Folha de S. Paulo, 17 de julho de 1973
Lembro-me perfeitamente do momento em que o conheci, já pelos distantes idos de 1935. Acabava eu de assistir, na Matriz de Santa Cecília, a um ato de minha Congregação Mariana. Saí pelos fundos do templo, e quando transpunha o pátio imediatamente traseiro à capela-mor, alguém me deteve para apresentar um Congregado vindo do Rio, para exercer a engenharia em São Paulo. Precedia-o a fama de inteligente, culto e modelar. Cumprimentamo-nos. Ele declinou seu nome: José de Azeredo Santos. Iniciou-se então, entre nós, uma cooperação a que se acrescentou desde logo uma amizade, a qual durou cerca de quarenta anos. Isto é, até o momento em que Deus o chamou a Si, enquanto eu, ajoelhado junto a seu leito de dor, no Hospital Samaritano, recitava, em nome dele, a famosa Consagração a Nossa Senhora, de autoria de São Luiz Grignion de Montfort.
É sobre esse amigo de tantos anos, um dos sócios-fundadores e diretores da TFP, que desejo entreter hoje o leitor. Tinha ele uma bela e interessante alma, que bem merece ser largamente conhecida.
* * *
Os elementos componentes da personalidade de meu falecido amigo eram um tanto díspares. Mas se conglomeravam de modo a compor uma diversidade harmoniosa, de agradável efeito.
Talvez lhe tenha advindo dos anos de residência no Rio seu modo de ser aberto e prazenteiro. Azeredo gostava de entremear conversas sérias, com ditos de espírito alegre. Culto, inteligente, vivo na exposição, não desdenhava por vezes de entrar nos assuntos mais comuns da vida corrente, cujo nível sabia realçar, salpicando-os com observações pitorescas, e inofensivos sarcasmos. Em suma, era um tipo característico de causeur [conversador, n.d.c.] exímio, segundo o estilo em voga naqueles tempos em que a arte de conversar ainda não morrera.
Este exterior ameno não obstava que, no cerne de sua personalidade, Azeredo fosse um espírito meditativo, profundo, que a vida – reforçando quiçá o temperamento mineiro desse filho de Nova Lima – aguçara a ponto de tornar algum tanto desconfiado.
Essa desconfiança – que jamais vi voltada contra nós, seus amigos chegados – foi na alma e na vida de Azeredo uma riqueza.
Assim, ouvi dizer que seus trabalhos técnicos como engenheiro eram marcados por uma abundância de precauções, que lhes conferia solidez privilegiada.
Pelo mesmo motivo, suas observações sobre os homens, as ideologias e os fatos eram marcados por uma agudeza de vistas que os tornavam especialmente interessantes.
E sua argumentação era não só concatenada com especial solidez, como documentada com abundância incomum: precaução contra algum possível opositor, que viesse com sofismas…
O desconfiado é habitualmente ácido. Azeredo escapava à regra. Já falei da amenidade invariável de seu trato, reflexo de seu feitio pessoal. Para fazer ver em todos os aspectos essa amenidade, cumpre acrescentar que Azeredo foi um pai carinhoso como poucos conheci. Sua jovem e virtuosa esposa, ele a perdeu há muitos anos. Deixava ela três filhas, cuja formação Azeredo completou com carinho mais materno do que paterno. Viúvo sempre saudoso, identificou do lado de fora do cemitério, o local bem junto ao qual a esposa dorme seu último sono. Tarde da noite, terminada a faina do apostolado ao qual consagrava as últimas horas do dia, Azeredo adquiriu o habito de ir por vezes colocar-se junto à sepultura da esposa, a fim de terminar alguma parte do Rosário, o qual, por excesso de afazeres, não concluíra. Penso que esse pormenor tocante, que algum tempo depois de enviuvar ele deixou certa vez escapar em uma conversa, diz tudo…
Hoje, na hora em que escrevo, dormem seus restos mortais ao lado dos de sua estremecida esposa, as primeiras horas do grande sono que a Ressurreição virá jubilosamente interromper.
* * *
Esse feitio de espírito pluriforme, e feito de oposições harmônicas, explica a ação de Azeredo na obra desenvolvida pela pré-TFP, e mais tarde pela TFP.
Com exceção de um período de três anos, isto é, de 1948 a 1950, tivemos sempre a direção de uma folha cultural católica. De 1933 a 1947, o “Legionário“, semanário católico de São Paulo. De 1951 até a presente data, “Catolicismo“, mensário de cultura que se publica sob a égide de D. Antônio de Castro Mayer, o grande Bispo de Campos.
Ao longo de todos estes anos, Azeredo batalhou em nossas colunas como lutador estrênuo. Jornalista profundo, vivo, brilhante, foi ele, na força do termo, um polemista. E como tal fica seu nome inscrito em nossos anais, com letras de ouro.
A perspicácia montanhesa levara Azeredo a concentrar sua atenção, com particular acuidade, nos movimentos mais ou menos subterrâneos que, por volta de 1940, começaram a agitar os meios católicos, e dos quais acabou por nascer o progressismo.
Homem de fé, armado de uma cultura sólida, se bem que não especializada, soube ele ver o perigo que muitos especialistas não tiveram penetração para perceber. E entrou na liça combatendo o bom combate, no momento preciso em que a grande debandada de tantos e tantos especialistas ia deixando sem proteção a muralha sagrada da ortodoxia.
Daí o ter ele publicado sobre o maritainismo, a “política da mão estendida”, a arte moderna, a gnose, o esquerdismo católico artigos substanciosos e chispantes de verve, aos quais, bem entendido, a outra parte jamais teve a audácia de responder abertamente.
Já pensou, leitor, o que significam estes quarenta anos de uma pugnacidade mantida à custas de um escasso tempo de repouso, e vivida sob os golpes de incompreensões e da hostilidade? Acrescente que a esse esforço não correspondia a menor recompensa pecuniária, nem a louvaminhança das tubas da notoriedade, e terá idéia do valor da folha de serviços que Azeredo assim formou.
* * *
O segredo de sua perseverança nessa longa luta estava na vida interior. Devoção marcada a Nossa Senhora, comunhão quotidiana, leituras espirituais do melhor quilate, eram as fontes reais desse ardor apostólico, do qual tanto se beneficiou entre nós a causa da Civilização Cristã.
Se algum dia a História do Brasil contemporâneo for escrita com imparcialidade inteira, seu nome figurará entre os mais beneméritos.
Em todo caso, cremos todos os de sua família e do imenso círculo de seus amigos da TFP, que ele já terá recebido da Justiça e da Misericórdia infinitas um prêmio incomparavelmente mais precioso e mais durável do que os bruxuleantes veredictos da História escrita pelos Homens.
“Serei Eu mesmo, vosso prêmio demasiadamente grande”, afirmou o Senhor (Gênesis 15, 1).
Nota: Vide também o discurso proferido pelo Autor do presente artigo, por ocasião do sepultamento daquele dedicado sócio-fundador da TFP brasileira.