Recordações dos últimos dias de Dona Lucília Corrêa de Oliveira

Auditório São Miguel, 20 de abril de 1991

A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

“No ano de 1967, adoeci com sério risco de vida, e minha residência se encheu naturalmente de amigos. Profundamente aflita, a todos recebia minha Mãe (* 22-4-1876 + 21-4-1968), já então com a avançada idade de 91 anos. Nesse difícil transe ela lhes dispensava uma acolhida na qual transpareciam seu afeto materno, sua resignação cristã, sua ilimitada bondade de coração e a encantadora gentileza dos velhos tempos da São Paulo de outrora. Para todos foi uma surpresa e, explicavelmente, também um encanto de alma”. Com estas palavras, narrou Plinio Corrêa de Oliveira em memorável missiva ao diretor do jornal “O Estado de S. Paulo”, publicada integralmente por este a 22 de agosto de 1979.

No presente áudio, o Prof. Plinio desenvolve, um tanto mais longamente do que na carta acima referida, o derradeiro período de vida terrena de sua virtuosa e extremosa Mãe.

Para aprofundar a respeito dela, basta clicar aqui.

*      *      *

Posso bem dizer, meus filhos, apesar de ir tarde o relógio, como vós bem lembrastes, e os ponteiros não terem passado apenas o umbral da meia-noite, mas estarem além do umbral da uma hora, eu não quis deixar de estar convosco uns instantes, no começo dessa data de hoje. É a razão pela qual, muito rapidamente embora, por aqui passei para vos ver um instante, e para vos dizer alguma coisa.

Dizer alguma coisa que começará por ser um agradecimento pela tão bela saudação que me fizeram ambos os oradores que leram aqui a troca de carta entre ela e eu, e traçaram ainda outras considerações; e aqui estamos para dizer alguma coisa a respeito da data.

Eu estava contando ao Sr. Fernando Antunez durante o jantar no São Bento, que algum tempo antes de eu adoecer com esse ataque de diabetes que eu tive, e no fim do qual ela morreu, eu estava jantando com ela na sala em casa, e estava olhando para ela e pensando como era raro – para dizer que era só raro – encontrar hoje pessoa como ela, e lembrei-me do nosso convívio que estávamos tendo ali e que tínhamos tido tantas vezes naquela sala, há muitas anos que morávamos naquele apartamento, e dada a raridade daquele convívio, aquele ambiente, naturalmente me veio ao espírito o seguinte:

Qual será o desígnio da Providência a respeito de nós dois? Aqui está uma sala onde estamos sós: uma velha mãe, e um filho, homem já maduro. Passa-se rapidamente da velhice para morte; passa-se rapidamente da maturidade para a velhice, o tempo traga tudo; se não acontecerá que antes do período normal a Providência designe de levar-nos embora, tirar-nos dessa vida, ela e a mim, e assim as coisas fossem como se um tufão entrasse nessa sala de jantar e nos levasse os dois embora, e então esse último torrãozinho de um lugar onde como em poucos lugares do mundo de hoje havia um filho que queria sua mãe com todo coração e a mãe o merecia, e a merecia com uma abundância e uma amplitude difícil de calcular. E havia um filho que pelo menos queria bem a sua mãe tanto quanto podia.

Então, que naquela coisa tão rara, aquilo a Providência permitisse que fosse destruído também. E assim as últimas coisas iriam desaparecendo da face da terra antes de vir a Bagarre. Como é que seria isso, como é que não seria, enfim, cogitações mais ou menos melancólicas me passavam pela cabeça enquanto eu jantava com ela, e mantinha com ela uma conversazinha assim de superfície. Ela estava muito idosa, ela tinha 92 anos e no que ela conservava ainda de lúcida, ela era admirável. No que ela tinha de já não lúcido, ela era enternecedora. Enquanto eu mantinha essa conversa assim, eu me regalava com a presença dela. Porque em toda a vida a conversa dela foi boa, mas a presença dela era ótima. Porque alguma coisa desse contato direto, desta relação direta que passava por cima do que a palavra humana possa dizer, e que a simples presença dela irradiava docemente, suavemente, alegremente, mas com tanto recolhimento, com tanta dignidade, com tanta seriedade, que jamais eu me fartava disso.

* No escritório, a Senhora Dona Lucília sentada na cadeira de balanço se entretinha vendo Dr. Plinio trabalhar

Eu me lembro, às vezes, no meu escritório, ela entrava e eu estava trabalhando. Ela se sentava numa cadeira de balanço que há lá, eu sempre sentado num sofá, e ela numa cadeira de balanço. E ficava quietinha ao meu lado. Às vezes ela ficava rezando, mas às vezes eu notava que ela já tinha terminado as orações, provavelmente, porque não estava rezando, e ficava simplesmente ali. Pode ser que com a generosidade de mãe, ela encontrasse algum entretenimento na minha presença, mas o que é certo é que eu me entretinha prodigiosamente com a presença dela.

Às vezes durante o meu trabalho, que era ou Despachinho – já naquele tempo para o movimento interno do Grupo – ou era preparação de aulas, porque eu lecionava naquele tempo na PUC e em outros estabelecimentos, então tinha muita aula para preparar, mas apesar de tudo eu fazia um agradinho assim para ela, passava a minha mão pelas mãos dela, qualquer coisa, muito por alto, para não perder tempo. Mas eu via que ela ficava contente com isso e tocava para frente. Era essa a nossa convivência na rua Alagoas, 350 primeiro andar, e ficou ainda hoje tão impregnado da presença dela que às vezes eu tenho a impressão de que ela está no quarto do fundo.

* Um belo dia, começo a notar os primeiros sintomas da doença que haveria de me prostrar durante muitas semanas

Nisso tudo um belo dia eu acordo e começo a notar os primeiros sintomas da doença que haveria de me prostrar durante muitos dias, muitas semanas, e que haveria de dar numa operação… Que quando voltei para casa, ela ainda estava viva, mas tinha envelhecido muito. Ela não percebeu claramente que eu tinha estado fora, ou ao menos não disse nada, porque quando voltei estive com ela, naturalmente brinquei um pouco com ela, falei, etc., depois fui para meu quarto; mas era obrigado ficar com a perna estendida durante todo tempo – coisas prosaicas que não vem aqui a propósito – mas numa posição muito incômoda, muito desagradável, e quando eu apenas começava a poder andar, me afirmaram que ela estava muito pior e que ela tinha chegado aos últimos dias dela.

Eu me lembro que no dia 20 de abril, exatamente, portanto, no dia que seria lembrado ontem, quer dizer, sexta-feira, eu vi que o estado dela estava muito pior do coração, e passei literalmente o dia inteiro no quarto dela. Eu só saí para uma refeição, uma coisa e outra, mas voltava imediatamente. E ela estava tão opressa pela falta de respiração que ela não podia conversar e tinha a agonia, um mal-estar que a falta de respiração naturalmente traz consigo. Mas calma, tranquila, serena.

* Eu gostaria de estar ao lado dela, rezando por ela, no momento do trânsito dela desta vida para a outra

Quando chegou no dia 21 de abril, eu tinha pensando antes que eu gostaria de estar inteiramente acordado, que eu não gostaria que ela morresse durante a noite, e que eu fosse para o quarto dela meio cambaleante, sem perceber bem o que é que estava acontecendo. Pelo contrário, eu gostaria de estar inteiramente lúcido, estar rezando por ela quando ela falecesse. Tinha assim formado a idéia que seria bom que fosse numa manhã, depois de eu ter tomado meu lanche e ter lido o jornal para ver quais eram as notícias urgentes para eu despachar alguma coisa. Depois fosse para o quarto dela, e ainda alcançasse com vida e pudesse ver o trânsito dela desta vida para a outra. Mas não pensei que fosse para tão logo.

O fato é que quando eu acabei de tomar meu lanche e depois de ler o jornal, eu naturalmente acordei, perguntei por ela, e me disseram que ela tinha passado a noite mais ou menos como antes. Eu acabei de ler o jornal, entra o doutor Duncan no meu quarto e me disse:

“Doutor Plinio, venha depressa que ela está morrendo”.

Eu estava com muita dificuldade de locomoção, mas tão depressa quanto eu pude, eu fui para o quarto dela que ficava junto ao meu. Quando entrei no quarto, ele me disse: “ela já morreu”:

Eu perguntei: “como é que ela morreu?”

Ele disse que ela estava com a respiração cada vez mais ofegante, mas não quis me chamar, ele quando viu que ela estava piorando muito, ele é que me chamou, e que ela apenas fez um grande nome do padre, e pôs as mãos ao longo do corpo. Imediatamente morreu.

* “Apesar da idade que eu tinha, eu chorei caudalosamente e à altas vozes quando mamãe morreu”

Eu me lembro que quando entrei no quarto, ela estava, portanto, morta, e já tinha prevista uma cadeira para eu me sentar junto à cama dela. Eu me lembro que apesar da idade que eu já tinha naquele tempo – ela morreu, eu acho que eu não tinha ainda 60 anos, devia estar pelos 60 anos – eu me lembro que chorei caudalosamente e à alta vozes. Lamentando o que tinha me acontecido, rezei pela alma dela etc., e fui depois fazer minha toilette, etc. Recomendei que mandassem vir o esquife, enfim, todas as recomendações funerárias necessárias enquanto eu fizesse minha toilette. E na desolação profunda em que eu estava, eu me lembro de ter dito várias vezes que ela era a luz dos meus olhos, quer dizer, o que há de mais precioso na vida para mim era ela. Quando eu fui fazendo a minha toilette etc., uma tranquilidade me tomou – aliás, perturbado eu não fiquei em nenhum momento, triste, enormemente sim, mas não convulsivamente, enormemente triste – uma tranquilidade penetrou em mim, mas uma tranquilidade suave, uma tranquilidade distendida que fez com que sem deixar eu sentir enormemente o que se passava, entretanto o peso trágico do fato deixou de acabrunhar a minha alma. E eu pude acompanhar tudo que se passava, fui para aquele salãozinho cor de rosa que há na minha casa onde o corpo dela estava exposto, rezei naturalmente, fiquei lá o tempo inteiro até a hora do caixão partir, e fui depois para o cemitério atrás do caixão.

No cemitério, eu encontrei do lado de fora, muita gente da TFP que estava esperando o caixão chegar. E era a minha intenção descer – não havia ainda aquela rampa que há hoje para os automóveis andar – era minha intenção descer e ir acompanhar o caixão. Mas eu não estava ainda inteiramente cicatrizado de minha operação, não me faria bem. E, sobretudo, me era penoso demais vê-la no caixão, ver a abertura do caixão na capela, e acompanhá-la depois até a sepultura, ver abrir – aquele tempo não tinha essa sepultura que estava lá hoje, era apenas um terreno, depois é que mandamos fazer uma sepultura ali – mas abri o terreno e ver colocar o caixão dela ali, depois ver colocar terra em cima, e com os coveiros trabalhando como costumam trabalhar, assistir aquilo tudo, eu não tive coragem. Então fiquei esperando no cemitério até o fim, e depois voltei para casa.

Evidentemente, a sensação de tristeza, de pesar, não me abandonou durante o dia inteiro. Passei o dia inteiro apenas recebendo muito pouca gente, mandando dizer que não estava a quem aparecesse, e no dia seguinte, parti para o Eremo de Amparo de Nossa Senhora que os médicos recomendavam para trocar de ar, para mudar um pouco de clima. Ali passei alguns dias, e voltei para a missa de sétimo dia.

* Eu pedi, por meio de Nossa Senhora, que me fosse dado um sinal qualquer de que a alma dela tinha saído do purgatório

Mas eu tinha muita vontade e me punha essa pergunta seguinte. É da doutrina católica que muitas almas boas e até ótimas podem passar pelo purgatório, e que até santos passam pelo purgatório, então a pergunta: ela estará no purgatório? Que alegria eu teria se saber que ela está no céu gozando da visão beatífica. E pedi por meio de Nossa Senhora, eu pedi que me fosse dado um sinal qualquer de que a alma dela tinha saído do purgatório.

No próprio dia em que eu cheguei do Eremo do Amparo de Nossa Senhora, chegando eu fui à igreja de Santa Terezinha, mas aí a cicatrização estava completa e eu estava andando. Fui a igreja de Santa Terezinha e como acontece, fiquei no primeiro banco junto com pessoas de minha família. E a missa foi tocando etc., etc., e eu rezando por ela.

Quando chegou o momento da consagração, eu notei uma coisa extraordinária: havia no chão, posto por cuidados de minha irmã, encomendado por ela e por mim, mas a coisa arranjada por ela, uma cruz muito bonita de rosas no chão, e bem no centro, no ponto de entroncamento dos dois braços das duas partes da cruz, um tufo de orquídeas também muito bonita, muito bem arranjada. E, estávamos rezando quando eu fui surpreendido, por uma luz que entrava de um vitral ligeiramente atrás, e penetrava diretamente sobre a cruz. O que se explicava perfeitamente por que algum tempo antes eu tinha reparado – essas coisas que a gente olha e nota – que havia ali no vitral, uma parte quebrada, e que, portanto, passava a luz do dia, não a luz do vitral, mas a luz do dia, a luz solar passava diretamente, eu notava. Por aquela quebradura no vidro passava um raio de luz. Mas o que era bonito é que o raio de luz, caia diretamente sobre aquela cruz feita de rosas… [Vira a fita]

… eu vi aquela cruz assim, e em certo momento aquele raio deslocou-se lentamente e fixou-se nas orquídeas que ficavam no entroncamento e fixado nas orquídeas, iluminou-as intensamente, mas eu tive a impressão de que a luz se carregava ainda mais e que penetrava as pétalas das orquídeas por dentro.

A consagração prosseguia; em certo momento, quando terminou a consagração, por uma coincidência o raio de luz marchou em direção à porta oposta à sacristia e sumiu. Mas marchou de um jeito tal que me lembrava o passo dela de maneira a produzir no meu espírito a convicção: “ela está no céu”. O que me trouxe um alívio muito grande, e uma esperança muito grande.

Sei que as almas que estão no purgatório podem rezar pelas que estão na terra, e que ainda que ela estivesse no purgatório, ela poderia rezar por mim. Mas que alegria para mim, se em vez de ela estar dentro das chamas do purgatório, ela estivesse na presença já de Deus, inundada daquela felicidade eterna que um dia pela misericórdia de Nossa Senhora, nos há de inundar e super-inundar a todos nós. Saí com a alma aliviada. Eu poderia dizer que eu saí desse meu purgatório que era a idéia de que ela pudesse estar nas chamas do purgatório, e saí alegre também. Eu não tinha dúvida e hoje em dia ainda não tenho: era o sinal do céu que eu tinha pedido.

Lembro essas coisas todas com emoção, e essa emoção aumenta vendo todo esse mar de “enjolras” [jovens, n.d.c.] que eu vejo aqui, misturados, alguns veteranos cuja presença me dá tanta satisfação. E lembrando-me de que provavelmente sem a intercessão dela, muitos não estariam aqui.

* Ela era feita para ter uma quantidade incontável de filhos

Eu várias vezes em vida, eu fazia essa reflexão: ela tem um filho único, tinha também uma filha, minha irmã, mas dois é muito pouco para o transbordamento de amor materno que ela tinha, ela era feita para ter uma quantidade incontável de filhos, esses filhos eu só conheci mais tarde, e tenho muita alegria em contemplá-los hoje à noite.

Meus caros, isso posto, eu tenho outra reunião ainda, e com isso sou obrigado a interromper a esta. Mas eu peço muito a quem me quis tanto, e quer tanto aqueles a quem eu quero, eu peço muito que ela reze por todos os senhores, para que todos pertençam cada vez mais a Nossa Senhora, pertençam cada vez mais a Santa Igreja Católica Apostólica Romana única Igreja verdadeira, do único Deus verdadeiro, que formem o propósito de consagrar a sua vida à Santa Igreja e à luta pela Causa contra-revolucionária; a luta, portanto, pela civilização cristã que é como que uma emanação temporal da Santa Igreja Católica, e na esperança de ser atendido, na convicção de ser atendido, eu encerro a reunião rezando as orações de costume, mas especialmente para tantos filhos dela que enchem esse auditório.

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