Catolicismo, N° 519, Março de 1994 (*)
Plinio Corrêa de Oliveira
Hoje devemos começar o estudo propriamente do texto do livro que escrevi sobre a nobreza e as elites tradicionais análogas (**).
Primeiramente o título, em que cada palavra tem sua razão de ser.
Como o livro é uma defesa da nobreza e se dirige de modo mais especial – porém não unicamente – aos que são favoráveis a ela, a palavra “nobreza” figura com destaque no título. Este se refere ainda às elites tradicionais análogas.
O que é uma elite, uma elite tradicional, uma elite tradicional análoga?
A nobreza constitui uma elite. Como o próprio livro o indica, ela é uma espécie dentro do gênero “elites tradicionais” (cfr. p. 28). Enquanto tal, ela possui as características comuns a todas as elites.
A elite é um escol social, um grupo de pessoas que se relacionam entre si a vários títulos e exercem uma atividade comum a todas elas; tal atividade lhes dá, pela própria natureza das coisas, uma participação no mando e na influência sobre certo setor da população.
E cabe à nobreza, mais especificamente, manifestar com especial destaque estas duas características das elites: o mando e a influência. Falemos brevemente sobre a origem de cada uma delas.
Holocausto e influência social para elevar
Antes de tudo é preciso deixar bem claro que o que caracteriza a verdadeira e autêntica nobreza é a elevação, o holocausto em benefício do bem comum.
No mundo ocidental e cristão, tal nobreza provém dos antigos senhores feudais da Idade Média, guerreiros e agricultores, desbravadores e fundadores, verdadeiros chefes dos lugares onde se fixavam. Em caso de ataques e invasões, a eles cabia defender, dentro de seus castelos, os plebeus dos arredores, ameaçados de serem destroçados pelo adversário invasor. A eles cabia também enfrentar mediante a luta armada esse adversário, fosse ele um bárbaro, um maometano ou algum outro senhor cristão. Os nobres representavam assim, para o povo, a proteção de Deus. Era a proteção do senhor feudal concedida a toda a vassalagem, isto é, a todos os que, a algum título, eram seus vassalos.
Os senhores feudais dirigiam a guerra porque só eles conheciam a arte militar, aprendida de seus pais e antepassados. O senhor era o general, o pai, o escudeiro de Deus, que devia expor-se aos maiores riscos para defender o povo que a ele se tinha confiado.
Em caso de conflito bélico com outro país, o rei tinha o direito de convocar os nobres, mas não os plebeus. Era o nobre que ia para a frente de batalha, arriscar sua vida, sua integridade física, na defesa do bem de todos. Desse devotamento, dessa dedicação completa ao bem comum temporal, provinha a elevação e a consideração em que era tida a pessoa do nobre, e a natural posição de mando que daí decorria.
Passemos a ver agora como era exercida pelo nobre a ação de influência sobre as demais camadas da sociedade. É comum dizer-se que exerce influência sobre outro, aquele que tem uma ação profunda sobre o pensar, o querer ou a maneira de ser do outro.
A nobreza deve influenciar, pois isto faz parte de sua missão. Ela deve não apenas morrer pelos habitantes do país, mas também exercer influência sobre eles, ensinar-lhes uma das artes mais nobres que existe: a arte de viver. Ou seja, a arte do bom gosto, da boa ordenação da vida, das boas maneiras, da distinção. A arte, enfim, de ter o tônus humano próprio ao nobre.
A tradição ia assim modelando esse tipo humano nas famílias nobres, que passava a ser o tipo humano que todos queriam seguir, porque achavam que se devia ser assim. E a criação de semelhante tipo humano é um dos deveres da nobreza.
Uma pessoa não tinha obrigação de modelar-se segundo o nobre. Era apenas uma possibilidade, uma vantagem colocada ao seu alcance. Em nossos dias as pessoas se modelam de acordo com os atores de cinema, de teatro, de televisão etc. Eles é que influenciam as sociedades contemporâneas. Mas não constituem uma nobreza, porque não exercem essa influência no sentido de elevação, mas enquanto deprime, acachapa e desmoraliza. Constituem tais atores, por isso, uma péssima escola, que não pode ser tida como elite e, muito menos, como nobreza.
Elites tradicionais análogas: conceito e exemplos
Passemos agora a ver o que se entende por elites tradicionais análogas à nobreza.
Para uma elite ser análoga à nobreza é preciso que ela seja, antes de tudo, uma elite tradicional, ou seja, cuja existência já se estenda por várias gerações. Isto é muito lógico, pois, em geral, o primeiro membro de uma família que se torna muito rico não adquire logo as maneiras necessárias para ser um nobre. Um homem, embora muito rico, mas ainda tosco, rude, não se encaixa bem num ambiente nobre, belo e elegante por natureza. Seu filho, e depois seu neto, vão recebendo algo de incomparável que aprimora as gerações: é a educação, a virtude, as maneiras e o modo de ser, que fazem com que uma família, com o tempo, se torne tradicional. Ao cabo de algumas gerações a família assimila aquela nota que só a antigüidade confere.
Por sua vez, uma elite tradicional que muito faz em proveito do bem comum, é uma elite análoga à nobreza e apta a ser nela incorporada.
Pois a nobreza não é uma classe fechada. Nela existe uma porta aberta, muito larga, por onde se entra com as cautelas da tradição. Uma determinada classe ou profissão, ou mesmo uma pessoa digna, pode entrar na nobreza quando, após ter passado por uma modelagem social, presta um determinado serviço ao bem comum.
Praça São Marcos, Veneza (Canaletto)
Nobreza veneziana, “nobreza togada”, magistério universitário
Um exemplo histórico muito característico de elite análoga nobilitada é o da nobreza veneziana. Durante vários séculos, a elite social e econômica de Veneza exerceu uma dupla função: de comerciantes, para adquirir fortuna, e de guerreiros, para defender seus navios mercantes contra os ataques dos maometanos. O comércio e a guerra eram atividades simultâneas. Assim, Veneza conquistou no Mediterrâneo oriental uma supremacia não apenas comercial, mas também política. Ora, sua classe dirigente não era constituída por nobres, mas por homens de comércio. E o comércio era considerado uma atividade plebéia, que o indivíduo exercia em proveito próprio e não em benefício do bem comum. Tais comerciantes, porém, constituíam uma classe de homens riquíssimos que foram, pouco a pouco, aprimorando sua cultura, seu modo de ser e sua maneira de viver. Seus palácios passaram a refletir arte e bom gosto. Ao cabo de duas ou três gerações, seus descendentes, enobrecidos pela cultura, já tinham o trato, a gentileza e o tônus dos nobres. Formavam então uma elite tradicional análoga à nobreza, pois além de exercer o mando e a influência em Veneza, já haviam adquirido o padrão humano próprio à nobreza. E, em razão dessa analogia, tais comerciantes cultivados passaram a casar-se com nobres, incorporando assim sua classe à nobreza.
Em outros países da Europa também houve exemplos de classes ou famílias nobilitadas.
Na França, a classe dos magistrados – pela importância inerente ao cargo e aos assuntos de que tratavam, bem como pela riqueza que possuíam – passou a constituir uma elite análoga à nobreza, e mesmo uma nobreza de segunda ordem, a chamada “nobreza togada”.
Em outros lugares, além dos juízes, também os professores universitários – cuja cultura, erudição e competência redundavam em proveito para a sociedade em geral – tornaram-se uma elite análoga à nobreza, podendo mesmo aceder a esta. Ou uma família que, por duas ou três gerações, contava entre seus membros, ao mesmo tempo, militares de alta patente, professores universitários e bispos, também podia ser nobilitada.
Tais exemplos, entre outros, indicam maneiras de entrar na nobreza. O requisito necessário a todas elas era o serviço prestado ao bem comum temporal e a aquisição de um modo de ser e de viver compatível com a qualidade de nobre.
Autoridade de Pio XII: defesa para a tese central
Em sua parte final, o título do livro apresenta ainda, por uma explicável medida de segurança, a fonte da doutrina exposta em suas páginas: “….nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana”. Ou seja, tudo o que o livro expõe sobre tal assunto está baseado nas palavras desse Sumo Pontífice. Assim, um ataque ao livro significaria um ataque ao próprio Papa. A autoridade papal constitui dessa forma a melhor defesa para a tese central da obra.
Notas:
(*) Excertos da conferência pronunciada pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira para sócios e cooperadores da TFP, a pedido destes, em 3-11-1992, na capital paulista. Sem revisão do orador.
(**) Plinio Corrêa de Oliveira, Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana, Editora Civilização, Porto, 1993. Além dessa edição portuguesa, foram lançadas traduções da obra na Espanha, Itália, França, Estados Unidos e Áustria.