Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Ação popular dos católicos

 

 

 

 

 

 

Legionário, 31 de dezembro de 1944, N. 647, pag. 5

  Bookmark and Share

 

Vimos em nosso último número como o Santo Padre Leão XIII procurou separar da ação popular dos católicos, a que se dera na Bélgica em fins do século passado o nome de “democracia cristã”, qualquer sentido político que fizesse confundir este movimento, com a “democracia social”, condenada pela Igreja e que tende a fazer residir a autoridade no povo e a promover o igualitarismo pela abolição da hierarquia social e pelo nivelamento das fortunas.

Continuaremos hoje a transcrição da Encíclica “Graves de communi”. Ocupamo-nos do trecho que explica em que consiste esta ação popular dos católicos, que nada tem a ver com a política e se acha subordinada à Igreja.

*    *    *

Papa Leão XIII

Tanto mais digna de encômio nos parece esta ação benéfica dos católicos em relação aos operários, quanto se exerça no mesmo campo e que a caridade, sob a benigna inspiração da Igreja, exercitou sempre sua ação, acomodando-se às circunstâncias dos tempos. Esta lei de mútua caridade, que é como complemento da justiça, não somente obriga a dar a cada um o que é seu, não violar o direito alheio, mas também a favorecer uns aos outros, não por palavras nem pela língua, mas por obra e pela verdade (1 Jo. III, 18), recordando o que Cristo amorosamente disse aos seus: “Um mandamento novo vos dou: que ameis uns aos outros, assim como Eu vos tenho amado, para que vós vos ameis também entre vós mesmos. Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes caridade entre vós mesmos” (Jo. XIII, 34-35). E posto que este mútuo auxílio deva visar os bens não caducos, entretanto deve estender-se às necessidades da vida, a cujo propósito convém recordar que, quando os discípulos do Batista perguntaram a Cristo: “És tu o que há de vir, ou esperamos a outro?” Ele mesmo, para mostrar o motivo de sua divina missão entre os homens, apresentou a razão de caridade, referindo-se à sentença de Isaias: “Os cegos veem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, os pobres são evangelizados” (Mateus, IX, 5). E falando do juízo final e da distribuição dos prêmios e penas, declarou que especialmente atenderia à caridade com que reciprocamente se houvessem tratado os homens; e causa admiração que passando em silêncio neste ponto as obras espirituais de caridade, se ocupe somente dos deveres de caridade externa, considerando como feita em Seu favor: “tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, estava ao desabrigo e me abrigastes, nu e me cobristes, enfermo e me visitastes, estava no cárcere e me viestes ver” (Mateus XXV, 35-36).

A estas lições de caridade espiritual e corporal acrescentou Cristo insignes exemplos, como todos sabem; e pelo que se refere ao presente é grato recordar aquela frase saída de Seu coração paternal: “Tenho compaixão deste povo”, e a vontade de socorrer aquela necessidade até de modo milagroso, de cuja grande misericórdia fica este encômio: “passou pela vida fazendo o bem e sarando a todos os oprimidos pelo demônio” (Atos X 38). Semelhante escola de caridade seguiram desde o princípio os Apóstolos com suma diligência; e os que depois abraçaram Cristianismo foram criadores de várias instituições com as quais procuraram remediar todo gênero de misérias humanas; instituições que favorecidas com incessantes incrementos são, em verdade, preclaro ornato do cristianismo e da civilização que dele procede. Daí que os homens retos não cessam de admirá-las, sobretudo tendo-se em conta a inata propensão que em todos e cada um de nós existe de cuidar do próprio interesse e a descuidar do alheio.

Das obras de beneficência não se há de excluir a distribuição de dinheiro em esmolas, segundo as palavras de Cristo: “dai esmola do que vos sobra” (Lucas XI, 41). Os socialistas a reprovam e desejariam suprimi-la, como injuriosa à nobreza ingênita do homem. Mas quando se dá esmola, segundo a prescrição evangélica e conforme ao uso cristão, nem alimenta a soberba em quem a faz, nem envergonha a quem a recebe. Tão afastado está de ser indecoroso ao homem a esmola que antes bem serve para estreitar os vínculos da sociedade humana, fomentando a necessidade de deveres entre os homens, porque ninguém existe, por mais rico que seja, que não necessite de outro, nem ninguém absolutamente pobre, que não possa ajudar a outro em alguma coisa. Harmonizadas deste modo entre si a justiça e a caridade abraçam de modo maravilhoso todo o corpo da sociedade humana e conduzem providencialmente a cada um de seus membros à consecução do bem individual e comum.

Merece também ser exaltado e o justo louvor da caridade, o socorrer as necessidades do povo, não somente com auxílios transitórios, mas também por meio de instituições permanentes, nas quais os necessitados tenham vantagens mais estáveis e seguras. Todavia é mais digno de aplauso o propósito de infundir no ânimo dos artífices e operários o espírito de parcimônia e previsão, para que deste modo possam, com o correr do tempo, atender pelo menos em parte às suas necessidades. Tal propósito não somente alivia o dever dos ricos para com os pobres, mas também por sua vez recai em bem dos operários, pois estimulando-os a se prepararem para um futuro mais folgado, os afasta dos perigos, reprime neles o ímpeto das paixões e os atrai ao exercício das virtudes.

Entenda-se, pois, que esta ação dos católicos em favor e auxílio do povo, concorda com o espírito da Igreja e é fiel reflexo dos exemplos admiráveis que ela tem dado. E importa muito pouco que ao conjunto destas instituições e atividades se chame ação cristã popular, ou simplesmente democracia cristã, sempre que se observem, com o obséquio que merecem e em toda sua integridade, nossos ensinamentos. Por outro lado, importa muito que, em negócio tão grave seja uma única a mente, o desejo e ação dos católicos, e não interessa menos que esta mesma ação aumente e se amplie. Deve-se, com efeito, visar especialmente a benévola cooperação daqueles que por seu nascimento, posição, cultura e educação gozem de maior autoridade na sociedade; faltando este elemento, pouco pode ser realizado na direção do anelado bem do povo; pelo contrário, tanto mais breve e seguro será o caminho que a ele conduz, quanto maior seja o número dos cooperadores e mais eficaz sua cooperação. Nosso desejo seria que considerassem que não estão isentos de favorecer a sorte dos pobres, mas que a isto estão obrigados. Porque na sociedade não vive cada indivíduo para si apenas, mas também para a comunidade; deste modo o que uns não podem fazer pelo bem comum, sejam substituídos com largueza pelos que podem. A própria superioridade dos bens recebidos, dos quais se há de dar estreita conta a Deus que os outorgou, demonstra a gravidade desta obrigação, como também a declara a torrente de males que, se não são prevenidos em tempo, acarretarão a ruína de todas as classes sociais, resultando disto que aquele que despreza a causa do povo, se  mostra imprevidente a respeito de si próprio, bem como da sociedade.

Não há que temer se esta ação social, animada de espírito cristão, se propaga e prospera, que se esterilizem e desapareçam absorvidos pelas novas sociedades, os institutos devidos à piedade e previsão de nossos antepassados, porque estes, como aquelas, estão animados de um mesmo espírito de religião e caridade, e não sendo, por outro lado, opostos entre si, facilmente poderão unir-se para atender às necessidades do povo e aos perigos cada dia mais graves. A realidade clama e clama com veemência dizendo que é necessário valor e união, visto que se vislumbra um acúmulo imenso de desventuras que ameaçam pavorosas catástrofes, por efeito, principalmente, do incremento que toma a seita dos socialistas. Com astúcia invadem o seio da sociedade e tanto nas trevas de reuniões ocultas como em público, por meio de conferências e escritos, excitam as multidões à sedição; abandonada toda ideia religiosa, rechaçam os deveres, e proclamam apenas os direitos; e assim inflamam as turbas, mais engrossadas cada dia pelos que a própria miséria faz cair com facilidade ao engano e que se deixam arrastar pelo erro. Trata-se, pois, dos interesses da sociedade e da religião, que devem os bons defender de maneira decorosa.

Para que a concórdia de ânimos adquira a desejada estabilidade, é necessário que todos se abstenham das questões que ofendem e dividem. Omitam-se, pois, tanto nos diários como nas conferências populares, certas questões muito sutis e de escasso interesse, cuja solução e compreensão exigem capacidade suficiente e cultura não vulgar. É próprio do homem duvidar em muitas coisas e em outras sentir de maneira diversa da de outros; convém, portanto, que os que sinceramente procuram a verdade, observem nas disputas igualdade de ânimo, modéstia e mútua reverência, para que deste modo o dissentimento de opiniões não acarrete o dissentimento de vontades. Nas questões duvidosas pode cada um defender a opinião que melhor lhe parecer, sempre que esteja disposto a submeter-se às decisões da Sé Apostólica.

Esta ação dos católicos se desenvolverá com mais amplitude e eficácia se todas as instituições, conservando seu direito, forem dirigidas por um mesmo impulso. Na Itália desejamos que este impulso corresponda aos congressos e “comités” católicos tantas vezes por Nós louvados, aos quais Nosso Predecessor e Nós confiamos a missão da ação comum dos católicos, sob a direção e tutela dos Bispos. Faça-se o mesmo nas demais nações, se houver associações às quais se possa cometer tal encargo.”

* * *

Foram ouvidas as palavras de Leão XIII? Apesar das balizas colocadas em tão delicado caminho pelo sábio Pontífice, muitos continuaram a se extraviar. Em 1907, seu Sucessor, o Papa Pio X, se sente levado a avisar os protetores episcopais do Instituto Católico de Paris que vigiassem para que não saíssem de suas aulas alunos infectados por idéias perniciosas e falsas. Chegou-se a dizer que ninguém podia ser católico sem ser antes democrata.

E nesta atmosfera viciada surgiu o “Sillon”, fundado por Marc Sangnier, e que haveria de ser objeto da notável Encíclica de Pio X, em que mais uma vez foram indicados aos filhos da Igreja os perigos que se ocultam sob um falso conceito de democracia, ou seja a democracia que se funda nos princípios revolucionários que inspiraram os convencionais de 89 (da Revolução Francesa, n.d.c.), conceito desvirtuado e de consequências ainda mais nefastas quando colocado como base da vida religiosa.