Plinio Corrêa de Oliveira

 

Sou Católico: posso ser contra a reforma agrária?

 

Ed. Vera Cruz - Fevereiro de 1981

Secção F – Caso típico de invasão da esfera temporal

TEXTO DO IPT

2 . Responsabilidade pela situação

32 . Certamente todos nós temos alguma responsabilidade em relação a esta situação de sofrimento e miséria. Para que se possa somar forças e transformar a realidade, devem ser identificadas as verdadeiras causas da situação.

33 . A responsabilidade não cabe a Deus, como se dá a entender quando se diz que “as coisas estão assim porque Deus quer”. Não é vontade de Deus que o povo sofra e viva na miséria.

34 . A responsabilidade do próprio povo trabalhador poderá estar na falta de maior união e organização. Por outro lado, o povo tem sido impedido de participar e decidir dos destinos do país.

35 . A responsabilidade maior cabe aos que montam e mantêm, no Brasil, um sistema de vida e trabalho que enriquece uns poucos às custas da pobreza ou da miséria da maioria. A injustiça que cai sobre os posseiros, os índios, e muitos trabalhadores rurais não é apenas ação de um grileiro e seus capangas, de um delegado e seus policiais, de um juiz e seus oficiais de justiça, de um cartório e seu escrivão, é, antes, a concretização localizada da “injustiça institucionalizada” de que fala o documento de Puebla.

36 . Isto acontece quando a propriedade é um bem absoluto, usado como instrumento de exploração. Essa situação tornou-se exacerbada com o caminho do desenvolvimento econômico que vem sendo percorrido em nosso país, escolhido sem participação popular. O modelo de desenvolvimento econômico adotado favorece o lucro ilimitado dos grandes grupos econômicos. Técnicas mais modernas foram incorporadas em muitos setores de produção à custa de forte dependência externa, no que se refere à tecnologia, ao capital e à energia. O rápido crescimento da dívida externa, que segundo se anuncia, chega a 50 bilhões de dólares, representa um débito correspondente a cerca de oito salários mínimos para cada brasileiro em média, inclusive aqueles que estão fora da força de trabalho, como é o caso de crianças, velhos e inválidos, e incluindo aqueles que, embora trabalhando, jamais receberam sequer o salário mínimo por seu trabalho.

37 . Essa dívida, cuja existência e crescimento tem sua raiz na nossa dependência em relação às multinacionais, agrava poderosamente as condições de vida e de trabalho da população rural, pois sobre a agricultura recaiu grande parte desse pesado tributo. Intensificaram-se exportações sem a contrapartida de um volume crescente, na mesma proporção, de mercadorias importadas ou disponíveis para consumo ou investimento. Excedentes agrícolas tem sido extraídos à custa da redução das condições de vida dos lavradores. Com incentivo oficial, áreas de lavoura transformaram-se em pastagens. Programas de colonização, como o da Transamazônica, praticamente desativados, passaram a segundo plano em favor da pecuária extensiva. Bens tradicionalmente produzidos aqui, caso do milho e do feijão, estão sendo importados agora.

Concentração do capital e concentração do poder

38 . O desejo incontrolado de lucros leva a concentrar os bens produzidos com o trabalho de todos nas mãos de pouca gente. Concentram-se os bens, o capital, a propriedade da terra e seus recursos, concentrando-se ainda mais o poder político, num processo cumulativo resultante da exploração do trabalho e da marginalização social e política da maior parte de nosso povo.

39 . Estamos diante de um amplo processo de expropriação dos lavradores, levada a efeito por grupos econômicos. Lamentavelmente, a própria definição da política governamental em relação aos problemas da terra fundamenta-se num conceito de desenvolvimento social inaceitável para uma visão humanista e cristã da sociedade.

40 . Não se pode aceitar que os objetivos econômicos, mesmo numa certa fase do desenvolvimento, sacrifiquem o atendimento das necessidades e dos valores fundamentais da pessoa humana, como dá a entender o documento do Ministro da Agricultura que fixou as diretrizes para o setor agrícola (Documento publicado pelo “O Estado de São Paulo”, de 19.08.79).

41 – A política dos incentivos fiscais, deu ocasião à especulação fundiária e aos grandes negócios com a propriedade da terra. A expulsão atinge não só os posseiros, que chegam hoje no país a cerca de 1 milhão de famílias e os povos indígenas, como também arrendatários e parceiros, através da substituição da lavoura pela pecuária. No caso dos posseiros, quando tentam permanecer na terra, não têm meios para pagar despesas judiciais, demarcações e perícias, iniciando as ações já derrotados.

42 . Onde a expropriação não ocorre diretamente, nem por isso a grande empresa deixa de se fazer presente, estrangulando economicamente os pequenos lavradores. Dados do Ministério do Interior, recolhidos no posto de migrações de Vilhena, em Rondônia, mostram que os milhares de migrantes chegados àquele território procedem de áreas de pequena lavoura de Minas Gerais, Espírito Santo, Paraná e Santa Catarina, principalmente. Milhares de pequenos agricultores têm se deslocado do Rio Grande do Sul em direção ao Mato Grosso. Em virtude do escasseamento e do preço exorbitante da terra nos seus lugares de origem, esses agricultores não têm condições de ampliar suas próprias oportunidades de trabalho e de garantir a seus filhos, que crescem e constituem família, a possibilidade de continuarem na lavoura. Só lhes resta migrar.

43 . Em grande parte, a falta de recursos para cobrir o preço da terra nas regiões de origem desses migrantes vem do fato de que os rendimentos do seu próprio trabalho agrícola são amplamente absorvidos pelas grandes empresas de que se tornaram fornecedores, que estão criando mecanismos quase compulsórios de comprometimento e comercialização de safras. Nesses casos, embora as grandes empresas não expropriem diretamente o lavrador, subjugam o produto de seu trabalho. Tem sido assim com os grupos econômicos envolvidos na industrialização de produtos hortigranjeiros e outros. Na verdade, os lavradores, passam de fato a trabalhar como subordinados dessas empresas, nos chamados “sistemas integrados”, embora conservando a propriedade nominal da terra. Só que, nesse caso, a parcela principal dos ganhos não lhes pertence.

44 . Outro fator que desanima o agricultor é a absoluta falta de escoamento da produção e o preço irrisório do fruto de seu trabalho.

45 . É necessário considerar, também, a prática sistemática do atravessamento na comercialização dos produtos agrícolas. Em muitos produtos destinados ao consumo urbano, como acontece com os gêneros alimentícios essenciais, os setores comerciais intermediários – transportadores, atacadistas e varejistas – costumam reter não raro mais de 50% do preço final pago pelo consumidor.

46 . Não se pode esquecer, ainda, de um certo caráter perverso no mecanismo de preço dos gêneros alimentícios de origem agrícola. O alimento considerado caro pelo consumidor urbano e que o produtor agrícola considera barato e insuficientemente pago pelo comprador, beneficia, ainda, uma outra categoria econômica. Na verdade, o custo dos alimentos consumidos pelo trabalhador urbano é caro em face do salário baixo por ele recebido, mas é barato para o patrão que emprega o seu trabalho. Aquilo que falta no pagamento dos produtos do trabalho do lavrador aparece, de fato, como mão-de-obra barata na contabilidade e no lucro da empresa nacional e multinacional. Quando o lavrador compra alguma coisa produzida pela industria – como o adubo, o inseticida, a roupa, o calçado, o medicamento – paga caro, em comparação com os seus próprios ganhos; quando vende o seu produto, que vai ser consumido na cidade, só consegue vendê-lo barato em comparação com os lucros da grande indústria beneficiada pelo barateamento de preço da força de trabalho. Estamos diante de uma clara transferência de renda da pequena agricultura, produtora da maior parte dos alimentos, para o grande capital. Mecanismo semelhante opera no caso do confisco cambial.

47 . Até organismos do Estado têm se envolvido, diretamente ou através de empresas públicas, em conflitos pela terra. Esse envolvimento fica muito mais claro nas disputas em torno das desapropriações de lavradores para a construção de rodovias e de barragens, como acontece em Itaipu e no Vale do São Francisco. Raciocinando como empresários de empresas privadas, mesmo não o sendo, no intuito de supostamente diminuir custos, os representantes do Estado nesses empreendimentos esquecem que os lavradores dessas regiões não têm terra para negociar, mas para trabalhar. As indenizações que o Estado paga são geralmente insuficientes para que o lavrador retome em outra parte a sua vida de trabalho, nas mesmas condições em que se encontravam antes. Ou então é transferido para áreas onde são más as condições de vida e trabalho, mergulhando rapidamente numa situação de grande miséria. É o que ocorreu na barragem de Sobradinho, na Bahia, e ameaça repetir-se na região da barragem de Itaparica, em Pernambuco e Bahia, envolvendo 120 mil pessoas. Os agricultores não têm sido atendidos na sua exigência de indenização pelos lucros cessantes, reassentamento em condições iguais ou melhores, indenização justa, ou pagamento de terra com terra quando assim for de seu desejo.

 

COMENTÁRIO

Está na alçada da CNBB profligar as injustiças a que dê azo – de modo certo e segundo o consenso geral dos técnicos e dos homens experientes – uma estrutura sócio-econômica ou uma política financeira. Máxime quando, sempre segundo os técnicos e os homens experientes, a estrutura ou a política em causa podem ser reformadas sem dano irreparável ou muito grave para o bem comum.

Ora, nos presentes tópicos (nos. 32 a 47), o IPT afirma a existência de situações de carência cuja amplitude e gravidade não especifica nem demonstra, e sobre as quais a opinião dos técnicos e dos homens experientes varia. Ademais, pressupõe que as reformas por ele indicadas são exeqüíveis desde já, sem prejuízo para a causa comum: outro ponto em que os técnicos e os homens experientes estão em desacordo. E, por fim, supõe como demonstrado que tais reformas são tecnicamente aptas a retificar os abusos contra os quais se pronuncia: mais outro ponto, ainda, de graves desacordos entre os técnicos e os homens experientes. Assim, o IPT se substitui aos técnicos e aos homens experientes para decidir da situação de fato, quer sócio-econômica, quer financeira.

Os tópicos 32 a 47 mostram, mais do que quaisquer outros, que os autores do IPT chamaram a si montar todo um quadro da economia nacional, controvertido entretanto em todos ou quase todos os pontos pela opinião de pessoas notáveis por seu saber ou por sua experiência. Assim, por exemplo, o IPT não se coíbe de fazer pesadas críticas ao Poder público temporal, dando sumariamente por errônea a visão que este tem dos fatos, e o programa que adota em conseqüência (nos. 35 a 37).

Essa atitude, que apresenta características de dogmatismo apaixonado concernindo matéria insusceptível de dogmatização, é agravada pela tranqüila carência do IPT – também nos tópicos ora analisados – no tocante a fontes informativas. As afirmações dele sobre a realidade dos fatos, também aqui são lançadas por escrito a granel, como se fossem evidentes. E as provas? Enquanto o Cap. 1 do IPT (nos. 8 a 31) fazia aceno a alguns dados no sentido da demonstração, os tópicos em análise se mostram inteiramente desinteressados de tal.

É inexplicável que, fazendo tão ampla e grave incursão em matéria técnica, o IPT ponha de lado as regras mais elementares de qualquer bom procedimento técnico [1].


[1] Quanto aos aspectos econômicos dos tópicos 32 a 47, cfr. Título II, Posso e devo ser contra a Reforma Agrária – Considerações econômicas, Cap. III, 2.

 


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