Revolução Francesa (14 de julho): fatos históricos e vista de conjunto

Santo do Dia, 14 de julho de 1990, sábado

A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

* Como explicar que o 14 de julho seja uma festa internacional?

Meus caros, hoje é dia 14 de Julho de 1990, e a data tem significação no mundo inteiro: 14 de Julho. A tal ponto que há uns 30 anos atrás, mais ou menos, se eu não me engano, há uns trinta anos atrás era feriado em vários países do mundo, e creio eu sem ter muita certeza, que no meu tempo de menino, era feriado em todos os países civilizados.

Apresenta isso uma circunstância, que nós não encontramos em outras datas. Quer dizer, os senhores tomem, por exemplo, uma festa qualquer, 7 de setembro de 1822, o Brasil se declarou independente. Mas, não é para ser festa em outros países do mundo. No Brasil sim porque é data da independência do Brasil. Em 15 de Novembro 1889, proclamou-se a república do Brasil. Para quem gostou da coisa é festa no Brasil. Mas não há razão para ser festa internacional, é um acontecimento interno no Brasil.

Agora, como explicar que um acontecimento histórico da França, uma história que tem tantos acontecimentos gloriosos e bonitos, e o 14 de Julho seja uma festa internacional?

Por exemplo, a data que eu não me lembro qual é, em que o Bem-aventurado Urbano II, proclamou a Cruzada, e da qual decorreu a série de cruzadas que acabaram, não só tomando o reino de Jerusalém, instituindo ali o reino católico de Jerusalém, mas desbravando todo o Oriente, contendo a investida dos maometanos pela Europa a dentro, etc., etc.

A queda de Granada, uma data magnífica, que significava o fim do poderio maometano na Espanha, depois de 800 anos de luta! Isso não é uma festa internacional! Por que é que só a tomada da Bastilha tem que ser uma festa internacional?

Evidentemente, porque a idéia que estava atrás disso é que esta festa marcava uma revolução com significado para o mundo inteiro. E que era o ponto de partida de revoluções análogas no mundo inteiro. Era o começo de uma revolução universal. E como revolução universal é natural que seja celebrada em todo o universo. Donde então a universalidade da festa da tomada da Bastilha.

Nós poderíamos dizer aqui, dar uma vista de conjunto daquilo que os senhores já conhecem, mas é uma comemoração. Na comemoração a gente se lembra em conjunto de coisas que todos sabem. Então, alguma coisa sobre a Revolução Francesa e o papel que a queda da Bastilha representou dentro da Revolução Francesa.

* Por que a Revolução Francesa representou o golpe de morte no Ancien Regime?

Então a começar pela Revolução Francesa.

Por que é que, em traços muito rápidos para ter uma visão global do que foi a Revolução Francesa, nós podemos dizer que essa Revolução representou o golpe de morte dado numa sociedade, numa organização política, social e econômica, que tinha alguma coisa de muito ruim, e muita coisa de muito bom? O que não quer dizer nem nenhum pouco que por causa disso essa organização poderia validamente continuar a existir como era.

Em primeiro lugar, porque onde existe algo de ruim, não pára o ruim até que seja expulso. E, portanto, continuar impunemente com que era sem expulsar o mal, é trazer consigo o gérmen da morte. A morte acaba devorando o sujeito. E é mais ou menos como o homem que tem um câncer, mas que não cuida de extirpar o câncer, o câncer o devora, está acabado. Não tem conversa.

– “Não, mas ele está com uma cara saudável!”.

Pode estar como for, em determinado momento o câncer o põe na sepultura. De maneira que, ou ele põe fora o câncer ou o resto é a morte para ele. Assim também para uma organização política, social ou econômica, quando tem um erro grave que seja, um defeito grave que seja, está dado o sinal de morte para aquela organização mais cedo ou mais tarde. Pode durar mais, se for só um fator de morte, se forem vários a morte vem mais depressa, mas a morte vem.

* A luta dos fatores positivos e negativos do Ancien Regime gerou a revolução

E nessa organização do Ancien Régime – é o nome que se à organização política, social e econômica que tinha a França, e que tinham todos os Estados da Europa, com exceção da Rússia, e dos Balcãs, tinham todos esse tipo de organização – e nesse tipo de organização havia muita coisa de bom que foi deixado pela Idade Média, havia alguma coisa de ruim que era produto da Revolução. E essa coisa, esse fator, negativo destruiu os fatores positivos. A luta desses fatores, um contra o outro, foi o que gerou a revolução. Essa luta chegou ao auge, em que os fatores do mal foram tão enérgicos, tão violentos, tão categóricos, que venceram os fatores do bem. E então foi a degringolada.

Como isso é a Revolução Francesa considerada, então, muito sumariamente, pela simples enunciação de suas causas. Naturalmente, eu entrarei, daqui a pouco, em pormenores depois do que ela foi, mas não nos seus efeitos.

Para fazer um esquema completo de qualquer acontecimento histórico, a gente tem que enunciar o acontecimento qual é, depois estudar as causas, estudar o acontecimento em si mesmo, estudar os efeitos. Aí o acontecimento é estudado por inteiro.

* Quais são os efeitos da Revolução Francesa?

Aplicando esse método à análise da Revolução Francesa, nós devemos então, muito rapidamente, nos perguntar, quais são os efeitos da Revolução Francesa.

* Primeiro: a introdução do vírus igualitário e laico

Os efeitos na Revolução na França, foram, em primeiro lugar, uma transformação profunda da França, pela qual o vírus igualitário e laico se introduziu dentro dela, e ela passou a sofrer um processo de degenerescência que não a largou até agora. Apesar de períodos de reação, de períodos de melhoras etc., etc., esse vírus trancou-se nela e a vem matando, e nesse processo ainda está agora.

* Ela produziu efeitos no mundo inteiro

Mas a Revolução não produziu apenas efeitos na França. Ela produziu, como acabo de dizer, efeitos no mundo inteiro. Ela produziu efeitos na Europa, mas através da Europa, ela produziu efeitos em toda a América Latina. E com isso toda a América do Sul foi atingida pela Revolução Francesa.

* A revolução inglesa

Os senhores me dirão: “Mas a Revolução Inglesa? A situação norte-americana?”

A situação norte-americana é muito parecida com os frutos da Revolução Francesa. Mas ela não é só fruto da Revolução Francesa. Seria simplificar afirmar isso, porque, no século XVII, houve na Inglaterra uma Revolução do tipo da Revolução Francesa, que foi a Revolução de Cromwell, que proclamou a República na Inglaterra, decapitou o rei Carlos I e durante a vida de Cromwell a Inglaterra viveu nesse regime republicano.

Essa revolução tinha idéias muito semelhantes às da Revolução Francesa, eram nascidas da implantação do protestantismo na Inglaterra.

Na França o protestantismo foi esmagado. Na Inglaterra, pelo contrário, o protestantismo venceu. E de ai veio uma série de revoluções e de transformações que levaram os Estados Unidos, antiga colônia da Inglaterra, a tomar toda a mentalidade, toda a configuração psicológica, política, social e econômica da Inglaterra.

* Luís XVI envia tropas para ajudar a revolução norte-americana

Na hora dos Estados Unidos se proclamarem independentes da Inglaterra, o rei Luís XVI – cujo programa do governo era um completo elenco de tudo quanto não deveria fazer: esse era o programa de governo dele –, mandou tropas para ajudar a revolução norte-americana contra os ingleses, porque ele tinha recriminações mais ou menos justas – que me parece que em boa parte eram bem justas – da França contra a Inglaterra. Então para atacar a Inglaterra, ele mandou tropas para os Estados Unidos. Essas tropas, quando voltaram vitoriosas dos Estados Unidos, que ajudaram a derrubar o poder Inglaterra, as tropas chegando à França, vieram com as idéias dos Estados Unidos, que eram as idéias da revolução de Cromwell, e a revolução de Cromwell ajudou a derrubar, a facilitar a vitória da Revolução Francesa. Mas com isso todo o continente americano caiu debaixo do domínio da Revolução.

Revolução vinda da França, através de Espanha e Portugal, para a América Latina.

Revolução vinda pela Inglaterra e coadjuvada por tropas francesas, para os Estados Unidos e para o Canadá. Mas toda a América, todo o continente americano caiu no atoleiro da revolução também.

* A implantação da república no mundo inteiro

Então, revolução na Europa, revolução na América, mas revolução que depois se estendeu ao mundo inteiro. O mundo inteiro que depois se foi transformando em monarquias constitucionais, depois em repúblicas e o último fruto é que a tendência a proclamar a República no Mundo Inteiro. E nas poucas monarquias que restassem, o rei e o imperador, ficasse sob uma forma de figura de aparato. É como a rainha Elisabeth, veste-se muito bem, tem um bonito castelo, tem aqueles soldados com chapéu, muito bonito, fazem aquele “Troping the Collors”, enfim, cerimônias de corte muito bonitas, mas não manda nada. Basta dizer aos senhores que a rainha ou o rei não tem o direito de assistir à reunião de conselho de ministros, e os ministros resolvem tudo da cabeça deles.

Numa certa periodicidade, parece que uma vez por mês ou qualquer coisa, o 1º ministro tem uma audiência com o rei ou a rainha, e deve levar ao rei ou à rainha a notícia de tudo o que está acontecendo. O rei ou a rainha tem o direito de dar a sua opinião ao ministro, mas o 1ª ministro não precisa responder o que pensa, ele ouve com muito respeito, e faz o que quer. Quer dizer, o rei ou a rainha são meros conselheiros do ministro que deveria servi-los.

Os senhores estão vendo que são monarquias o tanto quanto possível parecidas com repúblicas. São monarquias republicanizadas. E o que não é monarquia republicanizada, no mundo inteiro é república. De maneira que uma inundação republicana cobriu o mundo.

Bem, este é o bloco que constituiu a Revolução Francesa, com suas causas, com seus fatos e com os seus efeitos.

* O comunismo é o neto maldito da Revolução Francesa

Agora, estes efeitos por sua vez tiveram efeitos que já não são os filhos da Revolução Francesa, mas são os netos malditos da Revolução Francesa. Qual é esse efeito? É o comunismo. Toda a Revolução comunista no mundo constitui a 3ª revolução, e essa revolução, como os senhores sabem pela R-CR, é a revolução face à qual nós estamos vivendo e em cujos estertores e em cuja transformações nós estamos todos empenhados a fundo de presenciar, etc., e estamos participando. Porque, o caso da Lituânia é um aspecto da Revolução comunista, é a implantação do regime comunista em três países que foram outrora independentes, no Mar Báltico, e que a Rússia incorporou ao seu território e impôs o regime comunista. E nós quando queremos que a Lituânia seja independente, é claro que queremos justiça para ela porque ela tem direito à sua independência, mas queremos, sobretudo, expulsar a terceira revolução de dentro da Lituânia. É evidente que o nosso principal interesse é isso.

* Combatemos o comunismo na Lituânia com intuito de abalar a expansão universal do comunismo

Se a Lituânia não fosse um país comunista, nós não estávamos interessando tanto por ela. Que se arranje! cada um carrega o peso do próprio corpo. Mas nós queremos combater o comunismo na Lituânia, com o intuito de prejudicar assim o regime comunista dentro da Rússia, e por isso abalar a expansão universal do comunismo. Quer dizer nós estamos, portanto, lutando na 3ª Revolução.

* A revolução da Sorbonne é a quinta descendência dessa genealogia de serpentes

Bem a Revolução Francesa, teve apenas netos?

Ela tem bisnetos no berço. E esses bisnetos são víboras. A 4ª Revolução, a revolução que nasceu com a Sorbonne, e que é uma revolução cultural que vai-se espalhando pelo mundo inteiro, e sobre a qual não há tempo de falar aqui, constitui a neta da Revolução Francesa. E se é a neta da Revolução Francesa, é a bisneta do protestantismo, é a quinta descendência dessa genealogia das serpentes, que começou com o Protestantismo, o Humanismo e a Renascença, e que depois veio degringolando ladeira abaixo até à atual crise histórica, e as transformações que se preparam dai para o futuro, e que contra as quais competirá aos senhores lutarem, se a história não for bruscamente interrompida pela tesoura, ou pela espada do Castigo Divino. Vem a Bagarre e vem o Reino de Maria!

* “História do horror!”

Então, um verdadeiro historiador tomará esses livros e colocará numa estante pintada de preto, com todos os livros encadernados de preto, com o título “História do Horror: primeira Revolução, segunda, terceira, quarta Revolução”, e está acabado. E terá começado uma outra Era. Do reino do demônio, se passará para o Reino de Maria.

Não sei se esta vista de conjunto se limita a expor de novo coisas que os senhores já sabem perfeitamente, e se está suficientemente bem clara.

* O que é que havia de muito bom no Ancien Régime

Agora o que é que havia de muito bom no Ancien Régime, portanto, no regime em que tinham governado a França, Luís XIII, Luís XIV, Luís XV, Luís XVI, como monarcas mais próximos da Revolução, no regime em que Maria Antonieta era a rainha da França, esposa de Luís XVI? E o que havia nesse regime que era muito bom? E o que é que havia nesse regime que era ruim? E que era muito ruim?

* Era um regime anti-igualitário

Bom, o regime tinha de muito bom o seguinte: era um regime anti-igualitário. Quer dizer, toda a sociedade era marcada pela desigualdade; uma desigualdade proporcional, não era uma desigualdade inumana. Era uma desigualdade que tinha como fundo a idéia da igualdade de todos e que a partir desse fundo construir a idéia da desigualdade.

Qual era a igualdade de todos? Era uma igualdade natural e uma igualdade sobrenatural.

* Direitos decorrentes da igualdade natural?

Qual é a igualdade natural? A igualdade natural é que todos somos homens, e que temos determinados direitos que vêm para cada um do fato de ser homem. E que nesses direitos, como todos somos homens, a esses direitos todos os homens fazem jus. De maneira que debaixo desse ponto de vista, nesse sentido são iguais.

Por exemplo: direito à vida, o direito a constituir uma família, bem organizada, bem estruturada; o direito de ser o proprietário dos bens que lhe vem do seu trabalho; o direito de dar uma orientação própria à sua vida escolhendo entre as várias profissões honestas àquela para a qual tem mais pendor, e de trabalhar honestamente como entende, e não por regulamento estatal, como ele entende trabalhar ali. Se ele terá riscos, se ele fizer bobagens…, ele terá acertos, vantagens e lucros se ele andar bem na profissão, se ele souber trabalhar bem. Isto depende da liberdade dele. Ele é livre de dar à sua vida profissional a orientação que ele quiser. E assim por diante há uma porção de outros direitos, que são próprios a todos os homens. E nesses direitos, debaixo de este ponto de vista, os homens são iguais.

* Os direitos decorrentes do batismo

Bem, há também direitos que decorrem para o homem não do fato de ele ser homem, mas de ser batizado. Quer dizer, como ele é batizado, ele é membro da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, nele habita a graça de Deus, e desde que ele esteja no estado de graça, ele é um Templo do Espírito Santo.

O primeiro direito que o homem tem, nessas condições, é o direito de ser bem informado acerca da Igreja Católica Apostólica Romana. Depois vem o direito de cumprir todos os atos do culto católico, e o direito de praticar os mandamentos de Deus e os mandamentos da Igreja Católica. Esses são direitos do homem do fato de ele ser católico.

Bem, dentro disso, lhe cabe os direitos próprios para ele poder servir e defender a Igreja, adequadamente, que lhe vem da sua condição católica. Se ele ama a Deus sobre todas as coisas, e ele tem o direito de amar a Deus sobre todas as coisas, ele tem o direito de defender a Igreja de Deus, ele tem o direito de lutar por Ela, ele tem o direito de difundir a Igreja por toda a parte. E se alguém quiser tolher esse direito comete um crime contra o direito Sagrado que toca a ele, enquanto batizado.

* Exemplo: uma cruzada para expulsar os russos da Lituânia

Um exemplo: há uma situação como a da Lituânia em que os soviéticos querem manter o seu poder lá, etc., etc. Seria uma coisa inteiramente justa que a Polônia e a Finlândia, sobretudo a Polônia que é uma nação muito católica – a Finlândia também, Polônia é muito maior – e a Finlândia se coligassem para fazer uma cruzada contra os russos e estabelecendo-se, indo para a Lituânia, Letônia e Estônia e ali expulsando os russos de lá de dentro. É um direito, ninguém pode-se opor, porque esses países praticam um ato de amor de Deus se eles fazem isto. Ninguém pode impedir de praticar o amor de Deus.

* “Ide e ensinai a todos os povos pregando o Evangelho em Nome do Padre, do Filho, e do Espírito Santo”

Mas, há mais. Imaginem os senhores que haja um país, um daqueles Azerbeijãos que há lá pela Rússia a dentro – se alguém aqui for azerbeijano não me tome a mal a expressão muito sumária de me referir ao Azerbeijão – mas se os senhores imaginem se um desses azerbeijãos, por exemplo, seja e são, alguns são muçulmanos, e declaram: “aqui não pode pisar padre católico!” Pode-se fazer uma cruzada a partir de um país católico, – país católico nos Balcãs, não há,… bom, talvez uma parte da Armênia é católica e é por aqueles lados –, pode fazer uma cruzada para entrar no país do Azerbeijão, muçulmano e dizer:

“Vocês não podem proibir um missionário católico de entrar aqui!”.

– “Mas como não podemos? Nós somos independentes”.

– “São, mas contra Cristo não. Ora, Nosso Senhor disse aos Apóstolos: `Ide e ensinai a todos os povos pregando o Evangelho em Nome do Padre, do Filho, e do Espírito Santo.’

“E, portanto, é uma obrigação minha, porque meu Senhor e seu – ainda que você não reconheça, é! – me deu o direito e o dever, me mandou ir a todos os lugares onde não há católicos, onde há poucos católicos, mandou-me ir lá para pregar o Evangelho, você está proibindo, eu então digo:

“Entro à força, está acabado!”.

É direito dos católicos. Os senhores estão vendo que essa enumeração de direitos, e tudo quanto eu estou dizendo a respeito dos direitos como eles eram concebidos no Ancien Régime, tudo isto tem como pressuposto que o Estado é católico.

Por que católico? Porque essas leis que permitem, que estabelecem tudo isto que eu acabo de dizer, são leis que decorrem do fato de que o Estado oficialmente declara como única religião verdadeira, a Religião Católica Apostólica Romana. O Estado diz:

“A religião Católica que eu tenho é a verdadeira! A religião muçulmana que vocês têm é falsa! E por causa disto eu tenho o direito de dar livre trânsito aos missionários católicos no seu país. E se você vier me dizer que você então também tem o direito de mandar os maometanos, eu digo que não tem porque você está no erro.”

Os maometanos poderiam dizer:

“Bom, mas quem prova que eu estou no erro? Quem prova que você está certo?”

– “Estude, venha cá e mando gente para estudar, e mando gente para ensinar lá, e vou provar. E a Igreja Católica prova tão perfeitamente que Ela é a verdadeira, Ela prova tão claramente que as outras religiões são erradas, que não é lícito a você, depois de ter bem estudado, etc., negar isto. Se negar, você peca. O direito é da verdade e não do erro. O erro não tem direito, a verdade é que tem direito. E a verdade é, seguramente, por provas indiscutíveis, a verdade é a da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Portanto, não tem conversa”.

* Qual era a situação dos católicos até quase a Revolução Francesa?

Qual era a situação dos católicos quase até à Revolução Francesa, pouco antes do reinado de Luís XVI ainda, portanto, dos não católicos na França, qual era a posição?

Em séculos anteriores, no começo do protestantismo, século XVI, um tanto no século XVII, os protestantes vindos da Alemanha, se estabeleceram na França, e os reis franceses daquele tempo relaxaram e não proibiram a entrada dos protestantes na França. Andaram mal, mas de fato não proibiram. E se estabeleceu o protestantismo vigoroso em várias partes da França. Isto chegou a ponto de que um candidato ao trono da França, o rei da Navarra, que era ao mesmo tempo rei de um pequeno reino no sul da França chamado Navarra, e era príncipe da Casa Real Francesa, herdou o trono.

Então, ele era protestante e quis subir ao trono tomando conta do reino da França e transformando a França num reino protestante. Daí decorreu que se constituiu a organização chamada “A Liga Católica”. Essa Liga Católica era constituída de católicos de toda a França unidos numa cruzada para expulsar os protestantes.

E esse candidato ao trono, o rei da Navarra, lutou, houve guerra religiosa na França, prolongada. O rei da Navarra acabou derrotado. Ele compreendeu que ele não podia tomar conta da França, sem fingir que se convertia a católico. E o baluarte da defesa da França contra a Revolução Protestante, foi à cidade de Paris e foi sobretudo a plebe da cidade de Paris, o povinho da cidade de Paris que foi o baluarte da defesa da religião Católica na França. Houve episódios famosos como é a noite de São Bartolomeu.

Bem, e afinal o rei quis subir ao trono com título de Henrique IV, o rei assistiu a uma missa. Conta-se que ele disse: “Paris vale bem uma missa”. E a municipalidade de Paris declarou que só abriria as portas para o rei, caso assistisse à missa dando prova que era católico. Ele assistiu à missa, abriu-se as portas da cidade, e ele tomou conta da cidade.

Mas é certo que ele depois favoreceu os protestantes de todos os modos, e tinha intenção de propagar o protestantismo, dando um golpe na Áustria que era uma potência germânica e era católica, para que assim a Prússia protestante tomasse conta da Alemanha. E então: França, Alemanha e Inglaterra, eram os três estados mais poderosos da Europa, ficavam protestantes.

Um homem que é julgado pelos revolucionários com extrema severidade: Ravaillac, encurtou esse desígnio e matou Henrique IV. Ele foi barbaramente morto, mas subiu o filho de Henrique IV ao trono, que era Luís XIII.

Luís XIII achava os protestantes muito poderosos e julgou que era preciso debilitá-los antes de dar o golpe e acabar com eles.

* “Meu avô (Henrique IV), vos amava e vos temia. Meu pai (Luís XIII), vos temia, porém, não vos amava. Eu não vos temo nem vos amo. Fora!”

Luís XIV foi um monarca de muito mais pulso do que Luís XIII, e quando era dia primeiro do ano, os principais grupos do país, os principais corpos do país, iam visitar o rei, dar boas festas etc. E os protestantes iam também. E então, um certo dia primeiro do ano do reinado de Luís XIV, apresentaram-se vários corpos da França, e apresentaram-se também protestantes, metidos numas batinonas pretas… Aquela coisa protestante lúgubre e horrorosa, e pediram a ele para pronunciarem um discurso. Luís XIV parece que os deixou falar o discurso, quando acabou, ele disse o seguinte:

“Meu avô (Henrique IV), vos amava e vos temia. Meu pai (Luís XIII), vos temia, porém, não vos amava. Eu não vos temo nem vos amo. Fora!”

Dias depois, ele publicava o famosos “Edito de Nantes”. Edito é um decreto. Nantes uma cidade da França. O famoso Edito de Nantes, mediante do qual eram expulsos do território francês, todos os protestantes que não queriam se converter à religião católica. Tinham um prazo, tinham que sair. E na França, o culto protestante ficou quase completamente proibido. Isso foi celebrado pela Santa Sé e pelos outros reinos católicos da Europa com verdadeiro entusiasmo.

E como eu disse, esse Edito de Nantes ficou em vigor quase até a Revolução Francesa. Era um dos elementos constitutivos da ordem de coisas vigente na França e era o que dava, propriamente, a alma e o espírito das instituições da França.

Os senhores me dirão: “Então as pessoas eram obrigadas a renunciar a sua religião? Era o regime do crê ou morre?”.

– Não, crê ou sai.

Agora, se quiser ficar depois do prazo… A coisa era outra, havia outras penalidades. Mas aí não era “crê ou morre”, mas “sai ou apanha!”

Natural! Não quer preencher as condições a que tem direito a Igreja Católica como única Igreja Verdadeira, então saía. Se quiser ficar aqui, espada em cima. Quer dizer, um arranjo excelente.

Agora, daí decorria que a França podia chamar-se um Estado Sacral. Todos os estabelecimentos de ensino da França eram estabelecimentos oficialmente católicos, a própria universidade de Paris era oficialmente católica, ensinava-se ali a doutrina Católica. E quando se ensinava coisas contra a doutrina Católica, era para serem refutadas, não era como quem expõem querendo aceite, mas era para ser refutada. E o Clero, tinha uma situação oficial na França.

* Qual era a situação oficial do Clero?

Qual era a situação oficial do Clero?

Hoje, um padre é um cidadão como outro qualquer, ele tem tanto direito como qualquer um de nós. Naquele tempo não, o Clero tinha uma situação onde fazia parte do Ancien Régime… o Clero tinha antes de tudo um direito muito bonito e muito louvável, que era o direito de depender da Santa Sé. Como é parte integrante da Religião Católica, e é o ápice da Religião Católica: o Papado; o clero francês fica dependente do Papado e o Papa tem o direito de governar o episcopado francês, e o rei não pode se entrepor nas relações com o Papa. Pelo contrário, o rei é obrigado a respeitar a livre comunicação do Papa com os Bispos, e dos Bispos com o Papa.

E, aliás, isso várias vezes foi violado por maus reis, mas a doutrina era essa. E como todo o poder, segundo a Igreja Católica, todo o poder vem de Deus, o novo rei para subir ao trono tinha que ser coroado solenemente e ungido para ser rei da França. Donde é que vinha essa unção? É belíssima a recordação da coroação do rei Clóvis da França, o primeiro rei católico. Os que se lembram disso levantem o braço para ver se é necessário dar a história. É, nós podemos saltar isto.

* “Le roi te touche, Dieu te guerisse”

Bem, o fato é que a Catedral, o lugar onde Clóvis se fez batizar era Reims e, por causa disto, na lindíssima, aliás, Catedral de Reims é que os reis se faziam coroar. Eles faziam uma cerimônia religiosa durante uma missa rezada em Reims. Estava presente todo o episcopado, muitos dignatários eclesiásticos etc., etc., o representante do Papa, etc., etc. E todos os representantes da nobreza e do povo estavam todos representados lá dentro da Catedral de Reims e outros fora, porque não cabiam todos dentro. E, em determinado momento, com o óleo com que São Remy tinha ungido Clóvis por ocasião do batismo, o arcebispo que coroava o rei ungia o rei como tenente de Deus na Terra, para governar o doce reino da França em nome de Deus.

E depois, ele coroava, punha a coroa na cabeça do rei e o rei se dirigia para um trono num lugar alto, eminente, e quando a coroação estava terminada – unção, não me lembro bem uma as das duas coisas –, soltavam, dentro da Catedral, um grande número de pombos e os pombos significavam a alegria de lembrar a pomba que tinha trazido no bico a Santa Ampola com o óleo com que Clóvis era ungido. E era realmente essa ampola que continha esse óleo ainda no tempo de Luís XVI. E o óleo que tinha nessa ampola é que vinha servindo para a coroação dos reis até o final, até a coroação de Carlos X, já no século XIX.

E os sinos tocavam com todo o vôo, e abriam-se as portas, a multidão entrava e era uma alegria geral, etc., etc. E o rei depois saia em procissão da Catedral e na praça pública estavam alinhados os doentes de uma doença especial chamada escrofulose, que o rei curava. Era um carisma que o rei recebia em virtude da unção e da coroação. Então chegavam, às vezes, a mil e mil e muitos doentes alinhados ali, e uma doença repugnante. O rei tocava no doente e fazia uma cruzinha e dizia: “Le roi te touche, Dieu te guerisse.” – “O rei te toca, Deus te cure.” E eram numerosos os escrofulosos que se curavam. De maneira que isso aumentava a alegria geral, e era uma festa enorme que repercutia pela Europa inteira: a coroação de um rei da França.

Esta era a posição oficial da Igreja. Os padres deveriam obedecer à lei da Igreja. Uma pessoa sagrada só pode ser julgada por padres e não por leigos; e havia, portanto, tribunais da Igreja para julgar os padres, e havia prisões da Igreja para manter os padres presos, ou as freiras presas durante o tempo em que o tribunal tinha condenado. Mas isto para assegurar a preeminência do clero sobre toda a outra sociedade. O que era de acordo com doutrina católica porque o clero é a classe alta da sociedade eclesiástica. Nós os leigos somos a plebe da Igreja. O clero a aristocracia da Igreja.

E o clero como aristocracia da Igreja, tem o direito de ser reconhecido como tal também pelo Estado; e, por exemplo, um padre que quisesse casar não podia, porque o casamento era nulo, a lei civil não dava valor ao casamento do padre. Se o padre quisesse exercer uma profissão civil, o bispo pedia ao governo que mandasse prender o padre, entregava para ele para pôr o padre na cadeia. Mandava pôr a freira na cadeia. Se uma freira fugisse do convento e não cumprisse os votos, cadeia. E isto era assim em todos os Estados católicos da Europa. Era Espanha, era Portugal, era Itália e, enfim, todas as partes católicas da Alemanha, etc. E Irlanda, todos, isso era assim.

* Como eram feitas as leis desse estado?

Agora, como eram feitas as leis desse estado?

As leis, em princípio, eram feitas de dois modos. Se os senhores quiserem, de três modos:

O primeiro modo era o rei, o rei era o monarca absoluto, quer dizer, não precisava da licença de ninguém para fazer leis. Mas ele podia fazer qualquer lei? Não. Havia umas leis que eram chamadas: “Les lois fondamentales du royaume” – “As leis fundamentais do reino da França”. Que eram leis que derivavam do começo da Idade Média e eram em geral, leis inspiradas na doutrina católica. Essas leis, nenhum rei podia contrariar. E se ele quisesse revogar essas leis, era nulo, ninguém tinha obrigação de obedecer, e havia tribunais aos quais se podia reclamar contra a ação do rei. De maneira que havia uma proteção dos particulares nessas leis que os defendiam, uma proteção contra o poder real. Esses tribunais eram livres em relação ao rei, o rei não podia dissolver esses tribunais. Não podia exercer atos de violência em relação a eles.

* O que vem a ser os Estados Gerais?

Agora, outro modo de fazerem as leis era a reunião dos Estados Gerais. O que vem a ser um Estado? Um estado era uma classe social. Então, o primeiro estado era o clero. Eu já expliquei por quê. O segundo Estado, do qual eu falarei daqui a pouco, era nobreza. E o terceiro estado era a plebe. Clero, nobreza e plebe, constituíam cada um, um estado, e, pela tradição francesa, quando se convocavam os Estados Gerais, quer dizer, quando o rei convocava todos os estados, cada estado fazia como que um parlamentozinho próprio.

O Clero tinha um, a nobreza outro, a plebe tinha outro. Mas se entendiam entre si para fazerem ou não fazerem leis comuns conforme quisessem. E o rei podia vetar essas leis, ele podia também acolher essas propostas de leis. Ele podia fazer uma proposta e os Estados Gerais aprovarem ou não aprovarem. Só o que tem é que se o rei veta-se uma lei dos Estados Gerais, era veto. Se os Estados Gerais vetassem uma lei do rei, ficava valendo o rei. E é claro! É rei ou o que é que é?

Nessa ocasião, cada estado tinha o direito de apresentar ao rei, queixas de como o rei estava governando o reino. Isto era chamada: “Doléances” ou “Remontrances”. Que eram as “Doléances?” Era o que vai mal. “Remontrances”, era censura: “Foi Vossa Majestade que fez isso e foi causa daquilo, etc.”, e o rei não podia fazer nada. Ele podia mandar fechar as queixas e arquivar, mas ele não podia reclamar contra quem queixou.

Havia, como os senhores estão vendo, um equilíbrio entre estes três poderes. Os poderes do rei; os poderes do Estado; da nobreza; e os poderes do povo. Era uma coisa equilibrada, mas com uma particularidade: é o que diz respeito à plebe.

No que diz respeito à plebe, a plebe tinha leis próprias também, mas eram feitas pelas associações de plebeus. Por exemplo, tudo o que nós chamamos hoje legislação do trabalho, eram os próprios plebeus que faziam. Como a Igreja fazia as suas leis, e a nobreza para certos efeitos tinha também leis que eram dela e feitas por ela. De maneira tal que cada grupo social tinha uma certa autonomia, era uma como se fosse uma naçãozinha independente.

* Como eram os impostos?

E como eram os impostos?

Os impostos, era a idéia era o seguinte – a idéia vai causar estranheza aos senhores. E é assim que os historiadores apresentam, e eles não mentem no sentido de que a coisa foi como eles dizem, mas eles não dão a verdade inteira. E muitas vezes, não dar a verdade inteira é mentir. Coisa evidente!

Como é a questão dos impostos?

É apresentada a coisa assim: o clero não tinha impostos a pagar porque era uma classe privilegiada. A nobreza não tinha impostos a pagar porque era uma classe privilegiada. O povo não é uma classe privilegiada e, portanto, todos os impostos são pagos pelo povo. Parece uma injustiça aberrante. Então um pobre paga um imposto e o marquês fica se enfeitando e comendo dinheiro, e o padre fica nas suas horas vagas pelo menos se abanando e não fazendo nada. E eles não pagam imposto, paga o pobre? Isso brada aos Céus e clama a Deus por vingança.

* O clero: educação e saúde

É para quem não conhece a história. Para quem conhece é diferente. O clero tinha que pagar por sua própria conta todas as despesas que são feitas hoje em dia, nos estados modernos, pelos ministérios da saúde pública e da educação. Quer dizer, todos os hospitais e casas de caridade do reino tinham que ser mantidas pelo clero.

E é preciso dizer – entre parênteses –, que a França era um dos países onde melhor era a rede hospitalar. Não sei se os senhores sabem que os hospitais são uma criação da Igreja Católica. O primeiro hospital que houve no mundo foi de uma católica chamada Fabiola, do tempo dos romanos. Antes disso ninguém se incomodava com os doentes. Nosso Senhor Jesus Cristo é que pregou a compaixão para com os doentes, etc., etc. Nasceram os hospitais, nasceram, por assim dizer, no coração da Igreja e a Igreja tinha tudo isso. Ela tinha rendas porque Ela tinha prédios, tinha terras, etc., com o que Ela tinha que manter isto, e Ela recebia esmolas, mas se não dessem, Ela tinha que entrar com o que é dEla. Quer dizer um peso pesadíssimo.

* A nobreza: a guerra

A nobreza?

Algum dos senhores pensaria: “E agora chegou o ponto. O clero vá lá, eu compreendo etc., etc. Mas como é a nobreza? Eles apareciam todos bem vestidos, de peruca branca, de sapatos de verniz com salto vermelho, fivela de prata e dançando minueto, e nhem-nhem! e não paga imposto? Que conversa é esta?”

A nobreza tinha esta situação: quando havia guerra, quem ia para a guerra eram os nobres. E eles é que pagavam do próprio bolso o batalhão que eles eram obrigados a manter para o rei. De maneira que para esse batalhão, o rei não tinha direito de mobilizar todos, não. Pagava, quem queria ir para a guerra ia, quem não queria ir não ia. O plebeu não tinha serviço militar obrigatório. O nobre é que tinha. E as guerras, relativamente, e, de baixo de certo ponto de vista e relativamente, eram mais mortíferas naquele tempo. Porque não havia recursos hospitalares, não havia desinfecção, e o número de soldados feridos que morriam de infecção, eram uma coisa colossal.

Depois, um soldado ficava, por exemplo, aleijado, ele levava uma vida miserável pela razão seguinte: naquele tempo estavam começando a usar muletas e ficava em casa. Os senhores podem imaginar o que é uma coisa dessas! Cadeira de rodas ninguém usava! É uma vida de prisioneiro para a vida inteira e isso por ter protegido o país.

Quer dizer, se eu tenho certeza, que há muita gente hoje que se ficasse garantida contra a obrigação de ir para a guerra, preferia ficar plebeu do que ser nobre. E todas as despesas pagas hoje pelo ministério da guerra, da marinha, etc., naquele tempo eram por conta da nobreza. Então, eles não pagavam impostos porque pagavam serviços públicos caríssimos, e era uma coisa equivalente. Essa parte, a maior parte dos historiadores para curso secundário não ensina.

Os senhores querem ver a prova de como não ensina? Aquele que tenha aprendido isso em curso secundário levante a mão que eu quero ver. Ninguém! Para os senhores verem, aqui tem gente de tantos países, e em nenhum desses países lecionam isso. Esta era a verdade.

* A concepção católica da vida era profundamente impregnada no espírito do homem medieval

Agora, então por que a Revolução Francesa? Por que ela nasceu e como é que ela se estendeu?

Acontece o seguinte, que a concepção católica da vida era profundamente impregnada no espírito do homem medieval. E segundo esse espírito, a vida não foi feita para o prazer, a vida foi feita para o heroísmo, a vida foi feita para conhecer, amar e servir a Deus e, portanto, cumprir os mandamentos, e, portanto, levar a existência dura e difícil que o católico deve levar. Todas as condições de vida levam ao sofrimento.

O celibato tem suas privações e tem suas lutas, para manter a castidade. O casamento tem lutas tremendas. O esposo agüentar a esposa e a esposa agüentar o esposo, não é brincadeira. Os senhores vêm isso pelo número de divórcios que há por aí. É porque custaram para se adaptar, não se adaptaram. Se não houvesse divórcios, estavam-se agüentando por ai, e é obrigação de se agüentar, é duro! A vida do católico é dura. Um outro que é ladrão fica rico depressa. O católico quando enriquece, enriquece devagar, e passo a passo porque não pode roubar. Dai para a frente. A vida do católico é dura!

Mas o católico tem um senso moral alto, e ele tem a alegria de viver conforme a vontade de Deus, conforme os mandamentos, com a consciência em ordem que ele prefere a qualquer prazer. Daí vem para ele a felicidade dele, na Terra. Mas o principal elemento da felicidade dele na Terra é a convicção de que ele de fato vai para o Céu quando ele morrer, se ele cumprir todos os mandamentos. E ali ele vai ter uma felicidade eterna e inesgotável.

Quer dizer, mais uma vez está tudo baseado na Fé. Se o católico tiver Fé, ele é o mais feliz dos homens. Mas São Paulo disse muito bem: “se nossa Fé fosse vã, nós seriamos os mais infelizes dos homens”. É verdade! porque levar essa vida dura para depois ir para o Céu onde está toda a canalhada junta, que levou a mesma vida que nós: então vou levar a vida do canalha! Agora, cair para o inferno! os senhores já pensaram se isso é negócio?

Quer dizer, assim o católico concebia sua vida, como uma batalha, como uma luta. E a vida era séria, e a vida é cheia de deveres, e o católico amava o dever, e a dignidade do católico constituía exatamente em amar o dever.

* Com o Renascimento o europeu passou a ter horror do dever

Bem, com o Renascimento, com o Humanismo e com o Protestantismo, o europeu passou a ter horror ao cumprimento do dever, e achar que a vida era só para o gozo. E por causa disso antipatizar com a Igreja Católica que impõem uma série de deveres, e por causa disso uma corrente anticatólica vigorosa.

Por exemplo, na França, corrente atéia de uma corrente de escritores e pensadores chamados os enciclopedistas, com grande talento literário, muito protegidos…, estava muito difundida pela França, e a polícia não perseguia, e os reis não reprimiam. E com isso tudo junto acontecia que a onda anticatólica cresceu muito, e essa [onda] anticatólica levada pelo gozo, e pelo desejo de não cumprir os deveres, essa onda anticatólica era também contrária à monarquia.

* “O pai é rei dos filhos, e o rei é pai dos pais”

Por que contrária à monarquia?

O rei – e com isso eu chego à Bastilha –, dizia um velho provérbio jurídico do reino da França; “O pai é rei dos filhos, e rei é pai dos pais”. Quer dizer, tocava ao rei proteger os pais e tocava aos pais educar os filhos para respeitarem o rei. É sempre o sentido de cooperação.

Bom, e por causa disso, quando um filho andava em más companhias, quando o filho começava a pôr fora o dinheiro do pai, quando o filho fazia ações que dava ao pai medo que ele, de repente, fica-se criminoso. Quando a mulher andava namoriscando e o marido tinha medo que ela prevarica-se, quando o marido começava a gastar os bens da família. Enfim, qualquer coisa que perturbasse a vida da família, as pessoas que tinham queixa a fazer, podiam reclamar ao rei. E se estabelecia um processo secreto para não ser divulgado, para não ficar mal para ninguém, que subia até ao rei, de tal família que se queixava que tal filho tinha feito isso e que tal outro fazia aquilo, etc., etc. E pedia ao rei um tempo de prisão para aquele que anda mal.

Mas a prisão não era o Carandiru de hoje, era uma coisa inteiramente diferente, era uma reclusão até que aquele ou aquela sossegasse e tomasse juízo, sabendo que se continua-se, depois voltava para a prisão de novo.

Então, a parte contra a qual havia queixa, tinha o direito de se defender, o rei ouvia também. Mas se o rei entendia que o filho estava andando mal mesmo, e que o pai tinha razão, atendia o pedido do pai e mandava prender na Bastilha, um ano, dois anos, cinco anos, conforme fosse a coisa. E às vezes era mais, porque eram sujeitos tarados e perdidos que só ficando presos não faziam toda a espécie de loucuras.

Bem, o rei mandava prender essas pessoas na Bastilha, com uma carta escrita por ele ao diretor da Bastilha. Mas com fórmula já impressa, só preenchia os nomes: “O senhor tal, diretor da minha prisão da Bastilha, eu lhe ordeno que mande prender pelo prazo de tanto tempo na minha prisão da Bastilha, o senhor Fulano de Tal”. Para não difamar o homem, acrescentava: “Porque tal é meu belo prazer”. Quer dizer é para poupar, é para não dizer qual é o crime, para não ficar difundido.

A prisão da Bastilha era uma prisão muito singular porque conforme as posses do prisioneiro, ele podia levar os móveis dele, podia ter numa sala dele com cortinas, com tapete, com tudo. Podia mandar vir comida dos melhores restaurantes de Paris, se ele tivesse dinheiro. Ele, a única coisa que tinha era que ele estava proibido de sair, está proibido de fazer besteira.

Quer dizer, a Bastilha tinha o sentido de uma reclusão para o sujeito não fazer loucura, era uma espécie de corrimão numa escada, não era uma jaula para prender uma fera. E por causa disso, nas horas de lazer, eles podiam se encontrar no pátio da Bastilha, passear lá dentro, podiam subir às torres e às muralhas da Bastilha que era uma velha fortaleza medieval, e de lá ver gente que eles conheciam. Saudavam de longe, etc. Só que, grade é grade! E quando dava a hora do sino, voltava para a cela.

Na cela eles tinham biblioteca, podiam escrever cartas, podiam receber visitas nos dias de visita. Aí não é infamante ter estado na Bastilha, como por exemplo infamante ir parar a um Carandiru. Era como um menino que passa um tempo no internato. Quer dizer ficar lá não é gostoso, mas é tão pouco ruim quanto possível. É uma prisão de pai, porque o rei é pai dos pais, e protege os pais contra os filhos.

Bem, a fortaleza era enorme, no tempo da Idade Média ainda tinha servido para manter a defesa de Paris, era um dos elementos da defesa de Paris. Quando entrou o perigo das armas de fogo, as velhas fortalezas medievais perderam muito a sua utilidade militar e então passou a deixar de ser fortaleza e passou a guardar o tesouro real: a coroa, as jóias da coroa, o ouro que o rei tinha, etc., etc., estavam guardadas na Bastilha. Com o tempo isto deixou de ser assim e passou a haver ali essa prisão de Estado.

* Os enciclopedistas murmuravam contra a realeza; Bastilha um antro de tirania

Mas o povinho conhecia pouco isso, e espalharam máfias tremendas contra a Bastilha, dizendo que havia gente lá presa a tanto tempo que ninguém mais sabia, estavam apodrecendo lá em prisões terríveis, que havia castigos horrorosos, que havia um homem usando uma máscara de ferro o tempo inteiro, porque o rei não queria que soubessem quem ele era, mas que, de fato, era um irmão gêmeo do rei que era muito parecido com o rei que não queriam que aparecesse porque não sabia, não sabendo o gêmeo quem é que era o verdadeiro rei.

Então, para evitar uma guerra civil esse homem era obrigado a ficar de máscara e quando entrasse alguém no quarto para falar com ele, tinha que bater antes para dar tempo a ele para afivelar a máscara no rosto. E ele só podia falar através dessa máscara.

Mas com uma série de coisas dessas, cada uma mais maluca do que a outra. E como a corrente dos enciclopedistas, esses ateus que eu falei aos senhores, era republicana, murmurava muito contra a realeza, contra a nobreza, eles começaram a espalhar o boato de que a Bastilha era um antro da tirania, e que para quebrar o poder absoluto do rei, era preciso invadir a Bastilha e libertar todos os presos da Bastilha.

* No dia 13 de julho, começa uma efervescência

Então, já desde o dia 13 de julho, começa uma efervescência de desordeiros – pagos naturalmente – para pedir para a Bastilha se entregar porque do contrário eles atacariam, etc. E a Bastilha tinha canhões, que poderiam dispersar esses desordeiros facilmente, eles sabiam, mas eles sabiam tão bem que o rei Luís XVI era benigno, quase até à burrice. Que eles não temiam os canhões, e, depois de entendimentos com o governador da Bastilha, um tal Monsieur de Launay, eles conseguiram afinal que baixasse a ponte levadiça e que entrassem representantes do povo para falar com Monsieur de Launay. Quando baixou, entrou o povo inteiro. Então espandongaram, quebraram etc., etc. E tiraram os presos, colocaram os presos em espécie de pranchas de madeira grandes, para fazer passear por Paris os presos, para verem as pobres vítimas da Bastilha, pobres vítimas do terror real. Como era uma coisa horrorosa etc., etc.

Um era um velho com uma barba branca enorme, então esse pobre velho contava que tinha entrado mocinho, que ele mesmo não sabia porque era, e que estava abandonado lá, etc., etc.

Hoje está provado que esse velho nunca tinha estado na Bastilha, que era alugado para isso. Era um velho barbado que tinham encontrado lá e que estava alugado para isso, comodamente deitado sobre um colchão, carregado pelos outros e que ganhava dinheiro para isso. É uma profissão agradável! Estar deitado num colchão e passear pela rua e depois chega à noitinha, deixam em casa e está com o bolso cheio para mandar vir um bom jantar! vive-se bem assim.

Bom, e eles pegaram, mataram vários da guarnição da Bastilha e levaram preso monsieur de Launay, para ir dar explicações às autoridades populares sobre como era a Bastilha. Mas no caminho, eles mataram monsieur de Launay, de maus tratos, etc., etc. Sem razão nenhuma porque ele cedeu o tempo inteiro. Com isso a Bastilha ficou vazia.

E pouco depois, eles empreenderam a demolição da Bastilha, e das pedras da Bastilha faziam assim Bastilhinhas pequenas que reproduziam a velha fortaleza, e que eram vendidas por esses artesãos etc., a preço muito bom. E todos os revolucionários queriam ter uma Bastilha na sua própria sala para enfeitar.

Bem, estes acontecimentos em Paris simbolizaram a queda do poder absoluto. Quebrada a Bastilha estava quebrada a monarquia. E o resto foi apenas uma história de derrotas, uma depois da outra até chegar à proclamação da República, a decapitação do rei e da rainha. Era a Revolução Francesa que estava consumada.

Há dois fatos que mostram bem o rei que era apresentado como uma fera, que espécie de rei era esse? Ele tinha um diário em que ele registrava os fatos passados no dia. No dia 14 de julho, o registro era: “Nada”. No dia 15 de manhã, essas notícias todas chegaram a Versailles – só no dia 15! –, e um dos camareiros do rei, o duque de La Rochefoucauld, quando chegou a hora do rei levantar de manhã, foi comunicar a ele o que se tinha passado. E ele comunicou e o rei disse: “Mas é uma revolta?”

O La Rochefoucauld, que era quinta coluna e era do lado revolucionário, disse a ele: “Não majestade, não é uma revolta, é uma revolução.” De fato, não era uma revolução, era a Revolução Francesa.

Aí está lembrado a Bastilha, está lembrado tudo mais. E os senhores podem ir dormir tranqüilamente.

Nota: Para aprofundar o tema, vide a seção ESPECIAL: Revolução Francesa.

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