Milão, 15 de outubro de 1993
Lançamento em Milão do Livro “Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza Romana“, no “Circolo della Stampa”
Discurso do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira lido por um seu representante:
A I Guerra Mundial trouxe como um dos resultados mais importantes, se bem que não dos mais notados, uma transformação, para não dizer uma Revolução fundamental, não só no campo político e econômico, mas ainda no que diz respeito à mentalidade, usos e costumes em vigor antes da I Guerra.
Em outros termos isto quer dizer que muito do que era tido como essencial, elevado, sublime, quiçá intangível antes do conflito, foi, sem dó nem piedade, varrido pelo sopro dos acontecimentos e substituído por outros usos, costumes e mentalidades que estavam exatamente no polo oposto.
Fenômeno análogo se deu após a II Guerra Mundial. De tal maneira que se pode dizer que as duas grandes guerras do século XX, queira Deus que fiquemos só em duas e não sobrevenha uma terceira ainda antes do fim desta conturbada centúria, foram duas grandes revoluções.
Manda a justiça dizer que nas suas 14 alocuções ao Patriciado e à Nobreza romana, Pio XII procurou atenuar os efeitos dessas revoluções, por meio de diretrizes de uma sabedoria admirável.
Especificamente com respeito ao segundo pós-guerra, diz o Pontífice:
“Desta vez a obra de restauração é incomparavelmente mais vasta, delicada e complexa (do que no primeiro pós-guerra). Não se trata de reintegrar na normalidade apenas uma Nação. Pode-se dizer que o mundo inteiro precisa ser reedificado e a ordem universal restabelecida. Ordem material, ordem intelectual, ordem moral, ordem social, ordem internacional, tudo está para ser refeito e recolocado em movimento regular e constante. Essa tranqüilidade da ordem, que é a paz, a única paz verdadeira, só pode renascer e perdurar sob a condição de fazer repousar a sociedade humana em Cristo, para recolher, recapitular e reunir tudo n’Ele” (Alocução de 14 de janeiro de 1945).
Assim, quem lê os documentos do Pontífice, percebe sem esforço que se tratava na sua mente de opor a essa imensa Revolução o contrário dela, ou seja, uma Contra-Revolução. Uma Contra-Revolução que salvasse da ruína tantas tradições e que proporcionasse a tantas outras que ainda tinham toda razão de ser, mas que haviam desabado, a possibilidade de se reerguerem e de recobrarem vida.
Evidentemente, havia quem supusesse que por se dirigirem tão só à classe dos nobres e das elites análogas, o autor das alocuções contasse exclusivamente com estas para tal obra. Talvez julgassem os que assim pensavam, que só elas eram capazes de compreender, amar e defender essas tradições, das quais elas eram especificamente portadoras.
Na realidade, vê-se que Pio XII conclamava especialmente essas elites para tão grande missão. O que se explica, por serem elas a garantia da perenidade dos valores que no entender do Pontífice não deveria ter sido interrompida.
É preciso notar toda a amplitude da colaboração por ele desejada a este respeito. Ou seja, tal colaboração, ele não a pedia apenas aos membros dessa elite que continuavam na posse de bens suficientes para irradiar todo prestígio que lhes vinha do passado e que com isso, pusessem a serviço dessa Contra-Revolução toda a força de impacto com que se poderia contar.
Mas é evidente que da Nobreza e do Patriciado, o Pontífice esperava ainda mais. Contava ele também – e assinaladamente – com as pessoas dessa classe social que, arruinadas pelos infortúnios da guerra, já não dispunham dos recursos materiais para exercer sua influência. A tais pessoas, portadoras de um grande nome, ainda que reduzidas pelas necessidades econômicas a uma situação diminuída e muitas vezes estridentemente chocante, cabia dar aos povos o exemplo precioso do que seja em essência uma verdadeira nobreza e o que dela se pode esperar de melhor. Ou seja, o exemplo de toda virtude, grandeza de alma e dignidade moral que podem permanecer intactos em um nobre e irradiar sobre as outras classes sociais, mesmo quando ele tenha sido abandonado pelos bens materiais de toda ordem.
Mas é preciso ir além. Pio XII contava manifestamente com o conjunto do corpo social não só para salvar as elites ainda existentes e as tradições de que eram portadoras, mas também para que novas elites brotassem ao lado das primeiras. A estas, diante de novas situações e animadas por um espírito verdadeiramente católico, cabia dar origem a novos hábitos, novos costumes, novas formas de poder. E isto, sem em nada destruir ou contradizer o passado, mas completando-o quando necessário.
Seria razoável que, para uma finalidade tão alta, Pio XII pensasse em fundar algum tipo de associação ou instituição particular, à qual ele pedisse um esforço novo para circunstâncias novas. Algo, a exemplo do famoso Pensionato de Saint-Cyr, criado pela Marquesa de Maintenon, esposa morganática de Luís XIV, em socorro das muito numerosas jovens da aristocracia, cujos pais haviam caído na pobreza.
Mas também é óbvio que não era principalmente nisto que o Papa Pacelli colocava o melhor de suas esperanças.
É preciso notar que, quando fala dessas, o Pontífice apesar de se colocar em algum sentido como advogado de um certo passado em face de situações novas que apareciam, tinha a esperança de pleitear, em toda a medida do cabível, a causa da tradição e da nobreza. Portanto, suas palavras têm o valor de um incitamento cálido, de um desejo ardente, de uma diretriz precisa.
Mas essa idéia é oportuno pô-la em realce aqui. Isto é, a sociedade considerada como um todo, como um grande corpo constituído não só pelas instituições e sociedades menores que a integram, mas também pela multidão dos indivíduos que, desenvolvendo uma ação meramente pessoal em favor do bem comum, forma uma força social de primeira ordem com a qual ele contava.
Tem-se a impressão de que, segundo o pensamento do Pontífice, sem a colaboração do conjunto do corpo social não há, nesta matéria, êxito possível.
Isto nos põe bem longe das servidões em que tantas vezes as máquinas de publicidade moderna lançam os povos e as nações, e se sobrepõem às organizações por assim dizer autóctones às quais toca exercer sobre a sociedade uma verdadeira influência. Refiro-me especialmente à mídia. Sem o “placet” do conjunto dos órgãos de publicidade ou pelo menos dos principais dentre eles, é quase impossível obter hoje em dia o êxito de uma causa. De maneira que, por mais que se fale em democracia, acaba sendo verdade que nas nossas sociedades ditas democráticas o poder decisório fica quase sempre nas mãos dos mandarins, senhores da mídia. Pio XII poderia fácil e comodamente apelar para esta. Ela atenderia seus rogos. Ou pelo menos simularia fazê-lo.
Como é natural, ele desejava a colaboração efetiva dela. E em vários pontos a obteve. Mas, em suas alocuções ao Patriciado e à Nobreza romana, a mídia não figura como elemento essencial do quadro de uma sociedade ideal. Provavelmente por estar na essência dos mandarins desta a tentação permanente de inautenticidade. E, como se sabe, às tentações permanentes de enveredar pela inautenticidade, muitas e muitas vezes não resiste a debilidade humana.
Então, qual é esse poder com que Pio XII contava? Era antes de tudo e evidentemente o poder de Deus todo poderoso, era aquele Poder que na Ponte Mílvia deu a vitória a Constantino e em Lepanto a D. João d’Áustria, para não mencionar senão dois exemplos históricos muito insignes. Na realidade, do ensinamento de Pio XII decorre que se individualmente cada católico que o ouça procurar cumprir seu dever trabalhando no sentido desses ensinamentos, e o faça marcadamente no seu campo de ação pessoal, pode daí resultar uma força de impacto global, de grande potência.
Enfim, devemos ver nessas alocuções sobretudo o empenho do Pontífice em que cada qual oriente suas aspirações ideais em uníssono com ele, que cada qual trabalhe, e que concentre seus esforços principalmente em seu campo de ação imediato. Isto é, junto àqueles com quem convive no lar e no exercício da profissão. Se todos os católicos ufanos de se poderem sentir colaboradores do Papa nisto que é indiscutivelmente uma grande cruzada, quiçá a cruzada do século XX, se todos católicos trabalhassem com afinco neste sentido, por cima de todas as organizações e de todas as coalizões, a vitória se afirmaria. A vitória das grandes causas não é assegurada tanto pelos grandes exércitos quanto pela ação individual das grandes multidões imbuídas de grandes ideais e dispostas a todos sacrifícios para vencer.
Parece-me importante realçá-lo, pois são excessivamente numerosos em nossos dias os que, para concentrarem toda sua existência nos tranqüilos e despreocupados confins das conveniências pessoais, e se julgarem isentos de qualquer obrigação para com as grandes causas, alegam comodamente que a ação individual está reduzida à inoquidade, neste nosso século de enormes massas humanas aglomeradas nas concentrações urbanas de porte babilônico, ou, se bem que esparsas nas vastidões dos campos, dos mares e dos ares, ficam continuamente sujeitas às manipulações psicológicas e ideológicas dos meios de comunicação que parecem feitos para cobrir com sua influência distâncias infinitas, e abarcar multidões incontáveis.
Desejo acentuar isto a fim de que a ninguém restasse pretexto para nada fazer, alegando sua impotência pessoal, as dimensões vermiculares de sua influência individual e em conseqüência a inutilidade de todo esforço seu. Que cada um, desde o maior até o menor, não poupe qualquer esforço na direção indicada pelo Pontífice, e a vitória estará assegurada.
É este o pensamento central de Pio XII e por isto muito longe de querer desencorajar os esforços organizados das associações e grupos sociais desejosos de promover tão grande bem e capazes de ajudar eficazmente para levar a cabo a ingente tarefa comum, eu quisera que a estes grupos não faltasse esta imensa colaboração somada, de todos os que são sensíveis ao ensinamento de Pio XII. Pois representam uma imensa força.
Para medir essa força, quero encerrar lembrando palavra histórica assaz conhecida. Quando caminhava para seu apogeu o poder napoleônico na Itália, um dos generais do jovem corso lhe perguntou a que grau de importância corresponderia o trato que ele deveria dispensar ao Papa então reinante. A resposta de Bonaparte foi rápida e fulminante: “Trate-o como um general que tenha às suas ordens imponentes exércitos”. O encanecido ocupante do Trono de São Pedro que aos olhos de muitos parecia não poder senão o que podem os muito velhos, para o sagaz Napoleão era uma potência. Por que? Porque uma multidão incontável de pessoas aparentemente sem influência, sem importância, sem capacidade, sem força de impacto individual, entretanto reconhecia nele o Vigário de Cristo e estava disposta a tudo fazer por ele. Esta coalizão de fiéis aparentemente sem valia, atemorizava o homem diante do qual entretanto estremeciam os reis da terra.
Uma análise histórica bem feita mostrará que uma das causas pelas quais Napoleão, depois de Waterloo se sentiu isolado e caiu, foi porque ao seu lado não estava o “General” que tinha às suas ordens o exército invisível mas temível da multidão dos que são pequenos aos olhos dos homens, mas cuja prece e cujos sacrifícios tudo podem aos pés do trono de Deus. Ou seja, a Igreja já não considerava com bons olhos o aparente vencedor da Europa.
Em torno dele, já não se viam mais as incontáveis simpatias dos homens de mentalidade simples e honesta, que em determinado momento haviam esperado que ele fosse o restaurador dos direitos da Igreja, dentre os escombros a que a Revolução Francesa quisera impiamente reduzi-la; daqueles que haviam esperado que sua espada fosse o gládio de tantas legitimidades abatidas, quer na esfera dos direitos públicos, quer na dos direitos individuais; que, vendo-o pedir a Pio VII que o coroasse em Notre Dame, tanto se encheram de esperança de que esse gesto representasse o reconhecimento da origem divina do Poder, que mal atentaram para o fato de que Napoleão não consentiu que o papa lhe cingisse a fronte com o diadema imperial, mas o retirou de suas mãos para se coroar orgulhosamente a si próprio, negando o poder que na aparência ele ia restaurar.
Mas, um outro dito célebre ilustrou a esse respeito o abandono a que o tirano se reduzira a si próprio, com sua política religiosa ambígua, quando não declaradamente anti-religiosa.
Conta-se que, enquanto as tropas de Bonaparte caminhavam vitoriosamente rumo a Moscou, pediu-lhe audiência um oficial russo, enviado especial de Alexandre I. Ao longo das tratativas, sobreveio a hora do almoço, e Bonaparte convidou-o para sua mesa o delegado do Tsar de todas as Rússias. Durante a refeição, a conversa incidiu sobre o número de edifícios religiosos que, durante seu percurso, o monarca invasor notara em solo russo. E, querendo atribuir a esse pretenso excesso de religiosidade a debilidade da resistência russa, Napoleão lhe perguntou se a Rússia seria em território europeu a nação que mais gastara em edifícios religiosos.
Moscou em chamas, 1812 (Viktor Mazurovsky)
Com vivacidade, o enviado de Alexandre I lhe respondeu: “Não, Sire, há também a Espanha”. Ora, precisamente naquela quadra histórica, o heroísmo dos católicos da Península Ibérica infligia a generais dentre os maiores de Napoleão, derrotas vexatórias sem precedentes. Compreendendo a alusão, e o alcance militar admirável do fervor religioso ibérico, o corso se calou. Pouco depois, sobreveio o incêndio de Moscou, e a retirada da Rússia se tornou para Napoleão uma necessidade iniludível. É possível que em meio às aflições de Waterloo, Napoleão se tenha lembrado de tudo quanto lhe faltava para vencer. E tenha compreendido mais do que nunca a importância do fator religioso, mesmo face aos mais poderosos generais.
Se a carência deste fator tanto debilita, a presença dele pode construir ainda mais. Este é o poder das multidões de fiéis que levam ao êxito as obras dos Papas quando, movidas pelo sopro do Espírito Santo, elas se sentem capazes daquilo que Camões intitulava com notável formosura de expressão “cristãos atrevimentos” (Lusíadas, VII, 14).
Eram por certo cogitações dessas que enchiam de esperança o coração do Papa Paccelli, quando pronunciava suas famosas alocuções ao Patriciado e à Nobreza romana.
“Deus vult” exclamou em Clermont a voz unânime dos guerreiros feudais até há pouco indolentes ante o perigo muçulmano que avançava. Mas a ação do Espírito Santo, fazendo-se sentir através da voz carregada de impressionantes inflexões místicas do Papa Bem-aventurado Urbano II acendeu rapidamente nesses ânimos adormecidos as labaredas sublimes da combatividade dos cruzados. E o curso da História mudou.
A voz de Pio XII ressoa ainda nas suas alocuções ao Patriciado e à Nobreza romana, e eis porque essas alocuções, que não haviam logrado sacudir a inércia de tantos católicos nos dias em que foram pronunciadas, parecem hoje admiravelmente vivificadas por um renovar de graças que leva legiões sempre mais numerosas, de contemporâneos nossos, a desejar a restauração de uma sociedade cristã, hierárquica, em que reine a tranqüilidade da ordem, em uma atmosfera de paz, na qual se respeitem para o bem comum todas as hierarquias legítimas.
É o que explica que, com renovado ardor por esse grandioso ideal, as alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana estejam, reeditadas no livro cujo lançamento hoje se opera, revivendo dias de eficácia e de glória em áreas de civilização sempre maiores, de nosso mundo ocidental.
Portugal, Espanha, o mundo ibero-americano, o mundo anglo-americano, mundo franco-americano, França, África do Sul são nações em que essas admiráveis alocuções vão circulando hoje, nas despretensiosas páginas deste livro, com o vigor e a força de impacto de textos saídos, há dias apenas, dos lábios do grande Papa. O que desperta a esperança de que em breve o mesmo ocorra em outros países como a Inglaterra e a Alemanha. E como hoje ocorre nesta admirável Itália, a alegria e glória do mundo inteiro, com os lançamentos em Milão, Roma e Nápoles.
Assim queira a Santíssima Virgem dar realidade inteira aos anelos tão justos, tão oportunos, tão indispensáveis, do Papa Pacelli.
Vista parcial do público presente ao lançamento da obra do Prof. Plinio, em Milão