Plinio Corrêa de Oliveira

 

7 Dias em Revista

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 23 de janeiro de 1944, N. 598, pags. 1 e 2

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Lamentamos não possuir o texto completo da alocução dirigida pelo Santo Padre Pio XII aos membros da nobreza romana [vide o texto integral em “Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana”, Plinio Corrêa de Oliveira, 1993, Parte III, Documentos I, pags. 262-265]. Para conhecimento de nossos leitores, estamos reduzidos a publicar tão somente um resumo telegráfico transmitido pela agência "Reuters", devido à falta de comunicações normais com o Vaticano. Entretanto, esse simples resumo já contém pérolas inestimáveis. Sobretudo nesta época em que o sopro gélido da guerra parece querer apagar as últimas chamas da tradição cristã ocidental, as palavras do Sumo Pontífice têm uma inestimável oportunidade.

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O Santo Padre começa por mostrar a situação catastrófica em que nos encontramos. Não é difícil notar as calamidades materiais que a guerra acumula. Antes, seria impossível não as notar. Não é pois tanto sobre este aspecto da situação que o Santo Padre insiste. Ele fala principalmente das ruínas morais das almas que se perdem, das instituições representativas de milênios de cultura cristã e de civilização cristã que soçobram, dos turbilhões de idéias falsas, de paixões em ebulição, de ambições desregradas que de toda parte se levantam. Por isto, o Santo Padre não fala em reconstruir vilas, aldeias, cidades, mas em "reconstruir a sociedade humana". A sociedade humana é a maior de todas as ruínas contemporâneas. Se Londres ou Nova Iorque - as duas maiores cidades de nossos dias - ficassem arrasadas, constituiriam ruína menor do que é a humanidade neste triste século XX.

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Não é outro o pensamento do Soberano Pontífice, quando ele afirma que "atualmente estamos testemunhando um dos maiores incêndios da História". Incêndio material? O Santo Padre desfaz qualquer equívoco acrescentando imediatamente: "Estamos vivendo uma das épocas mais cheias de distúrbios políticos e sociais jamais registrados nos anais do mundo". Esse, o incêndio. Incêndio ideológico, que abrasa antes as idéias que as doutrinas, e só conseguiu arrasar lares, cidades, províncias inteiras porque havia posto previamente em delírio e em combustão o pensamento alucinado do homem contemporâneo.

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De onde tamanha desgraça? Porventura não somos filhos de Deus? Como então nosso Pai Onipotente assiste de braços cruzados a essa imensa catástrofe? Dorme a Divina Providência?

Nunca. Deus é misericordioso até mesmo quando castiga. Em certo sentido, poder-se-ia dizer que a misericórdia de Deus transparece mais claramente sobretudo quando castiga. Ai daqueles sobre quem tarda a vir o castigo de Deus! Ai do pecador impenitente que vive feliz e despreocupado! Ai do homem iníquo, a quem cercam todas as venturas da vida temporal! O homem que continua feliz no crime é o maior dos desgraçados. Se não fosse tão grande sua degradação, talvez Deus o visitasse por meio de sofrimentos, e lhe abrisse os olhos para sua iniquidade. Mas chegou a cair tão baixo que nem essa desgraça amarga, mas salutar, lhe é concedida. Rolará inconsciente de abismo em abismo até que finalmente caia sobre ele o braço de Deus. Deus nunca falta com sua graça, nem ao ímpio, nem ao pecador. Mas como crescem, se acumulam, se multiplicam os castigos que Deus tarda em enviar!

Todo esse sofrimento é, pois, no fundo, um fruto da Divina Misericórdia. Pelo amargor do remédio que experimentamos, podemos medir a extensão da gravidade de nosso mal. Nada disso teria surgido "se cada um tivesse cumprido o seu dever de acordo com a Divina Providência", diz o Pontífice. Mas agora, o que nos resta é beijar a Mão que nos castiga, agradecer o castigo que nos salva, e salvar-nos por meio da punição que nos é enviada.

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O LEGIONÁRIO publicou em sua última edição um belíssimo artigo do Revmo. Sr. Pe. Valentim Armas, C.M.F. em que se fala da Jacinta, a santa pastorinha de Fátima.

Vendo o Santo Padre expressar-se em termos tão amargos sobre a situação contemporânea, não podemos deixar de nos lembrar que, aparecendo em Fátima quando chegava a seu termo a última guerra, Nossa Senhora advertiu ao mundo contemporâneo que se convertesse a Cristo e à Igreja, sob pena de nova guerra que traria consigo inenarráveis prejuízos e sofrimentos. Nossa Senhora profetizou um sinal celeste que deveria prenunciar os castigos contra os quais premunia maternalmente o mundo impenitente. Pouco antes da guerra, um fenômeno perfeitamente visível nas principais cidades da Europa, e classificado pelos técnicos como uma singular aurora boreal, se fez notar. Todos os telegramas, todos os jornais falaram do assunto. Do fundo da Casa Religiosa em que vive apagada e piedosamente Lúcia, a última sobrevivente dos três pastorinhos de Fátima, escreveu à Autoridade Diocesana, dizendo-lhe que era esse o sinal prenunciado pela Santíssima Virgem. Pouco depois, sobreveio a conflagração. Confirmava-se a ameaça, confirmou-se o castigo. Quanta razão tem o Santo Padre em dizer que nada disso teria acontecido, se tivéssemos ouvido a voz da Igreja, se tivéssemos obedecido à Lei de Deus!

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"Contudo, haverá um novo período de reconstrução. O novo mundo reorganizado que surgirá não nos foi ainda revelado". Que quer dizer o Pontífice? Não lhe foi ainda revelado como se reorganizará o mundo pós-guerra?

Mas como assim? Não é ele o Vigário de Cristo? Se houver uma ordem cristã, a pedra angular dessa ordem, a chave de cúpula desse novo edifício não deverá ser a Santa Sé? E se a Santa Sé não sabe ainda o que se vai fazer, far-se-á  com ela, à sombra dela - sombra que é luz e é mesmo a única luz que há no mundo - com base nela, para a glória de Cristo e de sua Igreja o mundo de amanhã? Se assim fosse, o Papa já não estaria inteirado de tudo?

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"Haverá um novo período de reconstrução", diz o Pontífice. Ele não sabe como será essa reconstrução. Uma coisa há, entretanto, que o Papa sabe. Desde que Jesus Cristo fez de Simão uma Pedra, será essa a única pedra angular de tudo quanto se construa de sólido, de estável, de glorioso no mundo. Construir fora dela é construir ruínas.

Quereis ver uma ruína que nenhum incêndio material devastou, mas que as injúrias de dois ou três bárbaros arrasaram? Olhai para o palácio ermo da Liga das Nações. Foi bastante que a fera nazista ali penetrasse, que um punhado de aventureiros desse ali dentro alguns urros, que aquele conglomerado de estadistas humanitários se desfez.

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Mas, reciprocamente, há ruínas que ninguém consegue demolir até à última pedra. Os escombros dos edifícios sociais e políticos erguidos nos séculos de civilização cristã estão resistindo a tudo. Se o homem ocidental tivesse ficado integralmente católico, estas instituições teriam sofrido até certo ponto as inevitáveis transformações do tempo, mas não teriam caído em ruínas. Se estão em ruínas é porque sofrem o justo castigo de sua tibieza, de seu egoísmo, do olvido dos princípios que constituem o substractum de suas tradições. Mas, nesses velhos troncos corroídos por tantos vermes, a seiva cristã não desapareceu de todo. Daí vem esse fato verdadeiramente curioso: essas ruínas ainda conservam uma vitalidade que muita obra nova em folha está longe de possuir. E como são ruínas de uma obra nutrida com seiva divina, conservam não só mais vida, como mais glória e mais beleza, que todas as obras humanas marcadas com o estigma do laicismo, do ateísmo, do paganismo de hoje.

Átila está em Roma. Suas legiões bárbaras dominam mais uma vez a Cidade Eterna. Mas do século V para cá, Átila piorou muito. Ele era um bárbaro que conhecia apenas alguns rudimentos da ordem natural. Hoje é um apóstata. Sua ferocidade se fez maquiavélica, sagaz, técnica. No século V Átila matava muito. Ele continua homicida. Suas mãos estão tintas de sangue. Mas no Século V, Átila só matava corpos. Batizado, aprendeu que há almas. Hoje, Átila, apóstata, prefere matar almas! No século V, Átila era sobretudo um bruto. Hoje, é antes de tudo um demônio.

E este demônio, como todos os seus congêneres, é igualitário. "Não serve", precisamente como Lúcifer. Revolta-se. Detesta toda desigualdade, exceto a hierarquia de suas milícias diabólicas. Por toda parte onde vai, marchando em fileiras rijamente disciplinadas, ele destrói a verdadeira disciplina; revolta as almas contra Deus, revolta os instintos materiais contra o domínio racional da alma, revolta a força contra o saber, revolta a barbárie contra a tradição, contra a civilização, contra a hierarquia dos valores culturais, tradicionais, espirituais.

Tudo progrediu no mundo. Átila também. Hoje, Átila é assim...

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Ora, enquanto a cadência brutal dos passos das legiões de Átila ecoa sobre as lajes centenárias da Cidade Eterna, enquanto por toda parte Átila nivela, destrói, aniquila a tradição - que fez Átila contra a tradição, o passado, a hierarquia de valores na Alemanha! - ainda há em Roma um escombro de nobreza, que vive de uns últimos alentos de seiva cristã. Esse escombro é um escombro. Como lembra Leão XIII em uma das suas Encíclicas, a nobreza em toda a Europa não cumpriu até o fim seu dever e por isto sobreveio a Revolução Francesa. Mas, se não foi inteiramente fiel não foi inteiramente infiel a nobreza. Por isso, reduzida a escombro embora, tem uma grande respeitabilidade, tem uma vida resistente.

Catilina [Lúcio Sérgio Catilina, 108 a.C. — 62 a.C., foi um militar e senador da Roma Antiga, célebre por ter tentado derrubar a República Romana, e em particular o poder oligárquico do senado, aqui referindo-se a Mussolini, n.d.c.], que no século XX se encontrou com Átila [rei do povo bárbaro dos hunos, e aqui referindo-se a Hitler, n.d.c.] e a ele se aliou, caiu em Roma, e foi para o substituir que Átila invadiu a cidade. Mas esses restos dos cruzados, de gentis-homens cristãos e patriarcas romanos que no seu infortúnio conservam a Fé, a glória e a tradição de seus ancestrais ainda sobrevivem à irrupção de Átila e à queda de Catilina.

Catilina os detestou, ocultamente os perseguiu quando viu que não obtinha para suas aventuras o apoio da nobreza. Átila os odeia. Mas eles sobrevivem e ainda vão, incorporados, pobres talvez e sofrendo necessidades e vexames que só Deus sabe, ainda vão beijar o tronco venerando de onde brotaram todas as instituições Cristãs inclusive a que representam. Pode-se imaginar com que carinho o Papa os terá recebido.

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Os melhores dons de Deus são as cruzes e as missões. São presentes que encerram a promessa de outros dons. Quando Deus incumbe a um homem de uma grande tarefa, promete-lhe graças para ter uma grande alma. E uma grande alma, uma alma santa é o melhor dom que Deus possa fazer ao homem.

Pio XII julga que esses velhos escombros ainda têm suficiente força para desempenhar uma missão. E talvez, para eles um último apelo, a glória de uma última investidura, a ocasião suprema de reintegração na plenitude de seu espírito, de sua tradição, que evite para eles a ruína definitiva.

Acima, obra escrita e publicada pelo Prof. Plinio, em 1993 

Pela boca de Pio XII foi Deus que falou. E não falou apenas à nobreza romana, mas à do mundo inteiro. Não apenas à nobreza mas a todas as classes sociais que, nos países de qualquer latitude e de qualquer forma de governo, representam a continuidade do passado e o presente e, depositárias da tradição, têm a custódia de valores culturais e espirituais de vinte séculos de civilização cristã, de uma civilização feita e mantida pelos méritos infinitos da Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo. Há gotas do Precioso Sangue de Cristo nessas tradições. Essas tradições cristãs valem bem o Santo Graal que empolgou a imaginação dos cavaleiros medievais.

Ouvi Cristo que fala pela boca de Pedro aos aristocratas, aos homens de escol no terreno da distinção, da cultura ou da instrução, no mundo inteiro:

"Meus filhos, tendes um papel a desempenhar. Qual é a tarefa que vos foi confiada? Certamente a de facilitar o funcionamento normal da máquina humana. Sois os seus reguladores, os aeróstatos. Em outros termos, representais a tradição".

Quanta antipatia essas palavras poderão suscitar, especialmente naqueles que ignoram absolutamente o que seja uma tradição. O Santo Padre de antemão refuta os sofismas destes últimos.

"A palavra tradição pode ser desagradável quando pronunciada por certos lábios. Muitos a interpretam erradamente. Muitas almas, mesmo sinceras, têm a impressão de que a tradição é apenas uma recordação e uma pálida imagem do passado, de um passado que não pode voltar. Entretanto, a tradição é mais que uma ligação com o passado, é sinônimo de progresso. A juventude guiada pela experiência de seus predecessores poderá marchar mais firmemente para a frente. A tradição é um presente que se transmite em gerações sucessivas. Sem ela o progresso se efetuaria às cegas, na escuridão".

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Apagar a tradição seria, pois, deixar que o mundo "caminhasse às cegas, na escuridão." Foi nas mãos das elites, que Deus depositou esse tesouro de sabedoria e de luz.

A função das elites sociais consiste em preservar esse tesouro, em iluminar com ele corajosamente o presente, em trabalhar por que essa lâmpada nem se apague ao vendaval das idéias novas, nem brilhe inútil para os olhos de poucos, mas pelo contrário como o lume evangélico seja colocada no candelabro para iluminar a sala inteira.

Conservar as tradições não é conservá-las como mero objeto de museu. É conservá-las vivas, fortes, e, para isto é preciso vivê-las. Só as tradições vividas na plenitude e autenticidade do espírito que as formou são capazes de influenciar beneficamente o progresso, orientando-o, estimulando-o, aliando-se a este sem com isto se deformarem.

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O que precisamos é que o espírito dessas tradições, a alma dessas tradições viva. E para que viva, é preciso que se alimente da Vida. E a Vida é Nosso Senhor Jesus Cristo.

Átila é hoje Hitler. Hitler morrerá, seus dias estão contados como os de Baltazar. Mas Átila não morrerá, porque Hitler é Átila. Átila não é Hitler. Átila é a barbárie que desponta em muitos quadrantes do mundo moderno. Átila não é um homem, nem um povo, mas uma ideia, ou antes uma anti-idéia. Foi Átila que organizou na Alemanha os campos de concentração, as Ordensburg [campo de concentração], as SS, todo o infame aparelhamento do partido nazista. Foi ele que tentou derrubar os altares de Cristo para conglomerar os povos em adoração ao sol no recesso das florestas.

Mas se Átila sofreu um rude golpe com a queda de Hitler, todavia não morrerá com Hitler nem com o nazismo. Átila continuará a viver nas escolas onde se fizer a apologia da força, nos laboratórios onde se aconselhar a esterilização e se matarem os nascituros, nas correntes em que se afirmar que o homem não é livre nem senhor de seus atos, mas escravo da bestialidade insofreável de seus instintos: isto é que é Átila.

Átila mostrou no nazismo toda a sua face bestial e abjeta. Morto o nazismo, Átila porém não morrerá. Átila é um estado de espírito. Átila é, como dissemos, uma anti-idéia, que não é huna, nem germânica nem latina, nem saxônica, nem negra, nem eslava, nem nipônica, mas que em qualquer raça pode de um momento para outro dominar.

E o mesmo se diga de Catilina. No século XX, Catilina baralhou um pouco a História. Não tivemos nenhum Cícero. Catilina venceu por momentos, e se fez de César. No fundo, foi sempre Catilina. Catilina é sempre o melhor aliado de Átila. A brutalidade vence pela cumplicidade dos despeitados a quem se promete um lugar ao sol, dos vaidosos para quem ser um grande homem não é senão fazer o papel de grande homem... que se orgulham quando, muito alto carregados nas penas .... Houve Catilinas na Alemanha. Um deles se chamou Von Papen. Houve Catilinas na Holanda, na Bélgica, na Áustria, na Noruega, em mil outros países: todos eles se chamaram Quisling. Poderiam por exemplo chamar-se Mosley ou Tojo. No fundo, são sempre Catilina.

Catilina não se reabilitou no mistério da morte de Ciano [cunhado de Mussolini, o qual teria encomendado seu assassinato, n.d.c.], nem morreu com ele, nem morrerá com o fascismo. Catilina também é universal. Ele continuará a viver em todos os que pregarem para com o totalitarismo conivência, cordura, cumplicidade para que os que procurarem intoxicar o mundo com os sonhos do totalitarismo.

Entretanto, nem Átila nem Catilina vencerão as elites que, para o bem do povo, souberem conservar-se genuinamente cristãs, isto é, católicas, apostólicas, romanas.


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