Capítulo IX

 

 

As desigualdades e a calma

 

 

 

 

 

 

 

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Se o sol não existisse, seria noite apesar da presença das outras estrelas (Heráclito de Éfeso)

Neste capítulo

Alguém pode pensar: Fulano tem mais do que eu, isto me tira a calma.

Entretanto, em se tratando de desigualdades proporcionadas e que têm razão de ser, elas devem ser motivo de satisfação para o não invejoso. Para o invejoso, a desigualdade é causa de nervosismo.

Deus quis fazer o gênero humano desigual, e contra isso se insurgem os igualitários. Eles são sempre inconformados, ácidos e revoltados.

As almas alegres e boas, pelo contrário, procuram estar de acordo com os superiores desígnios de Deus na Criação. Estão sempre satisfeitas, porque prontas para admirar. Elas conhecem o deleite e o dever da admiração. 

Estátua de Carlos Magno, próxima a Notre-Dame em Paris, com Roland e Olivier a seu lado

Desigualdades, uma satisfação para o homem

Ver que alguém é superior a si próprio, que alguém merece sua admiração, não deve ser um tormento, mas uma alegria. Todas as desigualdades proporcionadas, e que têm razão de ser, constituem uma satisfação para o homem. Mais ainda do que isso, dão glória a Deus Nosso Senhor, que está no mais alto dos Céus, e é assim o sumo da desigualdade em relação a todos que criou.

Como podemos explicar e justificar esta tese?

Paraninfo num colégio de cegos

Muitos anos atrás, fui a um estabelecimento de ensino onde me convidaram para ser paraninfo. Terminado meu discurso, percebi que uns rapazinhos sentados na primeira fila – nos quais eu não tinha prestado muita atenção – levantaram-se, segurando-se todos uns aos outros pela mão. Aí percebi que eram cegos, conduzidos por um que via normalmente. Eles iam tomar juntos o ônibus e voltar a um instituto de cegos.

Pensei depois nesses rapazinhos que agora voltavam para o instituto de cegos. Tinham tido um dia monótono, e o dia seguinte, um domingo, não podia também deixar de ser monótono para eles. Não tinham perdido também a audição, e naturalmente deviam fazer um pouquinho de música, o que não podia encher o dia deles.

Mas o que logo saltou à minha mente é que, se todos eram iguais do ponto de vista da falta de visão, para eles aquela igualdade era uma fonte de tristeza, ao passo que a desigualdade seria uma fonte de alegria. Para eles, ouvir o discurso de quem era superior a eles, pelo menos do ponto de vista de ter visão normal, era uma distração, uma satisfação. Além disso, eles se sentiam naturalmente promovidos, porque rapazes de visão normal ali presentes condescendiam em conversar com eles, sendo que o habitual é muitos evitarem a conversa de um pobre cego, que não pode contar grande coisa.

O contato do menor com o maior, quando é bem travado, dá a ambos uma alegria especial. O menor (o cego, neste caso) tem uma alegria evidente, pois tem o que admirar. Não vê, mas percebe como seriam as coisas se pudesse ver. Além disso, contam-lhe coisas que ele não sabe, e assim o mundo que ele não vê, mas pode compreender pela inteligência, fica mais belo do que ele supunha. Os olhos do que vê são a riqueza do que não vê.

A inveja num leprosário

Essa problemática pode se repetir para toda forma de desgraça.

Quando eu estava nos últimos anos da Faculdade de Direito, resolvi visitar com amigos um leprosário nos arredores de São Paulo. Umas freiras que tratavam dos leprosos – jovens ainda, e de saúde normal – nos receberam com muito sorriso, muita amabilidade, e uma delas nos perguntou:

— Os senhores querem realmente visitar um estabelecimento de leprosos?

Respondemos que sim, e ela disse:

— Está bem, a superiora mandou-me servir de guia para os senhores, e vou mostrar tudo. Os senhores vão ver a tristeza da situação de um leproso.

Começamos a visita. Era um leprosário muito limpo, tudo muito bem arranjado. As freiras ainda eram do bom tempo em que cumpriam modelarmente seu dever. A guia nos disse:

— Vamos começar por mostrar-lhes um quarto com o leproso dentro, e os senhores vão ver como é a manhã de um leproso.

Entramos e vimos um homem sentado junto a uma mesa onde estava aberto um livro. Tinha a pele toda alterada, uma coisa horrível. Percebia-se que ele enxergava com alguma dificuldade, mas ainda conseguia ler. Ficara leproso não havia muito tempo. Não achava graça nenhuma em ler, mas estava com aquele livro diante de si porque não tinha o que fazer.

Quando entramos, ele percebeu que eram jovens visitantes. Ele olhou assim de esguelha e entendeu que estava sendo mostrado como um exemplar de leproso para jovens saudáveis. Diante da nossa jovialidade, nossa boa disposição, ele não teve alegria, mas uma golfada de inveja. O normal seria ele pensar o seguinte: “Esses rapazes tiveram interesse em ver como somos; têm certa compaixão, querem compreender como é nossa situação, nosso modo de vida. Tiveram pena de nós, olham-nos em nossa desventura, e querem nos ajudar”.

Pelo contrário, o pensamento dele foi nesta linha: “Estão com nojo de mim. Eu me revolto, porque não admito que alguém tenha nojo de mim”. Nem sequer voltou os olhos para nos olhar. Normalmente nós faríamos um cumprimento e perguntaríamos como ia passando, como se chamava, há quanto tempo estava lá, como estava se sentindo. Não havíamos levado um presentinho, porque éramos estudantes muito curtos de dinheiro, mas ao menos conversaríamos com ele, teríamos um pouco de pena. Recebendo-nos dessa maneira, ele tornava impossível a conversa, porque evidentemente lhe reconhecíamos ao menos o direito de não receber quem não quisesse.

Esse homem tinha fechado a porta da desigualdade. Nós éramos a superioridade, éramos estudantes, daí a pouco seríamos homens formados, ocuparíamos na vida uma situação que ele, mais ou menos da categoria de um trabalhador manual, nunca tinha ocupado. Éramos saudáveis, e ele um pobre doente da mais triste das doenças, curtindo ali sua infelicidade. Na consideração dessa desigualdade, ele poderia ficar contente ao receber a esmola de um interesse, de uma estima, de uma amizade, e poderia ter isso como um bálsamo por vários dias.

Por não querer receber a desigualdade, por não querer alegrar-se com quem tinha o que ele não tinha, fechou para si a porta da consolação e se encerrou em seu próprio vinagre. Veio-me ao espírito esta reflexão: o homem que não aceita a desigualdade é um homem errado, que não compreende a realidade das situações.

A inveja e a realidade de uma jovem leprosa

Mais adiante passamos por um grupo grande de leprosos, que iam entrar numa capela para rezar. Uma moça bem nova, loura, de rosto cheio, provavelmente de ascendência italiana, andava com os leprosos mas parecia saudável, sem nenhuma aparência de leprosa. A freira sussurrou:

— Esta entrou há poucos dias aqui, viera visitar uma parente leprosa, mas não sabia que ela mesma fosse leprosa. Uma freira olhou-a atentamente, reconheceu nela uma leprosa e pensou: “Esta é leprosa e não sabe. Ela tem um modo de arrastar o pé que é característico do leproso”. Quem lida continuamente com os leprosos facilmente percebe essas coisas. Aproximou-se da jovem loura, pegou-a por detrás e disse:

— Minha filha, eu queria dizer a você uma coisa: Você pensa que vai sair, mas vai ficar aqui conosco. Você é das nossas.

A menina não entendeu logo, ou não quis entender, e a freira continuou:

— Venha aqui para o quarto, que vou lhe mostrar uma coisa.

Já no quarto, mandou-a tirar o sapato e a meia,  e mostrou:

— Você tem uma mancha aqui. Isto significa que você é leprosa, minha filha, e você vai ficar aqui.

Ela ainda estava animada, não tinha caído inteiramente em si quanto à sua desventura. Quando viu andando por lá nosso grupo de rapazes bem dispostos – pensando em tudo, menos em namorar, ainda mais com uma pobre doente como aquela – ela se deixou ficar para trás, começou a dar olhares e sinais de que queria começar um namoro. Mais uma vez, uma inconformidade com a desigualdade da sua situação e um desejo de se impor.

As pessoas e as coisas que são melhores, mais belas, mais nobres, mais elevadas do que nós, são feitas para nos elevar à ideia de como é Deus, portanto devemos ter alegria de admirá-las. Vendo aquele que é mais do que nós, temos certa ideia de como é Deus. Ainda que alguém seja menos do que nós, sob algum ponto de vista é mais do que nós, e devemos saber admirá-lo. Suponhamos que alguém seja de uma família menos ilustre que a nossa: menos rico, menos elegante, menos cultivado, com maneiras menos boas, mas que Deus lhe deu, por exemplo, uma voz magnífica. Devemos saber admirar essa pessoa e ficar alegres em ouvir sua voz.

O dever de enaltecer quem merece

Quem é superior tem o direito a que se reconheça publicamente sua superioridade. As almas boas estão sempre satisfeitas e alegres, porque conhecem o deleite e o dever da admiração e estão prontas para admirar. Já os igualitários são sempre ácidos e revoltados. Quando alguém tem uma qualidade, e por inveja nos calamos a respeito dela, isso gera em nós uma tristeza que nos torna a vida amarga.

A doutrina católica contém sobre isso algo muito relevante. Além de ensinar que não se tem o direito de caluniar os outros, tira daí uma consequência interessante: Da mesma forma que não se pode atribuir a outrem um ato mau que não fez, também peca quem conhece uma boa qualidade alheia, e por inveja se cala. Se alguém tem uma qualidade maior, por dever de justiça temos que comentar isso com terceiros. O homem superior tem o direito ao reconhecimento da sua superioridade.

A justiça mandava amarrar no pelourinho as pessoas que praticaram ações vergonhosas. Em sentido contrário, devem-se elogiar as pessoas dignas de admiração ou que praticam algum ato digno de admiração. É a justiça, é a hierarquia, é a desigualdade.

Nossa Senhora e a desigualdade

Nossa Senhora é cantada por Dante como filha do próprio Filho e Mãe daquele que A criou. De maneira que Ela é realmente a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo; mas Ele, enquanto Deus, é quem A tinha criado. Ele é o criador d’Ela, infinitamente superior a Ela, mas por outro lado queria praticar a virtude da humildade. Quando menino, chorava quando sentia frio, pedia água quando tinha sede e rogava a Nossa Senhora que lhe ensinasse a fazer as coisas. Ensinar ao próprio Deus, de quem lhe viera todo o conhecimento que Ela tinha. É a última palavra no amor à hierarquia.77

Nota:

77. 27-1-1990.

Adiante

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