O verdadeiro progresso técnico: sábia atuação da ordem universal

Plinio Corrêa de Oliveira

Catolicismo, N. 91 – Julho de 1958, págs. 4 e 5

Concluímos hoje o comentário do pensamento pontifício contido na Mensagem de Natal de 1957 (1).

Lembram-se por certo nossos leitores de que, ao expor seu luminoso ensinamento, Sua Santidade tem particularmente em vista aqueles que, aterrorizados ante a imensa catástrofe do tecnicismo moderno no plano individual como no coletivo, chegam a uma conclusão dramática: não há mais solução para os problemas humanos.

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A ordem da criação, aqui manifestada na sua mais alta expressão, que é a Corte celeste, rege também o homem durante sua existência terrena. E é desígnio da Providência que, agindo segundo essa ordem, a humanidade complete de algum modo, com a obra de suas mãos, a excelência da criação. Quando a técnica se deixa guiar inteiramente pela doutrina da Igreja, ela concorre para produzir o verdadeiro progresso, muito diverso do imenso caos a que nos conduziu o tecnicismo neopagão. No clichê, miniatura de Jean Fouquet, século XV

Ao refutar esse erro, Pio XII deixa bem claro que há nele uma importante parcela de verdade. Essa parcela está na crítica dos gravíssimos prejuízos que a adoração da técnica tem trazido ao mundo. Consagramos à monumental análise destes prejuízos, feita pelo augusto Pontífice, os nossos comentários anteriores. Hoje, queremos mostrar o que o Santo Padre aponta de errado na doutrina dos que, à vista da crise da técnica, a responsabilizam por todo o mal, se insurgem contra qualquer progresso, e acabam por sustentar que o universo constitui um caos, uma desordem sem coerência nem significação. O que importa em afirmar que não há Deus, ou que Deus não é bom. São “os que cedem — na expressão da Mensagem — aos assaltos do pessimismo total, não sabem ver no mundo outra coisa que não seja o oceano de crueldades e dores que dilacera indivíduos e povos, e que acompanha direta ou indiretamente as realizações do progresso exterior”. As outras razões que parecem justificar este pessimismo são:

1) a mania das novidades, que leva ao menosprezo dos “valores autênticos… que sustentam a sociedade humana” (2);

2) a barbarização interior progressiva do homem contemporâneo, concomitante a seu constante progresso material;

3) o progresso material preponderante “decompôs o todo harmonioso e feliz do homem, e como que lhe mutilou a sensibilidade” para os princípios morais mais elementares.

Daí, no homem de nossos dias, uma imensa “admiração por si mesmo”, resultante de uma “espécie de embriaguez que suscitam as conquistas da técnica moderna”, e uma “admiração sem reservas por um produto material qualquer”.

Mas um exame mais atento do assunto conduz às seguintes conclusões:

1) não é verdade que o universo seja um caos: ele é, pelo contrário, uma obra ordenada e excelente de Deus;

2) em conseqüência, o progresso técnico em si mesmo, não pode senão trazer benefícios para a humanidade.

3) se, in concreto, não os trouxe, e até concorreu para agravar imensamente os problemas humanos, deve-se atribuir isto ao fato de que o progresso contemporâneo, sob muitos e muitos aspectos, não é mais um progresso autêntico: ele se deixou inspirar e guiar por doutrinas falsas, e assim passou a ser, não in totum, mas de várias maneiras, um fator de deformação do homem e de agravamento de seus problemas;

4) este dramático desvio do progresso foi possível porque existe na humanidade um fator de desordem, causado pelo pecado original e pelos pecados atuais. Este fator, pelo qual, como vimos, tantas vezes o progresso se deixou dominar e corromper, não é obra de Deus, mas do homem;

5) o remédio para este mal consiste em Jesus Cristo, Filho de Deus e Salvador nosso. Se dEle não se tivesse afastado o homem, não teria o progresso sofrido tão trágico desvio. Se o homem voltar ao seu Divino Salvador, o progresso se desenvencilhará de suas deturpações e produzirá os frutos mais excelentes.

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Estas verdades, Pio XII as expõe não propriamente nesta ordem, mas dentro da altíssima e preciosa perspectiva das relações entre o progresso humano e o Verbo Encarnado, que a festa do Natal nos faz considerar no Presépio de Belém. Dada a extraordinária riqueza doutrinária desse documento, parece-nos conveniente adotar em nosso trabalho uma forma tanto quanto possível esquemática.

A tese essencial da alocução pontifícia se enuncia, pois, assim:

“Cristo recém-nascido se manifesta e se oferece ao mundo atual:

1) como reconforto dos que deploram as desarmonias e desesperam da harmonia do mundo;

2) como penhor da harmonia do mundo;

3) como luz e caminho de todo esforço do gênero humano para estabelecer a harmonia no mundo”.

O desenvolvimento dessa tese se dá através dos itens seguintes:

1) A Santíssima Trindade e a harmonia do universo

O Santo Padre desenvolve o tema das relações entre a Santíssima Trindade e a harmonia do universo nestes termos grandiosos:

“A onipotência dAquele que ‘faz tudo aquilo que quer’ ( Sl. 115, 3 ), assistido por sua sabedoria infinita que ‘se estende com força de uma extremidade à outra e governa todas as coisas com doçura’ ( Sab. 8, 1 ), estabeleceu a grande lei da harmonia, que enche o mundo e lhe explica os acontecimentos. O Espírito de Deus, que nas origens presidiu do alto à criação, como que se difundiu nela; e quando na plenitude dos tempos, por obra do Amor misericordioso, o próprio Verbo Eterno, ao encarnar-Se, inseriu-Se nela pessoalmente, tomou posse dela visível e definitivamente. ‘Jesus Cristo, ontem e hoje; e Ele também eternamente’ ( Hebr. 13, 8 ). O universo se apresenta desse modo como uma sinfonia admirável, ditada pelo Espírito de Deus e cujo acorde fundamental brota da fusão das perfeições divinas: a sabedoria, o amor, a onipotência. “Domine, Dominus noster, quam admirabile est nomen tuum in universa terra” ( Sl, 8,2 )!”

2) O homem, colaborador de Deus na manutenção dessa harmonia

Esta harmonia universal constitui “um tema único e genial”, que cabe à humanidade executar, como imensa orquestra, sob a direção de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Sabedoria Eterna e Encarnada.

3) Esta colaboração não é só um prazer, mas um dever

Deus conferiu ao homem a realeza sobre o universo. O bom exercício dessa realeza é para o homem gravíssimo dever, que implica em conservar ou restaurar a harmonia, ainda que com grandes trabalhos. Disto lhe deu maravilhoso exemplo o Divino Salvador.

4) Este dever importa não só em trabalho, mas em luta

“A obra de restauração realizada por Jesus Cristo foi por Ele próprio definida como uma luta contra o ‘príncipe deste mundo’, e seu epílogo como uma vitória: ‘Ego vici mundum’ (Jo. 12, 31; 16,33)”.

O mundo, e não só ele como também o demônio e a carne, são os grandes inimigos que nesta luta cumpre ao cristão derrotar.

5) A moral e a harmonia universal

A lei de que decorre a harmonia universal é a vontade de Deus. Quanto mais se obedece a esta lei, tanto mais perfeita a harmonia. E quanto mais se transgride, tanto maior a cacofonia.

6) O mundo pode e deve ser reconduzido à harmonia, por Jesus Cristo

A glória de Deus, objetivo da criação e da Encarnação, não poderia realizar-se na desordem e no caos. E assim Deus quer a harmonia do universo.

7) O homem não é escravo das forças naturais

O fatalismo antigo caía no erro de supor que o homem é escravo das forças naturais. Nessas condições, seria ele joguete dócil, por sua ignorância e fraqueza, das suas paixões e dos espíritos malignos.

O homem hodierno, pelo conhecimento que tem da natureza, está ainda mais sujeito a deixar-se dominar por ela, em razão da adoração que tende a tributar às suas maravilhas. Mas deste perigo pode salvá-lo o auxílio do Verbo Encarnado.

8) O Verbo Encarnado, centro da história

Assim, o próprio centro em torno do qual se move toda a história é Nosso Senhor Jesus Cristo:

“De acordo com o conceito cristão de um cosmos modelado pela sabedoria criadora de Deus, e conseqüentemente unificado, ordenado e harmonioso, se ergue, talvez distanciada de diversos séculos, a previsão de um acontecimento solene, quando ‘nos céus novos e na nova terra’ ( cfr. 2 Pedr. 3, 13 ), ‘tabernáculo de Deus entre os homens para habitar com estes… Ele enxugará toda lágrima de seus olhos; e não haverá mais morte nem luto, nem gritos, não haverá mais dor, porque as primeiras coisas são passadas’ ( Apoc. 21, 1-4 ); noutros termos, as desarmonias presentes serão vencidas. Mas isto significa que a realização do desígnio harmonioso da criação está completamente adiado? Deus, que no próprio ato de o criar, ‘deu ao homem o poder sobre todas as coisas que estão na terra’ ( Ecl. 17, 3 ), teria retirado sua palavra? Não, certamente. Bem ao contrário de tirar do homem o poder de dominar a terra, Deus lho confirmou no dia em que revestiu de carne humana seu Filho Unigênito, tendo ‘decidido reunir na plenitude dos tempos, em Cristo, todas as coisas, as que estão nos Céus e as que estão sobre a terra’ ( Ef. 1, 10 ). De sorte que Jesus Cristo, Verbo Encarnado, Deus-Homem, vindo ao mundo, desde o primeiro instante de sua existência visível, atesta que o domínio do mundo pertence em graus diferentes a Deus e ao homem, e que não poderá, em conseqüência, ser obtido a não ser no Espírito de Deus.

“Em Jesus Cristo, na verdade, habitou o próprio Espírito divino (cfr. Col. 2, 9) que no princípio do tempo disse: ‘Que a luz seja. E a luz foi’ ( Gen. 1, 3 ); o mesmo Espírito divino que, impresso como selo indelével sobre todas as coisas criadas, é para todas, inanimadas e vivas, o elo que estabelece sua unidade, o germe da ordem, o acordo fundamental”.

9) A sã filosofia e o progresso

Mesmo antes da difusão do Evangelho, os gregos e romanos chegaram a conhecer a existência da alma humana. A filosofia cristã acrescentou maiores luzes a esse conhecimento. O espírito humano, “imagem do Espírito de Deus, é o elo que une e solda interiormente as coisas umas às outras”.

Trabalham contra a ordem do universo os técnicos que se negam a tomar em consideração, em seus estudos, a existência da alma imortal.

Recusadas a Encarnação e a espiritualidade da alma, o mundo fica sem sentido:

“Se, ao invés, se retira este fundamento do espírito, e como decorrência a imagem (no homem) e o vestígio (nas criaturas desprovidas de razão) do Ser divino eterno nas coisas criadas, perde-se por isto a harmonia nas relações do homem com o mundo. O homem se reduziria a um simples ponto de localização de uma vitalidade anônima e irracional. Ele não mais estaria no mundo como em sua própria casa. O mundo se tornaria para ele algo de estranho, obscuro, perigoso, sempre exposto a perder o caráter de instrumento e transformar-se em seu inimigo.

“E quais seriam as relações reguladoras da vida em sociedade sem a luz do Espírito divino e sem levar em conta a relação de Jesus Cristo com o mundo? A esta questão responde infelizmente a amarga realidade dos que, preferindo a obscuridade do mundo, se declaram adoradores das obras exteriores do homem. Sua sociedade não consegue, graças à disciplina de ferro do coletivismo, senão manter a existência anônima de uns ao lado da dos outros. Bem diferente é a vida social fundada sobre o exemplo das relações de Jesus Cristo com o mundo e com o homem: vida de cooperação fraterna e de respeito mútuo do direito de outrem, vida digna do princípio primeiro e do fim último de toda criatura humana”.

10) Jesus Cristo vence o pecado original, raiz das desarmonias

Diz o Sumo Pontífice:

“Mas a obscura e profunda desarmonia, raiz de todas as outras, que o Verbo Encarnado veio iluminar e recompor, consistia na ruptura produzida pelo pecado original, que arrastou em suas amargas conseqüências toda a família humana e o mundo, sua morada. O homem decaído, tendo o espírito obscurecido, não vê mais ao seu redor um mundo submisso, dócil instrumento de seu destino, mas como que a conjuração de uma natureza rebelde, executora inconsciente do decreto que deserdava seu primeiro senhor. Todavia, no homem e no mundo nunca se extinguiu a espera de um retorno à condição primeva, à ordem divina; e, segundo a frase do Apóstolo, ela se exprime pelos gemidos de todas as criaturas ( cfr. Rom. 8,22 ), pois, malgrado a escravidão do pecado, o homem permanece sempre a Imagem do Espírito divino, e o mundo a propriedade do Verbo. Jesus Cristo veio para reanimar aquilo que a queda havia mortificado, sanar o que ela havia ferido, iluminar o que ela obscurecera, tanto no homem quanto no mundo, restituindo ao primeiro seu domínio sobre a natureza, conforme o Espírito de Deus, e subtraindo o outro ao abuso culpável do homem. Todavia, se a ruptura foi curada em sua raiz, certas conseqüências, dúvidas, dificuldades e dores continuam sendo a herança da natureza humana. Mas até mesmo para estes frutos do pecado Jesus Cristo é penhor de redenção e restauração”.

11) Condenação do imanentismo progressista

É bem de ver que esta concepção, fazendo a história resultar da ação do livre arbítrio enquanto aceita ou recusa o auxílio de Deus, implica na condenação de um imanentismo segundo o qual a história não seria senão um processo fatal de desenvolvimento de forças cegas.

12) Condenação do culto do absurdo e do mal

Transcrevemos textualmente as palavras do Sumo Pontífice sobre o importantíssimo assunto em epígrafe:

“Tal reciprocidade de relações ( entre o espírito e a harmonia ) aponta à reprovação os que no domínio literário e artístico propagam o culto da desarmonia, e, como eles mesmos o afirmam, do absurdo. Que seria feito do mundo e do homem se o gosto e a estima da harmonia se perdessem? E’, no entanto, isto que visam os que tentam revestir de beleza e sedução o que é vergonhoso, pecaminoso, mau. E bem mais, para além da estética sua ofensiva fere a própria dignidade do homem, que, imagem do Espírito divino, é essencialmente feito para a harmonia e a ordem. Não se nega todavia que o próprio mal possa ser representado sob a luz da arte verdadeira, desde que, entretanto, sua representação apareça ao espírito e aos sentidos como uma contradição, oposta ao espírito, como o sinal de sua ausência. A dignidade da arte resplandece tanto mais quanto em maior grau reflete ela o espírito do homem, imagem de Deus, e, conseqüentemente, manifesta mais sua fecundidade criadora, sua plena maturidade, quando desenvolve o tema divino da unidade e da harmonia por suas ações e pelos diferentes aspectos de sua vida”.

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Concluindo esse admirável périplo doutrinário, o Santo Padre adverte os homens e as nações contra os perigos de um pseudoprogresso, não inspirado pela sabedoria:

“Hoje uma sedução quase cega do progresso arrasta as nações a negligenciar perigos evidentes e a não levar em conta perdas não indiferentes. Quem não vê, com efeito, como o desenvolvimento e a aplicação de certas invenções acarretam quase por toda parte prejuízos sem proporção com as vantagens, mesmo de natureza política, que delas derivam, e que se poderiam obter por outros meios com menos gastos e perigo, ou adiar decididamente para tempos melhores? Quem poderia traduzir em cifras o prejuízo econômico do progresso não inspirado pela sabedoria?”

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E esta consideração leva o augusto Pontífice a pensar na corrida armamentista, e nos riscos iminentes de uma guerra atômica. É com um ardoroso apelo à paz, que Sua Santidade encerra sua magnífica Mensagem.

Notas:

(1) O primeiro artigo desta série foi publicado em nosso nº 89. A Mensagem de Natal foi reproduzida na íntegra nos n°s 87 e 88 impressos e está disponível neste link.

(2) Neste trabalho, todas as citações em grifo e entre aspas são extraídas da Mensagem de Natal de 1957.

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