo socialista e anti-cristão.
O agro-reformismo cristão vai até onde eu disse: ele admite que, em princípio, em casos de calamidade pública, quando o bem comum não pode ser obtido a não ser por meio de desapropriação, se faça uma desapropriação por justo preço do proprietário. Mas isso são circunstâncias excepcionais, que é preciso provar.
Ora, até aqui não se provou a necessidade dessa partilha de terras. E como os senhores verão logo mais, a coisa mais provada que há no Brasil é que essa partilha de terras não é necessária. E uma vez que essa partilha de terras não é necessária, o bem comum não a reclama, ela está fora dos cânones da doutrina católica e ela deve, portanto, ser rejeitada.
Em que se funda isso? Isso se funda num princípio que é intrínseco à doutrina católica, a tal ponto que um católico não tem o direito de pôr em dúvida, porque está definido nas encíclicas e especialmente na famosa encíclica Rerum Novarum de Leão XIII. E é o princípio da propriedade privada.
Eu vejo muitas vezes muitas pessoas de um temperamento muito acomodatício, que dizem o seguinte: “o comunismo não é bom porque é violento, paredón, sangue, não vai… O comunismo não é bom. O capitalismo, como está agora, também não é bom. Então, um socialismozinho… é um modo de resolver bocejando, não é? Você quer chegar até lá, eu quero chegar até cá, para que brigar? Vamos ficar no meio, um socialismo… Um arranjo qualquer indefinido para a gente não brigar. Um socialismozinho é bom”…
E dizem: “Ainda que atente contra o direito de propriedade, isso não tem nada contra a doutrina da Igreja. Porque pode deixar as igrejas abertas, funcionando. Deixa os vigários fazendo sermão, tocando sino, tudo quanto eles queiram. Está muito bom. Não se persegue a Igreja, a Igreja também não combate. É o socialismo. Então, por que não pode haver um socialismo cristão?”
É preciso ver bem a razão disso. É que a doutrina católica reputa a propriedade privada um princípio fundamental de sua Moral. E Ela não pode transigir com os princípios de sua Moral, porque Ela é a guarda da moralidade, é a coluna da moralidade por mandato divino. E pedir-lhe que renuncie ao princípio da propriedade privada, é pedir-lhe que renuncie à própria missão moralizadora que Ela tem em vista.
De que maneira a Igreja, e especialmente o Papa Leão XIII, provam que o princípio da propriedade privada está intimamente conexo com a doutrina católica? Eles o provam partindo de um ponto, que é um ponto tão importante, que eu não sei como ele não é mais exposto, mesmo em manuais de direito natural e de sociologia.
O ponto de partida primeiro da justificação do princípio da propriedade privada é o seguinte: os senhores veem uma ave que passa pelo céu; os senhores veem, por exemplo, uma gaivota que voa sobre o mar. Essa gaivota esvoaça, esvoaça e, em certo momento, os senhores percebem que ela opera um mergulhão, ela chega por debaixo d’água, e pega um peixe e sai voando com o peixe. Ela vai e com uma agilidade extraordinária, ela solta o peixe e de outro lado pega, ajeita no bico e engole o peixe. É um fenômeno natural que se passou.
Qual é a origem desse fenômeno natural? É que a gaivota é um ser vivo. E todo ser vivo vive do emprego dos recursos de seu próprio organismo para viver. A gaivota tem apetite, a gaivota tem necessidade de se alimentar; ela tem, por outro lado, uma vista muito penetrante. E o seu apetite tem uma característica deplorável para o reino dos peixes: é um apetite de peixes… O resultado é que a gaivota assim colocada, ela mobiliza os seus recursos e ela visualiza o peixe e pega o peixe. Ela o que fez? Aplicou uma regra da natureza: todo ser tem o direito de servir-se dos seus próprios recursos para sua própria vantagem.
Os senhores veem o peixe. O peixe, por uma antena qualquer misteriosa, percebe muitas vezes a gaivota. Não se pode saber bem como é que um peixe vê o que se passa fora da água, mas eles lá têm as suas intuições. E quando as gaivotas se aproximam, os peixes começam a fugir. Mas eles mesmos vão pegando uns outros seres que encontram, às vezes até animais dentro do mar, e devoram nessa fuga, porque eles repetem o jogo da gaivota. Cada um tem o direito de se manter com seus próprios recursos, porque assim Deus o fez, porque assim a Natureza o fez.
Quando se trata de animais, não se pode falar propriamente de direitos. Nós podemos dizer, não que há um direito da gaivota, mas podemos dizer que a gaivota opera assim em virtude da ordem do universo, dentro da qual ela está colocada.
E quando se trata dos homens, não. Como o homem tem uma alma imortal, criada à imagem e semelhança de Deus, é um ser inteligente e livre, o homem tem o direito e o verdadeiro direito de se servir de sua inteligência e de sua vontade para comer. É a regra universal que o produto do trabalho do homem, o produto de sua inteligência, de sua agilidade, da aplicação do seu esforço, vai primeiro e diretamente para si. Não vai para o Estado, não vai para o próximo, não vai para ninguém, vai para o próprio homem. Porque o homem – dono de si e não escravo -, o homem ser inteligente e livre e não um animal, o homem tem direitos. E negar que o homem tenha direito ao produto do seu trabalho para si mesmo, é reduzir precisamente o homem à condição de um animal.
Agora, acontece que, diz muito bem Leão XIII, nós imaginemos dois homens: um que vai comendo à medida do que precisa, numa ilha deserta. Um Robinson Crusoe num território farto. Esse homem vai comendo, vai se servindo do que ele quer e não economiza nada. Mas há depois um outro homem que trabalha mais do que ele, porque depois de ter tido o trabalho de subir num coqueiro e pegar um coco, ele ainda arranja um jeito qualquer para fazer uma corda para laçar cocos.
Resultado, é que ele trabalhou nas horas vagas e ficou com algo que é mais do que o simples fruto que ele colhe. Ele ficou com um instrumento de trabalho.
Pergunta-se: qual é a razão pela qual ele é dono do instrumento de trabalho? É a mesma razão pela qual ele é dono do seu próprio corpo. Ele, com seu corpo, modelou algo que não valia nada e lhe deu utilidade, ele se apropriou disso legitimamente. Ele é o verdadeiro dono. E, portanto, o homem não é só dono daquilo de que ele se apropria, mas ele é dono também daquelas coisas que ele produz. Ele é dono dos instrumentos de trabalho.
E então pergunta Leão XIII: mas como é que o homem então, depois de ser dono daquilo que ele produz e daquilo de que ele se apropria, ele pode ser dono da terra também? E Leão XIII diz uma coisa que, para o agro-reformismo socialista e anti-cristão é preciosa, e que São Pio X, no seu famoso Motu Próprio sobre questões sociais repete.
Leão XIII diz o seguinte: como as necessidades do homem se renovam sempre e a natureza humana pede estabilidade, é natural que o homem, colocado diante de uma terra, procure plantar. E se aquela terra não tem dono e ele planta na terra, ele se apropria da terra, ele fica dono da terra. E assim a propriedade da fonte de produção nasce também.
E além de nascer a propriedade da fonte de produção, pode acontecer que um homem diga o seguinte: eu vou naquela terra lá e me aproprio dela, porque essa aqui vai cansar-se e daqui a alguns anos eu vou trabalhar lá; ou porque eu quero ter aquela terra para dar para meu filho quando ele ficar mais velho. Ele se apropria daquela terra e mesmo a terra sem uso fica legitimamente dele.
E diz Leão XIII e repete São Pio X: “identificar o uso da terra com sua propriedade, pretender que a terra não usada não tem dono, é equiparar o homem ao animal”. Porque o animal, realmente, só tem uso. Um bicho chega no lugar, serve-se daquilo e vai embora. Não se apropria de nada. Mas é próprio do homem ser dono e ser dono de modo que essa propriedade não se identifique com o uso.
Então, nós prosseguimos e perguntamos o seguinte: qual é o título de propriedade que o homem tem sobre a terra?
A resposta muito simples é a seguinte: depende, provém da propriedade que o homem tem sobre si mesmo. Pelo próprio fato de ser dono de si, o homem é dono do seu trabalho. O capital, diz muito bem Leão XIII, não é senão o salário condensado. É trabalho condensado. E é do próprio direito do trabalho que nasce o direito de propriedade. E violar o direito de propriedade, transgredir o direito de propriedade é o que pode haver de mais contrário, portanto, à ordem estabelecida por Deus.
Nós poderíamos nos perguntar, então, qual é a consequência que se tira daí. É uma consequência fecunda em ensinamentos. Por mais que a doutrina católica imponha a justiça e a caridade para com os que trabalham, a ponto de qualificar como pecado que clama ao céu e brada a Deus por vingança o fato da pessoa não pagar devidamente o salário aos seus operários; por mais que Ela exija essa justiça e essa caridade advertindo que os poderosos serão poderosamente atormentados no Inferno se eles não corresponderem aos seus deveres; Ela, de outro lado, lembra que os interesses dos patrões e dos empregados são comuns; que esses interesses não devem ser vistos à maneira de lutas de classes, pelo choque entre uma categoria e outra.
E no próprio modo de defender o direito de propriedade do trabalhador, a Igreja mostra que a raiz é a mesma do que o direito de propriedade do proprietário. E em face de um Estado onipotente que queira tirar tudo aos homens, a afirmação do direito de que o operário é dono do seu e o patrão é dono do seu e que eles são solidários na mesma obra em vez de serem inimigos.
Assim visto rapidamente o assunto, me parece que seria interessante fazer uma referência ao que diz respeito ao socialismo.
Poder-se-ia dizer: mas reforma agrária socialista e anti-cristã? O comunismo foi condenado pela Igreja. Teria sido o socialismo condenado pela Igreja também?
A essa pergunta é muito simples responder com a encíclica Quadragésimo Anno de Pio XI. Pio XI vem historiando as origens do Socialismo, mostra como no começo era ele muito anti-católico, muito radical; como depois ele foi se tornando mais tênue, depois ele mostra como chegou a um tal ponto de tenuidade que, em alguns pontos, a doutrina dos socialistas coincide com a doutrina católica. E aí ele levanta o problema que nos preocupa nesse momento.
Ele diz o seguinte:
“Por esse caminho podem os princípios desse socialismo mitigado vir pouco a pouco coincidir com os votos e reclamações dos que procuram reformar a sociedade segundo os princípios cristãos. Esses com razão pretendem que certo gênero de bens sejam reservados ao Estado, quando o poderio que trazem consigo é tão grande que, sem perigo do mesmo Estado, não pode deixar em mãos de particulares. Tão justos desejos e reivindicações em nada se opõem à verdade cristã e muito menos são exclusivos de socialismo”.
Por que então falar em socialismo cristão? E o Papa continua:
“Por isso, quem só por esses princípios luta – quer dizer, só por esses princípios bons – não tem razão para declarar-se socialista”.
Por quê? Porque isso não é típico do socialismo. Então, por que é socialista quem quer isso? Ele continua:
“E se o socialismo estiver tão moderado no tocante à luta de classes, e à propriedade particular, que já não mereça nisso a mínima censura, terá renunciado por isso à sua natureza essencialmente anti-cristã? Eis uma dúvida que a muitos traz suspensos”. E ele vai adiante:
“O socialismo, quer se considere como doutrina, quer como fato histórico ou como ação, se é verdadeiro socialismo, mesmo se aproximar-se da verdade e da justiça nos pontos sobreditos, não pode conciliar-se com a doutrina católica, pois concebe a sociedade de modo completamente avesso à verdade cristã”.
Então, como pode haver um socialismo cristão? Quer dizer, um socialismo que concebe a verdade de modo completamente avesso à doutrina cristã, e que é cristão?
De maneira que a esse respeito não há dúvida. E o pomo da discórdia, o problema da luta está bem apresentado. Nós queremos tudo para o operário, mas nós não queremos para ele aquilo que é um atentado à lei de Cristo, aquilo que é um atentado ao direito dos proprietários, aquilo que é um atentado ao próprio interesse, ao próprio direito dele, isto é, um atentado ao direito de propriedade. Há um momento em que é preciso deter e é preciso dizer “não”. E esse “não” deve exprimir-se em termos de doutrina católica, por essa forma.
É bem verdade que se tem dito que o Papa João XXIII empregou a palavra “socialização” na encíclica Mater et Magistra. Mas essa palavra “socialização”, em primeiro lugar, não está na encíclica, no texto oficial latino não está. Ela está em outros textos, mas no texto oficial latino não está. E se estivesse não quereria dizer nada, porque “socialização” não quer dizer marcha para o socialismo.
“Socialização” – eu vou lhes poupar aqui a explicação porque se adianta a hora e eu ainda tenho uma consideração a fazer – “socialização” é uma palavra que é empregada em algumas traduções da encíclica, mas que no latim tem os seguintes significados: são cinco vezes que essas traduções empregam a palavra socialização.
Vejam os senhores o que isto quer dizer em latim. Quando esses textos falam pela primeira vez em socialização, o texto latino diz: “socialium rationun incrementa”, o que quer dizer: “o desenvolvimento das relações sociais”. Os senhores acham que isso é socialismo?
A segunda vez que eles falam em socialização, o texto latino diz “socialis vitae progressio”: “o progresso da vida social”. Os senhores acham que isso é socialismo?
Terceira vez: “increbrescentibus socialis vitae rationibus”, que quer dizer, “as crescentes relações da vida social”. Os senhores acham que isso é socialismo?
“Socialis vitae incrementa”: quer dizer, “o verdadeiro incremento da vida social”.
E por fim: “socialem rationem progressus”, quer dizer, “o progresso – mais uma vez – nas relações sociais”.
Quer dizer, não tem nada tem que ver com Socialismo. Tem algo que ver com sociedade, que não tem nada que ver com socialismo. Todos nós pertencemos a muitas sociedades e nem por isso somos socialistas.
Mas, desfeito assim esse jogo de que a demagogia useira e vezeira, a demagogia tem algo de trampolineiro, algo de circo, de jogo de trapézio: ela se joga de um pretexto para outro, de uma frase oca para outra.
Eu há pouco tempo atrás tive uma discussão pública com um senhor e esse senhor dizia – eu dizia a ele: o senhor quer me fazer a gentileza de dizer qual é o seu programa para a solução dos problemas sociais? – E ele dizia: “Eu não quero outra coisa senão o bem de todos”.
Se não fosse violar as regras da cortesia que até aos demagogos se devem, eu gostaria de dizer a ele o seguinte: o senhor é legislador, o senhor teria coragem de fazer uma lei assim: Artigo 1º: Fica estabelecido o bem de todos… [risos prolongados] Artigo 2º: Revogam-se as disposições em contrário… [idem]
Aqui também: socialização! Quanto se tem falado em socialização!… A palavra não está no texto latino, mas está em outros textos. Está bom. Não me interessa. Podia estar a palavra. Vamos ver qual é a definição que a encíclica dá à palavra: não tem nada de socialismo!
Os senhores digam isso a um demagogo. Os senhores sabem o que ele vai lhes falar? Ele não vai argumentar com os senhores, porque a demagogia não argumenta, ela exclama. Ele olhará para os senhores com raiva e dirá: “O senhor não tem pena do povo!”…. [risos] Depois olha para o povo para ver se produziu eleitorado…. [risos] Porque, evidentemente, o objetivo está aqui, não é?
Mas quando a gente procura empurrar a demagogia à parede, quando a gente lhe dá argumentos, ou ela se esquiva, ou ela boceja, ou ela insulta. Porque há uma coisa que a demagogia não faz: a demagogia não argumenta. Por isso mesmo é que ela é demagogia.
E por isso me permitam, nessa sala onde eu, graças a Deus, não tenho nenhuma razão para supor que haja demagogos, mas onde eu estou dando os argumentos que contra a demagogia que se devem dar, porque a demagogia está aí como uma espécie de vapor impalpável.
Dir-se-ia que a Rússia é a explosão da bomba atômica, mas que a poeira radioativa psicológica dessa explosão é uma fermentação de demagogia infrene pelo mundo inteiro, e então me permitam que eu termine essas considerações com uma consideração maior, me parece, de ordem prática, mais decisiva do que todas as outras.
Os senhores imaginem que houvesse um país com terras algum tanto já usadas, que houvesse nesse país um proprietário, um príncipe, um rei, com 614 milhões de hectares, ou uma propriedade privada com cerca de seis milhões de quilômetros quadrados. Eu estou certo que os senhores me diriam: “Dr. Plínio, o senhor tenha paciência, mas aqui é preciso cortar. O senhor pode pôr encíclica como quiser, pode pôr mais, pode pôr menos como entender, é preciso cortar, porque isto também é demais”.
E eu diria que não era preciso pôr as encíclicas de lado para cortar um latifúndio tão grande, um imenso latifúndio, um latifúndio que daria para fazer dentro dele vários países inteiros, que não era necessário pôr as encíclicas de lado, mas que elas seriam a tesoura do corte porque, afinal de contas, isso é finalmente uma desproporção com todo o resto da propriedade de uma população que não poderia deixar de se sentir um tanto estreita, um tanto apertada, um tanto atarraxada diante de uma propriedade tão imensa.
Os senhores considerem que esse proprietário fosse dono de duas terças partes do território nacional e que só uma terça parte pertencesse a todos os outros pequenos proprietários. Os senhores não acham que esse proprietário, esse sim, deveria partilhar as suas terras? Pois bem, esse proprietário, esse rei de riquezas fabulosas, esse príncipe nababesco, esse príncipe existe. Ele existe e existe no Brasil. Ele existe no Brasil e se chama o Poder Público, porque exatamente no Brasil só uma terça parte da área existente pertence a particulares. E o resto, dois terços do território nacional, pertence ao Estado. E esses dois terços do território nacional estão quase completamente incultos.
E o Brasil, pela mão de um Presidente mineiro, rasgou uma estrada que vai de Brasília a Belém e que se entronca depois com outra estrada que vai até o Sul. E delineou, começou a executar uma estrada que vai depois até o Acre, para o aproveitamento dessas terras.
Agora eu pergunto aos senhores: é razoável, é legítimo dividir miséria em vez de multiplicar riquezas? Se há gente que quer ter terras, por que essas terras não são divididas? Por que ao longo da Belém-Brasília não se trata de um povoamento ativo, de um povoamento eficiente? Por que não se faz tudo para impedir que essa estrada volte a ser mato, como ela está voltando a ser?
Eu não sei se os senhores notaram como se fala pouco hoje de Belém-Brasília. Brasília foi quase feita para a Belém-Brasília. Mas agora a cabeça está e o corpo vai se sumindo dentro do mato, da poeira e da desorganização, depois de um acesso de entusiasmo em torno da Belém-Brasília. Não sei se os senhores notam como se fala pouco da marcha para o Oeste, da qual há algum tempo se falava com tanto entusiasmo.
É uma obrigação que nós brasileiros temos, à face de toda a Terra, é cumprir o mandato do Gênesis aos homens: “Ide, povoai a Terra inteira”!
Aqui está nossa terra inculta e que precisa ser povoada, e que precisa ser povoada por nós, e que não pode ser povoada a não ser por nós, e que deve ser povoada por nós. Porque há povos no mundo que sofrem de uma pressão demográfica exagerada, como por exemplo o Japão, e que querem terra e não têm. O que esses povos devem achar de um país como o Brasil que tem essas terras e que não as quer? E que desencadeia uma revolução social? E isso num cúmulo de outros problemas econômicos e políticos dos mais graves, desencadeia uma revolução social, não porque as terras faltem, mas tirando as terras de quem tem e aproveita bem ou mal, para não tirar as terras de quem tem e não quer distribuir?
A reforma agrária a esse título se apresenta como um adversário especialíssimo do Brasil no seu interesse mais fundamental, que é a marcha para o Oeste.
As terras estão aí; não comentamos o ridículo e a ignomínia de as tirar de quem tem, quando a terra inculta espera o nosso trabalho, o nosso suor, com as bênçãos de Deus, para a grandeza do Brasil.
[Aplausos prolongados]
Apresentador: A palavra continua franca para aqueles que quiserem fazer alguma pergunta ao conferencista. Pedimos, entretanto, que as perguntas sejam formuladas por escrito.
Enquanto corre o tempo eu queria reparar uma omissão, agradecendo a presença das excelentíssimas autoridades, especialmente do senhor representante do senhor Governador do Estado, que nos distinguiram com seu comparecimento a esta sessão.
[O próprio Prof. Plinio lê as perguntas]
… mais fácil de responder do que as outras e por isso eu começo por ela.
Pergunta: Por que o senhor nunca aceitou um debate público sobre RAQC – Reforma Agrária, Questão de Consciência?
Resposta: Eu nunca fui convidado para esse debate público. Se eu tivesse sido convidado, teria aceito. Eu acabo de realizar um debate público em São Paulo, no programa “O Grande Júri”, um debate com o deputado Paulo de Tarso, ex-prefeito de Brasília, não propriamente sobre a reforma agrária, porque não foi para o que fui convidado, mas sobre o problema sobre se o socialismo e o catolicismo são compatíveis.
Não vejo dificuldade que eu tivesse em aceitar o debate público, porque como os senhores acabam de verificar, eu não sou gago, de maneira que… [risos] não sinto impedimento nesse sentido. Eu soube até que se disse isso: que eu fui convidado não sei por quem para um debate público e não aceitei. Em que lugar? Quando? Como? Diante que testemunhos? nada sei nada disso.
Pergunta: Se não seria um absurdo sindicalizar as ligas camponesas.
Resposta: Eu interpreto a pergunta da seguinte maneira: se eu acho que seria absurdo sindicalizá-las, é isso? Quem é o autor da pergunta? Bem, interpretando a pergunta assim, eu dou a resposta seguinte: seria absurdo. Sindicalizar as Ligas Camponesas era sindicalizar um organismo nascido para a luta de classes e com as características de luta de classes, para promover uma política de defesa, sem dúvida, dos direitos dos trabalhadores manuais, mas dentro de um espírito de harmonia de classes. É uma coisa evidentemente absurda a gente querer usar um órgão de luta para harmonia. É uma contradição nos termos.
Pergunta: Por que a comunização dos países sempre começa por reforma agrária?
Resposta: É uma pergunta interessante. Realmente o fato histórico é esse. A reforma agrária é sempre o primeiro passo. E isso porque o elemento mais estável, o elemento mais seguro de toda organização social é sempre o agricultor. E é preciso lançar o primeiro ataque ao pior adversário e levar a desorganização à base. E é por isso que por toda parte se começa com a reforma agrária.
Pergunta: Sendo a reforma agrária um assunto de ordem econômica, qual o interesse da Igreja em opinar sobre ele?
Resposta: A reforma agrária é um assunto de interesse econômico. Mas como todos os assuntos na vida, apresenta um aspecto moral. A medicina, por exemplo, é um domínio técnico, mas há aspectos da medicina que apresentam aspectos morais. E quando os aspectos morais estão em jogo, a Igreja está interessada em opinar, porque a tutela da moral cabe a Ela, como sendo a Igreja fundada por Jesus Cristo.
A reforma agrária envolve aspectos morais, uma vez que levanta o problema da legitimidade da propriedade privada. E é a esse título que a Igreja opina.
Pergunta: Li num artigo que o livro “Reforma Agrária – Questão de Consciência” diz que somente as famílias de certas posses são dignas; as outras são um simulacro. Como se explica isso?
Resposta: Explica-se muito bem. A pessoa, aliás, muito respeitável por muitos títulos, que escreveu esse artigo de jornal, foi refutada por mim. E eu, na refutação, mostrei que a pessoa não leu o livro. E a pessoa ficou quieta. De maneira que se explica.
Pergunta: O que V. Excia acha da reforma agrária que o governador Magalhães Pinto está planejando para Minas?
Resposta: Eu não conheço, a não ser um traço da reforma agrária que ele está planejando. Esse traço francamente me parece muito simpático, que é a distribuição das terras do Poder Público aos particulares. Se envolve medidas análogas a essa, eu só tenho aplausos a dar.
Pergunta: Como V. Excia. caracteriza a posição do deputado Paulo de Tarso em face da encíclica Mater et Magistra?
Resposta: Bem, foi o objeto do debate. Eu tive ocasião de mostrar a ele que a encíclica Mater et Magistra condena o socialismo. É um pouco desagradável eu mencionar o debate quando ele não está aqui para se defender. Mas, afinal de contas, se eu não responder a pergunta, dir-se-ia que eu sou gago e que não quis responder a pergunta. De maneira que então, em defesa de minha facilidade de expressão, eu digo o que se passou. Aliás, vai ser publicado, por escrito, e ele terá oportunidade de redarguir. E eu tenho as notas gravadas num gravador, de maneira que posso dizer.
Eu disse a ele que o socialismo era condenado pela encíclica Mater et Magistra. Ele voltou-se indignado me dizendo se eu não havia lido a palavra “socialização” na encíclica. Eu disse a ele, eu não estava indignado, que de fato eu não tinha lido. Ele disse: “Eu tenho aqui o texto das [Editora] Vozes de Petrópolis”. E eu disse a ele: “Bem, eu tenho aqui a Acta Apostolicae Sedis, que é órgão oficial do Vaticano”…
Pergunta dele: “O senhor acha, então, que D. Manuel Cunha Cintra, arcebispo de Petrópolis, falsificou a Acta Apostolicae Sedis?“ Eu não respondi essa pergunta, eu fiquei gago…
Ele me disse: “O senhor não vê que ‘socialização’ quer dizer socialismo?” E exatamente eu retruquei o que eu disse aqui aos senhores: “socialização”, evidentemente, não quer dizer socialismo por causa do texto que acabei de ler, e sobretudo por causa da raiz da palavra; é “sociedade”, que dá “socialismo”, “socializar, social, sociável” e quantas outras coisas. Então, amanhã se dirá que “houve um chá de sociedade numa roda granfina” e o senhor Paulo de Tarso dirá: “O senhor não está vendo que eles são socialistas?” Querem fazer sociedade… Quer dizer, é negar a etimologia.
É como, por exemplo, “nacionalismo”. “Nacionalismo” vem de “nação”. “Nação”, nós sabemos bem o que quer dizer. De onde há dois sentidos da palavra “nacionalismo”: um que quer dizer eu sou nacionalista, quer dizer, não quero que o Brasil perca suas qualidades nacionais, eu sou um patriota. E outro quer dizer: nacionalista toda nação brasileira deve abocanhar tudo quanto é dos outros, além do que já tem. Esse seria um nacionalismo de outro tipo. Isso tudo é jogar com palavras. Apenas isso.
Pergunta: Os dois terços da terra que se encontram nas mãos do governo oferecem condições de vida, ou seja, hospitais, escolas, habitações? Quem os dará?
Resposta: muito simples. Se prevalecesse esse modo de pensar, o Brasil não existia. Porque se os portugueses de Pedro Álvares Cabral perguntassem se havia escolas… [risos]. O que está escrito no Gênesis é: “povoai toda a terra”! E quem vai fazer hospital pode perguntar se tem hospital para ele. Quer dizer, é um círculo vicioso. Então não se povoa mais nada. Porque se eu só vou onde tem hospitais, o trabalhador que vai construir hospital também só vai aonde tem hospitais. Então, onde é que vamos sair disso?
E depois, agora eu quero perguntar o seguinte: então, enquanto não houver hospitais e não houver o que mais… habitações, escolas – não sei como não tem cinemas, bem….[risos] – enquanto não houver tudo isso, não se vai para lá. Mas há povos que estão estourando de fome e de falta de lugar onde se manter e que iriam sem isso. Nós temos direito de negar a esses povos essas terras?
Pergunta: Um fazendeiro que possui imensidões de terras cultivadas, e que tem centenas de miseráveis a trabalhar à meia, à terça etc., não seria justo dividi-las com os mesmos ou permutá-las por aqueles que o governo pode distribuir?
Resposta: Não seria justo… Não, a pergunta não é se seria justo. É se teria o direito de exigir dele que fizesse isso. Os senhores vejam bem: esse fazendeiro tem imensidades de terras cultivadas. Mas nessas imensidades moram centenas de miseráveis. Está bom. Então, ele que pague um salário bom, que pague um salário justo, familiar, mínimo, que dê ainda o necessário para acumular economia, que se exija isso dele, está muito bem. Mas por que, além disso, se exige partilhar?
A gente sempre deve exigir do próximo – isso é um princípio de bom convívio social e até um princípio de direito – a gente sempre limita o direito do próximo na medida do indispensável. Se se pode resolver o problema sem partilhar, por que partilhar?
Depois: por que que esse homem não permuta – aqui está bem uma pergunta psicológica – por que que esse fazendeiro que tem imensidades de terra não permuta suas imensidades com as do governo? Para quê? Para que ele, que é o proprietário, deixe os trabalhadores trabalhando lá e vá ser trabalhador nas outras terras?
Quer dizer, isso revela um tal complexo contra o fazendeiro… O fazendeiro tem que ir num lugar onde não tem hospital, onde não tem não sei o que… [risos], porque pertence a essa raça de réprobos, que é o fazendeiro. Agora, o operário, que é concebido sem pecado original, não pode ir, porque não tem… [risos]. Os Srs. compreendem… Eu vou levar essa pergunta!
Pergunta: O latifúndio improdutivo pode ser legitimamente tomado?
Resposta: Distingo. Um autor que não aprecio muito, Maritain, diz que distinguir é pensar e nisso ele tinha razão. Eu distingo, portanto. Quando essas terras não são necessárias para ninguém; quando há um hinterland enorme que pode ser ocupado, por que se pode impedir a um homem ter terras que sobrem? Agora, se essas terras fossem necessárias para outros não caírem na miséria, ou numa pobreza muito grande, então seria legítimo tomar.
Os Srs. me desculpem o modo um pouco rápido de resolver, mas é que as perguntas me dão o prazer de estar afluindo em quantidade e por causa disso eu vou respondendo rapidamente.
Pergunta: Se o direito de propriedade da terra vem do fato de se ter nela estabelecido e plantado, como aceitar que gerações e gerações de trabalhadores rurais nelas trabalham e sem nenhum direito às mesmas?
Resposta: É muito simples. É que quando a terra foi plantada pelo primeiro, ela foi apropriada. E como ela foi apropriada, o direito de propriedade exclui o uso de um outro. E por isso, em vez de apropriar essas terras que um outro já apropriou, em vez de as apropriar invejosamente, vá para as terras que não estão apropriadas e que estão sobrando.
O que os senhores diriam de um homem que pega um monte de cocos que caíram da árvore. Ele pega um coco, abre e começa a comer. Um outro olha para ele e diz: “por que você teve direito a esse coco e não eu? Me dá cá esse seu coco!” Ele diz: “Não, está lá o coco no alto da árvore, você vá lá em cima pegar, como eu peguei”. Não é isso?
Não houve tempo em que Minas foi sertão? Não houve tempo em que entrou gente aqui, se apropriou etc., etc.? Por que agora não podemos voltar mais para dentro? É curiosa essa ideia, essa espécie de esquecimento dessa nossa imensa reserva.
Pergunta: Senhor conferencista, no caso do Brasil, qual o limite de terras que o senhor acha para um latifúndio? Para que um latifúndio não mereça desapropriação ou, pelo menos, que seria justa uma desapropriação?
Resposta: Eu gosto muito dessas perguntas, por uma razão. É que quando eu escrevi a minha parte no livro “Reforma Agrária – Questão de Consciência”, eu lutei com todas essas perplexidades e tive que fazer uma espécie de brainwashing, de “lavagem de cérebro”, para eu ver na sua justa perspectiva todos esses problemas. Porque tudo isso são problemas que me passaram pela cabeça. Por quê? Porque isso fica pelo ar. Pelo ar fica essa ideia simples e primária do homem que tem pouco, a quem a gente tem que dar algum tanto do homem que tem muito, sem lembrar que o Estado que tem mais do que todos.
Os senhores compreendem bem: uma coisa é, por exemplo, limite de terras. Tomar um limite de terra para Goiás e Mato Grosso é uma coisa muito diferente de tomar um limite de terras para São Paulo, onde a população é muito maior, onde as terras são mais pobres. Depois, ainda depende do gênero de cultura, porque uma coisa é um japonês que toma um canteirinho nas proximidades de São Paulo e trabalha admiravelmente aquilo para produzir uma cultura de aspargos…. e outra coisa é um homem que vai fazer uma cultura, grosso modo, vai plantar bananeira no litoral, por exemplo, que é uma coisa muito diferente.
Como estabelecer… uma coisa pode ser um latifúndio de aspargo e um minifúndio de café. Quer dizer, essas coisas não se fazem tanto por lei, medindo um tanto como quem corta um queijo, mas se fazem mais pelo costume, espontaneamente.
Os senhores tomem São Paulo, o Paraná, as propriedades todas estão se dividindo, espontaneamente, sem pressão do Estado, pelo simples jogo das circunstâncias econômicas. É assim que essas coisas se fazem. É impossível fixar para o Brasil todo um limite.
Pergunta: Dr. Plínio, o senhor considera a propriedade privada como sagrada e, portanto, não expropriável pelo Estado, a não ser em especialíssimas condições. (Prof. Plinio: É verdade.) Quando, porém, essas propriedades são fruto de iniquidades legais, a desapropriação não se afiguraria lícita? No Brasil não há esse problema?
Resposta: Há, mas não é problema… não se diria então “Reforma Agrária – Questão de Consciência”, mas “Reforma Agrária – Questão de Cadeia”, porque se alguém tomou terras ilicitamente de outro, promova um processo civil, põe fora, promova um processo criminal, tranca na cadeia, está acabado o caso. Não é reforma agrária.
Pergunta: A carência de alimentos é o que gera a ideia de reforma agrária. Como se pode fazer o homem do campo interessar-se em produzir gêneros, se esse produto é tabelado e não dá lucro compensador?
Resposta: Eu não estou inteiramente certo de que a carência de alimentos gere a reforma agrária. Por uma razão muito simples: é que se a carência de alimentos gerasse a reforma agrária, os principais líderes agro-reformistas seriam homens que carecem de alimentos. Ora, isso não se dá.
Pelo contrário, é preciso prestar uma homenagem – e eu a presto comovidamente – ao trabalhador rural brasileiro que está reagindo, em face de toda essa demagogia, à maneira de pólvora molhada. Não está havendo a explosão que alguns pensavam, por causa do bom senso brasileiro. Não é, portanto, principalmente, o fator econômico que gera o agro-reformismo socialista. Porque, lembrem-se bem, que é contra os socialistas que estou falando. O que há então?
É que realmente há fatores espirituais e uma certa dose de miséria que concorre evidentemente para isso. Agora, os senhores dizem muito bem: o produto é tabelado e não dá lucros compensadores. Os senhores sabem que o mais tremendo não é que o produto seja tabelado. Eu sei que vou atrair sobre mim inimizades dizendo o que digo, mas eu não me importo, e eu digo a verdade inteira: se o agricultor recebesse todo o preço do produto tabelado, ele ficaria muito contente, em quase todas as culturas, a começar pelo café.
Mas a questão é que entre o produtor e o consumidor anda toda uma série de aproveitadores, que ganham mais do que o agricultor e vivem de sugar o consumidor. E contra esses a demagogia não fala.
Os senhores pulsem, compulsem a literatura agro-reformista: é vasta, repolhuda e pouco apetecível. Mas se alguém tem a coragem de a compulsar em alguma medida – eu confesso que eu não fui ao fundo do tonel porque me faltou respiração – se alguém tem a coragem de ir até o fundo, eu creio que não encontrará, a não ser tiradas, ou nenhumas ou tão poucas a respeito disso, que nem o público tem a atenção alertada para esse ponto.
Os senhores me permitam, já que estão me fazendo as perguntas, eu vou responder, eu prefiro que se pense que eu respondi demais do que que respondi de menos.
Uma vez fui fazer uma visita a uma cidade do interior de São Paulo – era o jubileu de um bispo venerável, muito amigo meu etc. -, eu deveria fazer uma saudação e fiz. Terminado o discurso, as homenagens que eu devia fazer, começa uma conversa na sala, sob a presidência do bispo e várias autoridades locais. Falou-se a respeito de alta do custo de vida. E o promotor público do lugar disse a seguinte coisa: “Professor, o senhor não é do interior, o senhor não conhece as coisas como são aqui. Antes dos víveres chegarem à cidade, há aproveitadores que detêm o pequeno produtor, mais do que os outros, porque é mais pobre, é mais ingênuo, é mais ignorante, e dizem que os preços estão caindo etc. e impõem uma compra por qualquer preço. Depois eles montam em nós.” Depois acrescentou: “Nessa sala todo mundo sabe disso e ninguém tem coragem de falar”. Silêncio e ninguém falou. Eu estou falando…
Se os senhores quiserem, os senhores procurem esses agitadores agro-reformistas e perguntem a eles: “Por que os senhores não se indignam, de uma ira santa e louvável contra o aproveitador?” – “Ahm?…. Ahm?…” [risos]
Pergunta: Se realmente for feita essa reforma agrária, como se tem pregado, em que situação o senhor julga que nós pararíamos?
Resposta: A mesma coisa que uma pessoa que tem um paiol de pólvora no porão e diz: não toque fogo. E outro pergunta: em que situação o senhor acha que ficaria se o paiol explodisse?… [risos]
Pergunta: O abuso da propriedade elimina o direito de propriedade?
Resposta: Há um velho princípio que vem quase da noite dos tempos, do Direito Romano: “Abusus non tollit usum – O abuso não suprime o uso”. Eu vou dar um exemplo concreto disso. Os senhores moram num prédio de apartamento e o vizinho toca o rádio muito alto. Os senhores têm o direito de quebrar o rádio dele ou de dizer que diminua o rádio? Os senhores têm a sensação de que quebrar o rádio dele é injusto. Por quê? Porque ele abusou do direito de ele tocar o rádio, mas não é razão para perder o rádio. Ele que diminua o rádio.
O Professor Arnaldo Xavier da Silveira está me dizendo que são duas perguntas contraditórias. Eu gosto da contradição, no sentido de que gosto do debate.
Pergunta: nós, os fazendeiros, não somos contra a reforma agrária. A classe rural mineira esteve reunida durante três dias, debatendo o momentoso assunto, cuja conclusão passo às mãos de V. Excia, para sua apreciação.
É verdade que o livro “Reforma Agrária – Questão de Consciência” está sendo difundido pelos fazendeiros paulistas? Por que será que os mais interessados na reforma agrária, os ruralistas, em reuniões gerais de suas associações, como a atual da FAREM, sempre se opõem à reforma agrária socialista?
Resposta: Aqui nós estamos diante de duas afirmações contraditórias: uma diz que não se opõe, outra diz que sempre se opõe.
O fazendeiro que me distinguiu escrevendo com essa objeção, dizendo que os fazendeiros não são contra a reforma agrária, se ele entende que não são contra a reforma agrária cristã, eu o aplaudo por isso e também estou certo de que é isso. Se ele entende que os fazendeiros desejam que se faça a desapropriação de suas terras, eu acho que a afirmação, por mais que eu acate a autoridade dele, é um pouco precipitada. E era o caso de ele promover um abaixo-assinado dos colegas, então renunciando ao direito de suas terras, para se fazer a partilha, porque então desaparecia a questão de consciência. Quem sabe se ele pode começar por aí! Eu sou um tanto céptico quanto aos resultados da coisa.
Pergunta: É verdade que o livro “Reforma Agrária – Questão de Consciência” está sendo difundido pelos fazendeiros paulistas?
Resposta: Não é verdade. O livro “Reforma Agrária – Questão de Consciência” está sendo editado pela Editora Vera Cruz. A Editora Vera Cruz tem a sua contabilidade à disposição de quaisquer pessoas que a queiram examinar. Se estivesse sendo difundido pelos fazendeiros paulistas, era um direito deles. Paulistas, mineiros ou chineses, porque uma pessoa atacada se defende. Me lembra a expressão, se não me engano de Molière: « cette bette est très méchante, quand on l’attaque, elle se défend. – Esse bicho é muito ruim; quando a gente ataca, ele se defende”… [risos] Mas, de fato não é, simpliciter [simplesmente].
O senhor fazendeiro que me deu há pouco essas declarações, me passa um escrito mimeografado, que tem o seguinte título: “Reforma Agrária – Pontos Básicos firmados pela classe rural mineira em concentração realizada de 27 a 30 de Outubro de 61”. Os pontos são onze. Naturalmente não haveria tempo para comentar todos e o professor Arnaldo me sublinhou três. Se esse senhor quiser que eu comente algum outro, eu terei prazer em comentar.
O ponto quatro enuncia-se assim: A classe rural mineira preconiza o aproveitamento imediato e racional das terras públicas.
Está aqui uma coisa ótima! E está em tal consonância com o que eu disse, que não tenho mais nada a acrescentar.
Ponto cinco: Toda e qualquer desapropriação que se torne imperativa face ao interesse social, se deve processar com estrito respeito aos princípios da Constituição Federal vigente.
Perfeito. Eu estabeleceria apenas uma pequena ressalva, mas que talvez esteja no documento todo, é que seria preciso primeiro desapropriar ou aproveitar as terras públicas, para depois recorrer às privadas, pelo menos em princípio. Mas isso é uma coisa que talvez esteja no documento.
Ponto onze: A classe rural mineira, una, coesa, manifesta seu firme propósito de defender vigilantemente os direitos e reivindicações aqui firmados, tendo em vista os supremos interesses do país.
Eu gosto sobretudo dessa última frase: “tendo em vista os supremos interesses do País”. O proprietário que defende o seu direito faz bem, porque todo mundo deve defender os seus direitos. Mas defender os seus direitos, diria o Conselheiro Acácio, que é um direito. Defender o direito de propriedade não é um direito, é um dever. Porque a propriedade é uma condição do bem comum e não há bem comum sem propriedade privada. De maneira que os proprietários não têm o direito de não defender o instituto da propriedade privada.
Pergunta: O senhor aceitaria uma acareação para tratar da reforma agrária com o deputado Julião?
Resposta: Não! Pela razão muito simples: eu discuto com uma pessoa com quem eu tenha um terreno comum e um ponto de referência para discutir. Sobretudo uma pessoa que compreende que antes de começar a tocar fogo nas coisas é preciso discutir. Mas para uma pessoa com quem eu não tenho nenhum terreno comum, que se coloca nos antípodas do que eu penso, e que, mais ainda, já começou a pregar a revolução social, eu não tenho nada que discutir. Ele, se tivesse alguma coisa para dizer, ele deveria ter pensado antes de começar a agir.
Pergunta: Por que falam em reforma agrária e se esquecem das favelas, que vivem em piores condições que os lavradores?
Resposta: É bem verdade. É uma pergunta que se poderia fazer. É verdade que se poderia dizer que convém fazer uma coisa e outra. Mas, enfim, é uma observação que tem seu propósito.
Pergunta: A reforma urbana é obrigatoriamente consequência da reforma agrária?
Resposta: Os senhores imaginem que viesse um decreto que dissesse o seguinte: todos os agricultores para o paredón. Alguém me perguntasse: há razão para os proprietários das casas terem medo do paredón? Eu digo que há. Porque se o direito à vida é negado em uns, é negado em todos.
Amanhã, se condenarem à morte injustamente um homem que eu não conheço, eu estou ameaçado na minha vida, porque minha vida repousa sobre o princípio de que todo homem tem direito à vida. Assim, se se atenta contra o direito de propriedade de uns, atenta-se contra toda a instituição da propriedade. E, portanto,…
Pergunta: O livro “Reforma Agrária – Questão de Consciência” tem tido aceitação em todas as classes sociais?
Resposta: Nas classes para as quais foi escrito, evidentemente. Eu não poderia pedir que um livro de algumas centenas de páginas fosse lido por uma pessoa que não tem o hábito da leitura. Os senhores, em grande número, são estudantes e sabem quanto o hábito da leitura é pouco difundido hoje, quando não se trata de folhetos e coisas do tipo.
Eu reputo exatamente uma das glórias do livro RAQC, que foi durante muito tempo bestseller, acima de todos os romances, logo abaixo do “Quarto de Despejo”, que foi um romance que, em São Paulo, teve uma certa efervescência. Estar entre os romances, para um livro de doutrina, é uma espécie de glorificação. É uma prova “hors concours”, fora de concurso. Isso foi o que o livro alcançou. A tiragem enorme do livro, 22 mil, para um livro técnico, bem mostra aos senhores a difusão. Agora, é claro, como pedir que esse livro seja lido fora do âmbito das pessoas que podem jogar com essas ideias?
Pergunta: Em linhas gerais, senhor conferencista, quais as grandes repercussões do livro “Reforma Agrária – Questão de Consciência”?
Resposta: Uma repercussão eu ouvi do presidente Ranieri Mazilli, quando viajei outro dia com ele para Brasília. Ele me dizia que a opinião pessoal dele sobre o livro, era de estar de acordo com quase todas as teses, mas com reservas relativamente a algumas. Mas que ele achava que o debate em torno da questão era um debate que estava se desenvolvendo de um modo muito populacheiro e sem argumentos. E que um dos méritos do livro foi de ter criado uma atmosfera de debate sério, ao lado do debate demagógico que, naturalmente, não cessa.
De outro lado, é fato que o livro representou, na expressão do Presidente da FARESP de São Paulo, uma espécie de chuva de água fresca para eles, que estavam se ardendo na falta de coragem de quase todo mundo de fazer face à demagogia. A partir desse momento, eu não quero dizer que só por isso, mas em grande parte por causa disso, a reação ao agro-reformismo se desenvolveu muito no Brasil e é uma corrente muito ponderável. Antes disso, era algo de tímido, de indeciso e que quase não ousava afirmar-se. Esses são os resultados no momento.
Pergunta: Por que não se proíbe a infiltração comunista no Brasil por meio de leis? Por que também não os prendem?
Resposta: Era um bom serviço [risos].
Pergunta: Não seria preferível tabelar artigos de luxo, evitando os grandes lucros industriais e remessa de lucro ao exterior; e deixar livres os produtos alimentícios? Isso não incentivaria a produção?
Resposta: A questão do tabelamento é toda uma questão muito complexa, sobre a qual eu não quero fazer também demagogia. Eu acho que o tabelar o artigo de luxo é uma coisa que se poderia fazer, mas que não é o principal. Porque o ruim não é que o rico seja obrigado a pagar muito para fazer um capricho, mas o ruim é que o pobre seja obrigado a pagar o que não pode para satisfazer uma necessidade. Aqui está o pior, aqui está o amargo da coisa, evidentemente.
E, portanto, ao menos no que me diz respeito, o meu zelo por uma política de preços bem desenvolvida iria muito mais para tabelar aquilo que os pobres consomem, para lhes deixar uma certa facilidade.
Eu repito o que disse há pouco a respeito dos açambarcadores. Quer me parecer que uma ação enérgica contra os açambarcadores tornaria dispensável o tabelamento. Isso será verdade ou não? Os senhores vejam com que cuidado eu me exprimo: quer me parecer, eu mesmo não tenho certeza. Mas eu duvido de que alguém possa ter certeza.
Porque, infelizmente, nós temos uma sociologia e uma economia de olhômetro. Mede-se tudo a olho nu, sem aquela ponderação tradicional do brasileiro. E das nossas condições sociais, poucas pessoas têm um verdadeiro conhecimento objetivo com números, com dados e com coisas positivas. Eu acho que seria preciso começar a estudar com urgência e honestamente. Isso sim me pareceria necessário.
Pergunta: O que V. Excia. acha do projeto Joffily?
Resposta: Eu acho que o projeto Joffily merece grande parte das críticas feitas ao socialismo anti-cristão: o sistema de partilha de terras, depois a insegurança que o projeto lança sobre todas as terras por meio daquela verificação de títulos de propriedade, sobretudo aquela distinção da desapropriação do uso da terra, em vez da desapropriação da terra, me parecem perfeitamente socialistas e, portanto, rejeitáveis.
Pergunta: Porque V. Excia. não considera o problema social reforma agrária independente da Igreja Católica?
Resposta: Porque não devo. A respeito da Igreja Católica eu tenho duas afirmações a fazer. A primeira é que eu tenho a certeza, mas é uma certeza que é fé, que é uma certeza absoluta que exclui qualquer parcela de dúvida, mesmo a mais leve e mais remota, de que a Igreja Católica é a única Igreja verdadeira de Nosso Senhor Jesus Cristo; que Ela é a mestra infalível da moral e que, portanto, todos os problemas de moral têm que ser resolvidos segundo a doutrina dEla. Essa é uma convicção tal que, se todo mundo pensasse de maneira diferente, eu pensaria assim com a mesma e imperturbável certeza, enquanto Deus me desse graças para tanto.
De outro lado, é preciso dizer que o povo brasileiro, na sua muito maciça maioria pensa assim também. E, portanto, os problemas brasileiros, no que diz respeito à moral, ou são resolvidos assim ou não são resolvidos para o povo brasileiro. Podem servir para o Afeganistão, mas não para nós.
Pergunta: Que se poderá fazer para convencer as autoridades a realizar uma reforma agrária de acordo com os princípios cristãos?
Resposta: É uma coisa muito simples, é tão simples que espanta: é querer. É querer seriamente, querer solidamente, que, quando a gente quer, isso transparece. E quando transparece, o sismógrafo político toma nota imediatamente. Nada de mais sensível do que o sismógrafo político. É qualquer coisa de prodigioso!
Eu durante algum tempo – eu nunca fui político, não vejo nisto nada que desdoure, acho uma coisa muito honrosa ser político, mas não fui. Mas estive na política e vi como a percepção política – já não digo dos mineiros, habitualmente tão políticos, mas até dos paulistas – é fina quando se trata de político. Quando eles veem que o eleitorado quer, eles querem. E o eleitorado são os senhores e somos nós. Queiramos, que a coisa corre. Nem precisa falar muito, hein! Basta querer muito.
Pergunta: No caso de uma reforma agrária em que se aconselhasse a divisão das terras públicas, o que V. Excia acharia melhor: doar ou vender a baixo preço essas terras?
Resposta: Eu sou mais favorável ao vender a baixo preço. Mas não sou favorável só a vender a baixo preço. Porque a gente não pode fazer do proprietário rural pequeno um Robinson Crusoe: aqui está a terra; agora comece a arranhar e a plantar.
Quer dizer, a gente tem que dar todo um equipamento, tem que dar toda uma instrução, tem que dar uma organização. Agora, o que era verdadeiro era adiantar muito e depois cobrar para ele ter um estímulo de produzir. Cobrar de modo paterno, de modo suave, de modo humano, evidentemente, mas cobrar. Essa é minha impressão.
Pergunta: Acha conveniente a extensão agora da legislação trabalhista aos homens do campo?
Resposta: Eu acho inteligente a pessoa ter frisado a palavra “agora”. É evidente que uma certa proteção eles devem ter. Mas é preciso preparar o terreno, porque a introdução extemporânea de um momento para outro, me parece que produziria desordens.
Pergunta: Não ficaria menos dispendioso repartir nossas terras onde já existe população do que levá-la ao centro do País?
Resposta: Ficaria. Ficaria menos dispendioso e menos produtivo. Vale a pena? Porque se eu tenho terras – alguém, quando eu estive em Brasília – eu não sei se foi o deputado…. (não se entende o nome) ou quem foi – contou-me uma coisa engraçada, de um deputado que tinha dito: “Nosso problema não é João sem terra, mas é terra sem João”… [risos] O modo de dizer é muito pitoresco! É uma questão de terra sem João. Nós precisamos levar o João à terra em vez de dar terra para o João. Nós precisamos fazer com que nossas terras produzam. Aí é que está a questão. O principal não é economizar, mas é aumentar a renda, a produção.
Pergunta: Qual é a relação da reforma agrária e a característica sentimental do povo brasileiro?
Resposta: é a seguinte. Não é a característica sentimental, mas é a pluralidade de vistas. Como o brasileiro vendo um aspecto da questão sabe ver também o outro aspecto da questão. E não é propenso a simplificações. Eu mencionei aqueles fatos para mostrar isso. Por exemplo, proclama a República, mas vê-se o outro lado da questão. Aquele imperador que é um homem de benemerências, não pode ser posto fora como um gatuno. É preciso assegurar a vida dele etc. É nesse sentido que eu dizia.
Então eu pleiteei o exercício da mesma riqueza intelectual para a consideração do aspecto pluriforme do problema agrário e não para uma solução simplista, como seria a de dar terras para o João.
Pergunta: O Diretor da Faculdade de Arquitetura me distingue com a seguinte pergunta: Não poderia V. S. sugerir um meio para que os católicos de norte a sul, de leste a oeste, se unissem em ação conjunta com o objetivo de repelir a atual reforma agrária socialista?
Resposta: É uma coisa que eu tenho pensado muito e eu tenho impressão de que necessariamente virá. Virá pela própria pressão do agro-reformismo socialista. Porque em política é verdadeiro, mais do que na física, que toda ação suscita uma reação em sentido direto e contrário. Não virá tarde? É esse o problema. Nesse sentido eu creio que todos os homens responsáveis se unirem para agir, eu acho que é uma coisa muito urgente. E de minha parte estou disposto a colaborar com todo esforço que se faça nesse sentido.
Pergunta: Há pobres e ricos que têm terras e não querem cultivar. O que fazer?
Resposta: De um modo geral e salvo certas circunstâncias concretas, o verdadeiro aí é colonizar as terras que não estão colonizadas ainda, principalmente. Por que tirar a pobres ou ricos aquilo que eles não têm obrigação de cultivar, a não ser na medida em que lesem outros? De um modo geral, portanto, o que fazer? Talvez dar um estímulo, prometer prêmios etc. Eu não vejo mais do que isso.
Pergunta: Quando as terras estão a 10 km das capitais?
Resposta: Quando as terras estão a 10 km das capitais e prejudiquem seriamente as capitais, existe um verdadeiro direito de desapropriação, a justo preço, nos termos da Constituição Federal.
Pergunta: Os gêneros são produzidos pelos pobres. Se esses são baratos, como o pobre pode melhorar o seu padrão de vida?
Resposta: É, não pode melhorar, eu lamento muito. É preciso, portanto, que os gêneros não sejam baratos, quer dizer, eu me distraí, que o preço dos gêneros vá para quem produz e não para o intermediário.
Pergunta: Por que todos aqueles que combatem a reforma agrária socialista são chamados de “reacionários”?
Resposta: Isso é um tabu do qual eu não tenho medo. É mesmo isso. É “fascista”, “reacionário”, não sei mais o que. Quando o fascismo estava no ápice, eu me caracterizei tanto pelo combate ao fascismo, que até me ameaçaram de agressões físicas. Um que me ameaçou de agressão física, eu disse: “Ponha por escrito essa ameaça, que eu publico, para se saber como se ataca um líder católico”… Como o sismógrafo político é muito sensível, a coisa ficou no ar. Eu, portanto, posso falar.
São chamados de “reacionários” aqueles que contrariam os demagogos. É um jeito do demagogo colocar fora da pista da luta quem é contra ele. É simplesmente isso.
O que é um reacionário? Reacionário é quem reage. De maneira que quando um sujeito me diz um desaforo e eu reajo, sou um reacionário? Então, ou sou reacionário ou sou bobo, não é?… [risos] Porque aceitar um desaforo sem reagir é ser bobo… Se um indivíduo invade o País e eu defendo a fronteira, estou reagindo contra ele. Eu sou reacionário? Se eu não reagir eu sou um covarde. Se um homem quer implantar o comunismo no Brasil, ou quer fazer uma reforma socialista, eu reajo, eu sou um reacionário? Eu respondo: graças a Deus, Deus me livre de não ser! E é assim e não vai por menos!
[risos e aplausos]
Pergunta: A reforma agrária do governo Carvalho Pinto é justa? O que pensa V. Excia sobre ela? Ela realiza realmente uma reforma agrária?
Resposta: Eu, no apêndice do livro “Reforma Agrária – Questão de Consciência”, sustento, solidário com os meus ilustres co-autores, que não é justa. Dou as razões. São Paulo não tem, de nenhum modo, necessidade dessa partilha de terras que está se fazendo em larga medida. São Paulo tem terras públicas de cuja distribuição o projeto cuida muito desleixadamente. E, em última análise, é porque o Estado de São Paulo teria dinheiro para desapropriar as terras de que precisa.
Pergunta: O que V. Excia. pensa da reforma agrária com divisão das terras em vários países? Elas deram resultado, a seu ver?
Resposta: Em nenhum país, me consta, que a reforma agrária tenha dado resultado. Pelo contrário, a reforma agrária determina uma paralisação geral dos negócios. E isso por uma razão muito simples. Os negócios são impelidos pelos que trabalham muito. E os que trabalham muito trabalham muito porque querem ganhar muito, porque ninguém é relógio que trabalha de graça e sem objetivo. Esse é só relógio. Gente trabalha com lucro e querendo ganhar. E quando começa essa história de tirar de quem ganha muito para dar para quem ganha pouco, imediatamente os elementos mais ativos do país se paralisam.
Eu me lembro, algum tempo atrás, um proprietário de muitas lojas em São Paulo falava a favor da reforma agrária. E alguém disse a ele: “Mas então por que não faz uma reforma “logiária”? E corta sua loja também?” [risos] Ele ficou assim pensativo e esquivou-se. Mas o fato é que ele se esquivou porque ele percebeu bem o seguinte: a gente começa a cortar uma coisa e pela mesma lógica acaba cortando outra, porque se a gente corta as propriedades rurais porque há pobres no campo, corta as propriedades urbanas porque há pobres nas cidades. E quando os operários ganham pouco o resultado é cortar também.
E quando corta tudo, os senhores sabem o que acontece? É que por cima de uma migalha enorme de propriedades destruídas, de fábricas que passaram a pertencer a ninguém, de lojas cortadas e retalhadas, só uma coisa fica: é por cima de um farelo de povo destroçado, um Estado onipotente. Fica comunismo, e não outra coisa.
Pergunta: Por que o deputado Francisco Julião não aceitou terra do governo, alegando que não existe problema social onde elas existem?
Resposta: Eu conheço mal o fato, conheço nebulosamente o fato, infelizmente o noticiário de jornais de São Paulo é deficiente a respeito do assunto.
Pergunta: Por que no momento a opinião pública reclama tanto reforma agrária, vendo nela a solução para todos os males desse País?
Resposta: A opinião pública não reclama reforma agrária. Eu tive ocasião de expor isso precisamente ao presidente Mazilli. Há duas popularidades. Há uma popularidade que é de superfície, feita nos meios de propaganda. É a popularidade de asfalto, artificial e fabricada como asfalto. Esta opinião pública pede reforma agrária. Mas o Brasil brasileiro, o Brasil verdadeiro não pede a reforma agrária!
Há algum tempo atrás – eu posso contar isso aqui porque estou longe de São Paulo – eu fui sondado por uma alta personalidade política de São Paulo sobre minha opinião a respeito da sucessão ao governo do Estado de São Paulo. Eu dei essas ou aquelas opiniões ou sugestões e perguntei se o Secretário da Agricultura de São Paulo não era candidato. Ele disse com toda inocência: “Olhe, tal a impopularidade com a revisão agrária, que não vai ser”. Acho que vai ser, porque a política tem lá suas afoitezas. Mas vai ser duro entrar por causa disso.
Pergunta: Se V. Excia considera o serviço de extensão rural do sistema ACAR (Associação de Crédito e Assistência Rural) com capacidade para dar ao homem do campo a formação técnica, ideológica e moral cristã, necessárias ao futuro pequeno proprietário, dentro de uma reforma agrária?
Resposta: Infelizmente eu conheço de modo incompleto. Se a pessoa que me perguntou pudesse informar, eu até gostaria de saber no que consiste, no momento, esse serviço.
Pergunta: Poderia informar se os agricultores norte-americanos constituem a classe mais pobre daquela nação?
Resposta: Vamos dizer o seguinte: é certamente a classe onde não estão as grandes fortunas e não se fazem as grandes carreiras. E é um dos lados fracos da organização econômica norte-americana. Quando os senhores quiserem saber o resultado extremo desse desequilíbrio indústria e comércio, os senhores têm vantagem em apelar para o que aconteceu na França recentemente, em que os agricultores chegaram a jogar creme de leite nas estradas, fazer entrar tratores nas cidades etc., pelo desespero diante da condição subdesenvolvida da agricultura em face da indústria. E é exatamente esse o problema que preocupa muito o Papa João XXIII.
Pergunta: (Problema de gravação – perdem-se as primeiras palavras) … clero no Brasil, que vem pregando socialismo para certos núcleos de ação católica? Ou chamam socialismo cristão, como por exemplo um padre, vigário etc.?
Resposta: Eu devo dizer o seguinte: a vigilância do clero cabe à autoridade eclesiástica. Segundo nossa velha forma tradicional – não sei se usava isso em Minas – mas em São Paulo usava-se para dizer “não tenho nada com isso”, dizer “queixe-se para o bispo”…
Pergunta: V. Excia. não crê que a Igreja se tenha omitido no esclarecimento da “Mater et Magistra”, dando margens com isso a que os demagogos a interpretem segundo seus interesses? etc., etc.
Resposta: Eu há pouco ainda mencionei belíssimo documento do Vale do Rio Doce. Um outro bonito documento é o recente comunicado da Comissão Episcopal da Ação Católica, presidida por nossos três cardeais e mais dois arcebispos e muito oportuna a respeito do assunto também. Por outro lado, as editoras católicas têm editado e difundido a Mater et Magistra a mais não poder.
Pergunta: V. Excia. tem conhecimento de uma edição comunista da “Mater et Magistra”, falsificada?
Resposta: Realmente não.
Pergunta: Como conhece o texto certo, se a imitação é quase perfeita?
Resposta: No jornal “Catolicismo”, de Campos, que aqueles que quiserem podem me pedir, eu mando, nós fizemos uma tradução da Mater et Magistra, diretamente tirada do texto oficial da Acta Apostolicae Sedis, ou melhor, do texto oficial latino do “Osservatore Romano”. Está à disposição dos senhores.
Pergunta: Não podem os comunistas também bater um carimbo “Mater et Magistra” na capa do fascículo?
Resposta: Bem pode ser.
Pergunta: O clero poderá dificultar a reforma agrária? Ou não? Por quê?
Resposta: Eu não tenho procuração para falar em nome do clero. Os senhores perguntem.
Pergunta: (inaudíveis as primeiras palavras) …acredito que a Igreja eterna, e antes que os comunistas a destruam, cristãos como o senhor já a teriam destruído, pois a conferência do senhor é um insulto, é um insulto à miséria e fome de milhares de almas brasileiras. O senhor não acha que suas conferências são a propaganda mais eficaz do comunismo? O senhor já teve um contato real com a vida do nosso camponês para que aponte soluções tão utópicas, como mandar que ele aproveite terras em Belém?
Resposta: “em Belém”… quem falou em Belém? Eu acho que é fora de Belém. Se for Belém, é o mesmo problema. Tem que ser no… (inaudível) [risos e aplausos]
Pergunta: O senhor me parece cristão que se fecha na igreja…
Resposta: Francamente, eu não estou numa igreja…
[risos]
Pergunta: (inaudíveis algumas palavras) …povo sofre e espera do senhor como cristão.
Resposta: Esta pergunta sobre a Igreja etc., etc., eu escrevi um livro com dois bispos e um economista.
Esses dois bispos, um foi vigário na paróquia do Belenzinho, em São Paulo, que é uma paróquia operária. É um filho de operários e é um homem de família operária. É um dos maiores teólogos do Brasil, é Dom Antônio de Castro Mayer. Conhece o problema da cidade palmo a palmo e quando foi nomeado bispo de Campos, foi uma consagração de toda a pobreza do bairro, porque não havia porão, não havia lugar de miséria e de dor, onde esse homem de grande cultura não tivesse levado sua presença e a presença de sua caridade e de seu zelo sacerdotal.
O outro é Dom Geraldo de Proença Sigaud, bispo de Jacarezinho. Quando ele foi nomeado, muito moço, bispo de Jacarezinho, era uma das maiores dioceses do mundo. Ele a palmilhou passo a passo, fundou inúmeras paróquias novas, construiu igrejas, tratou com os trabalhadores manuais, tratou com os fazendeiros e tal foi o desenvolvimento que deu à sua diocese rural, que foi dividida em três pelo Santo Padre, o que é uma verdadeira glorificação para o bispo. Depois, ainda foi nomeado arcebispo da Diamantina….
Depois do que eu disse a respeito da Igreja Católica, porque a Igreja Católica é mais para mim do que meu pai, mais do que minha mãe, mais do que minha vida, mais do que tudo que eu possa ter! A Igreja Católica eu A amo com um amor tal, que tem laivos de adoração, porque Ela é o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo e não haveria para mim, como filho da Igreja, uma maior desgraça do que eu ser acusado de trabalhar contra a minha Mãe, incomparavelmente querida, venerada e respeitada que é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana…
[Aplausos prolongados]
Os senhores me desculpem, mas eu não tenho nem coragem de sorrir para agradecer.
No momento de fazer essa visita a essa Casa e de ser acusado de trabalhar contra essa Mãe, eu me lembro de um fato histórico. E o fato histórico é o seguinte: a rainha Maria Antonieta de França tinha sido conduzida pelos seus algozes a um tribunal aonde foi levado, diante dela, o filho que tinha sido sequestrado, que tinha sido seviciado, que tinha sido embebedado e que aparece de tamancos, bêbado, oscilando – minhas senhoras me perdoem, mas a gravidade do assunto justifica isso – coloca-se diante da mãe e o promotor público daquele tribunal sanguinário disse o seguinte: “Agora ides ouvir contra a viúva Capeto – que era o nome que davam a ela – ides ouvir a acusação de seu filho”. E o filho acusou a mãe de o ter iniciado em todas as abominações sexuais.
A mãe, vestida de preto, porque ela estava viúva de seu esposo que acabava de ser executado, joga-se para o filho para querer beijá-lo – porque o carinho materno não cuida de outra coisa – ele a repele e repete a acusação. Ela voltou-se e disse o seguinte: “Eu apelo para todas as mães que estão aqui e para todas as mães de França, para que digam se acreditam nessa acusação”.
Eu apelo para os senhores!
[Aplausos bastante prolongados]
Locutor: O Prof. Dr. Plinio Corrêa de Oliveira proferirá amanhã, no Auditório da Escola de Medicina nova conferência a convite do Diretório Acadêmico da Escola de Engenharia e dos Diretórios Acadêmicos das Faculdades de Odontologia, Farmácia e Medicina. A conferência versará sobre o seguinte tema: o problema rural brasileiro.
Quero, mais uma vez, externar os nossos mais sinceros agradecimentos ao Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, bem como às Autoridades que aqui compareceram e a este distinto público.